domingo, 17 de maio de 2015

Juiz confesso. E ajuizado


Juiz confesso. E ajuizado

Fonseca Neto*

Um juiz na ordem social fluente é sujeito de sérias atribuições. E não é difícil supor que o é, idem, de diversas tribulações. Porque este mundo velhaco, e nele o Piauí, tem muita treita e “nós pelas costas” para destrinchar.

Pois agora está circulando em livro as confissões de um juiz de nossas justiças, e pela matéria que traz, ficamos sabendo de suas andanças, trinchados e sentenças.

Há muitos juízes que escrevem –aliás, o rompante sentenciatório tem o rito escritural... Todavia, o confesso de que se trata, cultiva o trato das letras porque sabe poetar e tem gosto em fazer as leituras do mundo em fina prosa.

Refiro-me aqui à obra memorial “Confissões de um juiz”, que um deles, Elmar Carvalho, compartilha com sua gente, dizendo de sua vida, e das trilhas reais e imaginárias dos trânsitos de sua pele, ofício e alma. Diz das sendas trilhadas e do que ficou às margens desses caminhos enquanto recolhas proveitosas de sua faina, andante.

Quanto a mim, conhecido dele, de décadas, que dizer das minhas próprias recolhas de leitor?

Digo que o livro vem caprichosamente articulado numa parte central, da qual auferiu o título da obra, “Confissões de um juiz”, seguida de outra, que chama de “Memórias afins”. E também as “Memórias afetivas”, além da “Fotográfica”. Anexou depoimentos de amigos.

Nas “confissões”, propriamente, apesar do frisson que sugere, é só o garoto campomaioral apresentando um balanço de sua judicatura e das fruições que esse múnus de servir propiciou pelas ambiências comarqueiras onde judicou. Sim, são confissões, confessáveis, de um juiz, ajuizado. (Ele até confessou, no “cisco” da APL, que há confissão de juiz, alhures, “sem juízo”...). 

Carvalho é de Campo Maior e esta póvoa das vazantes rasas habita sua alma; governa seus juizados. Viajam com ele as curvas da serrania azulada que emoldura a paisagem dessa aldeia;serras cujas erosões fazem dele, incontinuamente – fazem de mim também, – um cativo da poética-eva. Com efeito vulcânico, essas impulsões em lavas, conduziram o juiz a diversas comarcas do Piauí, inclusive à mãe de todas, da Mocha-Oeiras. Piracuruca, Socorro (“minha mítica Macondo”), Inhuma, S. Pedro, Curimatá, Ribeiro Gonçalves, Capitão de Campos, Regeneração.

Lugares de serviço público do juiz Elmar, de todas elas, em vária medida, ele cativou os jurisdicionados, e por eles foi cativado, porque na esfera da Justiça – a Repartição –, estava o titular da magistratura, mas na cabeça e alma do juiz, movia-se uma fábrica de sensações tendentes a capturar o entorno, holística e poeticamente, assim a paisagem, gente na paisagem, passarada, brisas, chuvaradas.

Vejo em “Confissões” o livro de um homem bom, e suas circunstâncias. Um piauiense do norte, norteando a vida por princípios elevados. Da sua experiência como togado no interior (e mesmo na cabeça da corte), registra que enfrentou casos intrincados. Muitos,ao nível das idiossincrasias de aldeões vivendo as tricas de relações sociais primárias e que um genuíno juiz é o referente da solução justa. Por injunção de certo espírito moleque, creio que quase todo o leitorado dessas “confissões” vai logo degustar os casos “anedóticos” que conta, com graça de quem sabe escrever, e escrevendo, sabe narrar.

Tem o caso dos maridos traídos... E o sujeito da traição, “o conquistador”, era soldado-polícia, ironicamente uma espécie de “Vulcano, ferreiro mitológico coxo, célebre por sua descomunal feiúra”. Lembra:“recebi no gabinete a visita de dois homens, que se disseram vítimas do conquistador amoroso. Acrescentaram que ele estava desencaminhando as mulheres casadas da pequenina urbe. Após me narrarem detalhes das supostas ou verdadeiras proezas do meganha, me pediram para adotar as providências cabíveis”. Diz que logo lhe veio uma antiga questão: “embora a genitália feminina seja chamada de porteira do mundo [...] não existe porteiro-guardião para esse gênero de órgão”. Daí que lembrou e contou aos maridos que soldado só ficava na cidade porque a prefeitura oferecia gratificação. Não deu outra. Lá se foram os maridos em chifre atrás do prefeito... E logo eu soube “que o soldado voltara ao quartel...”.Tinha encontrado solução para o caso, “ainda que informalmente”, o que mais interessava. “Contribuí para a paz social”.

Vencedor, sim, defendeu seu amigo intestino de um ceá.


Fonseca Neto, professor da Ufpi, escreve às segundas-feiras.         

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