Juiz confesso. E ajuizado
Fonseca Neto*
Um juiz na ordem social fluente é
sujeito de sérias atribuições. E não é difícil supor que o é, idem, de diversas
tribulações. Porque este mundo velhaco, e nele o Piauí, tem muita treita e “nós
pelas costas” para destrinchar.
Pois agora está circulando em livro
as confissões de um juiz de nossas justiças, e pela matéria que traz, ficamos
sabendo de suas andanças, trinchados e sentenças.
Há muitos juízes que escrevem –aliás,
o rompante sentenciatório tem o rito escritural... Todavia, o confesso de que
se trata, cultiva o trato das letras porque sabe poetar e tem gosto em fazer as
leituras do mundo em fina prosa.
Refiro-me aqui à obra memorial
“Confissões de um juiz”, que um deles, Elmar Carvalho, compartilha com sua
gente, dizendo de sua vida, e das trilhas reais e imaginárias dos trânsitos de
sua pele, ofício e alma. Diz das sendas trilhadas e do que ficou às margens
desses caminhos enquanto recolhas proveitosas de sua faina, andante.
Quanto a mim, conhecido dele, de
décadas, que dizer das minhas próprias recolhas de leitor?
Digo que o livro vem caprichosamente
articulado numa parte central, da qual auferiu o título da obra, “Confissões de
um juiz”, seguida de outra, que chama de “Memórias afins”. E também as
“Memórias afetivas”, além da “Fotográfica”. Anexou depoimentos de amigos.
Nas “confissões”, propriamente,
apesar do frisson que sugere, é só o garoto campomaioral apresentando um
balanço de sua judicatura e das fruições que esse múnus de servir propiciou
pelas ambiências comarqueiras onde judicou. Sim, são confissões, confessáveis,
de um juiz, ajuizado. (Ele até confessou, no “cisco” da APL, que há confissão
de juiz, alhures, “sem juízo”...).
Carvalho é de Campo Maior e esta
póvoa das vazantes rasas habita sua alma; governa seus juizados. Viajam com ele
as curvas da serrania azulada que emoldura a paisagem dessa aldeia;serras cujas
erosões fazem dele, incontinuamente – fazem de mim também, – um cativo da
poética-eva. Com efeito vulcânico, essas impulsões em lavas, conduziram o juiz
a diversas comarcas do Piauí, inclusive à mãe de todas, da Mocha-Oeiras.
Piracuruca, Socorro (“minha mítica Macondo”), Inhuma, S. Pedro, Curimatá,
Ribeiro Gonçalves, Capitão de Campos, Regeneração.
Lugares de serviço público do juiz
Elmar, de todas elas, em vária medida, ele cativou os jurisdicionados, e por
eles foi cativado, porque na esfera da Justiça – a Repartição –, estava o
titular da magistratura, mas na cabeça e alma do juiz, movia-se uma fábrica de
sensações tendentes a capturar o entorno, holística e poeticamente, assim a
paisagem, gente na paisagem, passarada, brisas, chuvaradas.
Vejo em “Confissões” o livro de um
homem bom, e suas circunstâncias. Um piauiense do norte, norteando a vida por
princípios elevados. Da sua experiência como togado no interior (e mesmo na cabeça
da corte), registra que enfrentou casos intrincados. Muitos,ao nível das
idiossincrasias de aldeões vivendo as tricas de relações sociais primárias e
que um genuíno juiz é o referente da solução justa. Por injunção de certo
espírito moleque, creio que quase todo o leitorado dessas “confissões” vai logo
degustar os casos “anedóticos” que conta, com graça de quem sabe escrever, e
escrevendo, sabe narrar.
Tem o caso dos maridos traídos... E o
sujeito da traição, “o conquistador”, era soldado-polícia, ironicamente uma
espécie de “Vulcano, ferreiro mitológico coxo, célebre por sua descomunal
feiúra”. Lembra:“recebi no gabinete a visita de dois homens, que se disseram
vítimas do conquistador amoroso. Acrescentaram que ele estava desencaminhando
as mulheres casadas da pequenina urbe. Após me narrarem detalhes das supostas
ou verdadeiras proezas do meganha, me pediram para adotar as providências
cabíveis”. Diz que logo lhe veio uma antiga questão: “embora a genitália
feminina seja chamada de porteira do mundo [...] não existe porteiro-guardião
para esse gênero de órgão”. Daí que lembrou e contou aos maridos que soldado só
ficava na cidade porque a prefeitura oferecia gratificação. Não deu outra. Lá
se foram os maridos em chifre atrás do prefeito... E logo eu soube “que o
soldado voltara ao quartel...”.Tinha encontrado solução para o caso, “ainda que
informalmente”, o que mais interessava. “Contribuí para a paz social”.
Vencedor, sim, defendeu seu amigo
intestino de um ceá.
Fonseca Neto, professor da Ufpi, escreve
às segundas-feiras.
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