quarta-feira, 10 de junho de 2015

NOITES DE DOMINGO



NOITES DE DOMINGO

Antonio Reinaldo Soares Filho
Escritor, historiador e geólogo

           
As noites de domingo de antigamente reservavam momentos inebriantes a partir do cair da tarde em Oeiras. Tão logo as sombras dos morros do poente alcançavam toda cidadela, as famílias que ainda resistiam em ficar dentro de casa, saíam para se sentar nas calçadas. Quem residia de frente ao poente, a princípio se posicionavam um pouco distante do seu frontispício, fugindo do calor ali acumulado. Com o entrar da noite, a temperatura se dissipando, os vizinhos ocupavam as calçadas, em conversas fraternais, reafirmando laços de amizade e compadrio. Os solitários ficavam sentados nas suas calçadas a ouvir os noticiários da Voz da América, a BBC de Londres transmitindo em português, o jornal O Globo no Ar e da Hora do Brasil, através de um rádio portátil de pilha transistone da Philco. Mesmo nos verões as noites eram de temperatura agradáveis, não exista o asfalto, o chão era descoberto.

Os moços, após passarem grande parte do tempo avaliando-se no espelho, seguiam para o Passeio Leônidas Melo. Antes, costumeiramente, faziam parada pelos balaústres ou pelo bar Ponto Chique em frente ao Palácio dos Bispos.

Na Catedral de Nossa Senhora da Vitória o Bispo Diocesano Dom Edilberto Dinkelborg celebrava a solene missa dominical das sete da noite, frequentada pelas famílias cristãs da cidade. Ao final, as donzelinhas e os casais de espírito jovem se dirigiam para o Passeio Leônidas Melo, a fim de observar o movimento ou encontrar os amigos em uma mesa do Café Oeiras.



(Foto 51) Jovens aguardando nas mesas do Café Oeiras o início de um réveillon no Oeiras Clube. Foto gentilmente cedida por Maria de Fátima Nunes Ferreira de Carvalho.



O Café Oeiras pelo seu estilo refinado, sempre irradiou uma áurea de glamour e transmite uma sensação de bem estar aos seus frequentadores. Suas mesas, restritas ao seu interior, posto que a praça era ocupada pela juventude a desfilar, sempre foram concorridas.

Wagner encerrava a primeira sessão do filme exibido em vesperal, completando os frequentadores daquele pequeno e acolhedor espaço. E, na praça, a mocidade era a razão da existência de todo aquele movimento. A cena se repetia. As mocinhas a caminhar de braços dados em volta da praça em um sentido e os rapazes de modo contrário. Alguns mais tímidos ficavam encostados nos postes de iluminação ou sentados nos seus poucos bancos. Outros preferiam apoiar-se nas grades de madeira da Associação. Cada um procurando a seu modo exibir-se. Moças e rapazes exercitando a arte da sedução. Quando a corte se dava normalmente, em plena praça era realizada a abordagem, “uma encostada”. E só os homens tomavam a iniciativa. As garotas mais ousadas, quando muito, insistiam na troca indiscreta de olhares. Difícil para o candidato era munir-se de coragem suficiente para inverter a caminhada em plena praça e dirigir-se à pretendida, fazer sua declaração de amor e propor o namoro. Nessa hora, as amigas, sabedoras do sentimento da moça, adiantavam o passo e separando se afastavam. Ficavam então os dois a conversar, mantendo a caminhada, repetindo a mesma trajetória com o moço soltando o verbo. Tudo se confirmando partia-se para a “muralha do amor”. O local, formado por encantadores balaústres, separa a Praça da Bandeira do Passeio Leônidas Melo, naqueles dias, naquele horário, era ocupado pelos casais de namorados. Eita felicidade. Mas, quase sempre a jovenzinha solicitava um tempo para dar a resposta, mesmo que desejasse ardorosamente dizer sim. Na verdade, era apenas um artifício para se valorizar, fazer difícil. Aquele ato compunha o ritual da corte. Como a impaciência é companheira da pouca idade, inquiria-se com a maior brevidade uma resposta.

Ali, muitos sonharam ser galã.

Muitas respeitáveis senhoras de hoje reinaram temporariamente absolutas, na posse de suas belezas radiantes a desabrochar. E como era disputada a corte quando uma delas se encontrava em evidência e desimpedida. Menina-moça sem ter tido ainda pretendente, na pujança de toda a formosura que a juventude proporciona ao corpo de uma adolescente, com todos os hormônios transpirando pelos poros. Menina que nem sempre foi bela e, de repente, desabrochando numa linda mulher, sensual e escultural, a desfilar airosamente sua beleza.

A cada encontro, o magnetismo da troca de olhares rápidos, quase sempre furtivos no início. Os rapazes em grupo disputavam naquele momento a preferência de um flerte.

Flertava-se à vontade, por dias, até meses. Aquela troca de olhares, mutuamente correspondida, gerava comentários de possibilidade de um futuro namoro. Era o bastante para a mãe da moça tomar conhecimento daquele prelúdio de aproximação. Se o relacionamento fosse questionado pelos pais que carregavam desejos de outra união conveniente, vinham às proibições. Contudo, nada impedia quando o sentimento era forte e a moça se opunha em romper a corte. Partiam para o namoro às escondidas, no escurinho do cinema, por trás do cine, do parque infantil ou noutro lugar onde a iluminação fosse precária. Nesse contexto havia sempre uma amiga da namorada, que arranjava os encontros, se posicionando ao longe, vigiando, para alertar a aproximação de algum fuxiqueiro, enquanto o casal se encontrava entretido. Quando eles decidiam se unir, fugiam para a cidade vizinha e por lá se casavam. Dizia-se fulano roubou sicrana. Havia muito preconceito infundado e poucas justificativas. Tudo tinha uma dose de fascínio e romantismo encantador.

Naquele Passeio todos procuravam estrear ou exibir sua melhor roupa. Um gosto refinado significava vestir uma camisa esporte das etiquetas Taylor, McGregor ou Torre. O sonho era estrear uma camisa esporte ban-lon modelo rendanil (malha) de preferência das cores vermelha e branca, com um sapato saméllo, terra ou motinha e uma legítima calça Far-West de brim coringa da alpargatas ou uma impossível Lee americana (Ao tempo surgiram as U.S. Top) - era se sentir um astro. Perfumados pela fragrância de Lancaster e brilhantina “suspiro de granada” eles marcavam territórios.

Foi tempo de ouvir os novos sons da Jovem Guarda; Erasmo liderando a banda The Snakes, sentado à beira do caminho e Roberto mandando tudo para o inferno, reinando no iê-iê-iê. Os Golden Boys com alguém na multidão. Trio Esperança embalava a festa do Bolinha. Sergio Murilo e um brotinho legal. George Freedman cantando coisinha estúpida. Wanderley Cardoso era o bom rapaz. Eduardo Araújo o bom. Tony Campelo e Celi Campelo, Renato & Seus Blue Caps desde 58. Leno e Lilian, Ronnie Von, Wilson Miranda, Demétrius, Ronnie Cord, Sergio Reis, Martinha. Silvinha, Paulo Sérgio, Antônio Marcos, Vanusa, Jerry Adriani, Rosemary, Albert e Meire Pavão, Valdirene, Rita Pavone, Ed Carlos e Katia Cilene, Trini Lopes... Na faixa internacional ouvíamos Elvis Presley cantando Tutti Frutti; Bill Halley empolgou com Rock Around the Clock; os Beatles com a inesquecível Yesterday, Mireille Mathieu, Charles Aznavour com La Bohème e Ne Me Quitte Pas; Christophe estourava com Aline e Marionettes; Peppino di Capri cantava Roberta, Frank Sinatra, Joan Baez, Petula Clark... Dos Jipes depois a Rural e do Aero Willys "rabo de peixe". Da Simca Chambord vermelha e branca do boêmio Waldik que não fazia falta na região.

No universo da vaidade feminina dos anos 60 a minissaia reinou absoluta no Passeio. Um vestido tubinho curto de cetim com estampas coloridas, psicodélicas ou geométricas foi um modelo comum. Os cabelos armados com muito laquê complementavam o conjunto – elas tinham um it. À última moda era a linha reta, futurista, geométrica e discretamente erótica. O objetivo era mostrar o que suas mães esconderam com as saias plissadas no meio da canela. O Brasil começava a perder o seu jeito inocente. Na década de setenta as moças, acompanhando as tendências, resolveram mostrar parte do cobiçado corpo feminino agora aparecendo desnudado, no entanto, vulgarizaram. As transformações passaram a acontecer em ritmo acelerado. O que perdurara por décadas agora estava se dando a cada novo ano. Se até os anos cinquenta a moda foi comportada, rapidamente as moças aderiram aos movimentos originados nas grandes cidades. A jovem guarda que havia aderido à minissaia foi copiada pelas mocinhas. As saias foram se encurtando mais que nunca, quase sem limites, muito acima do joelho. Diminuíram tanto que alcançou o tamanho do “hot pants”, shortinho que virou mania da época. Garotas de curvas privilegiadas, em mostras pin up dos anos 60... 70..., desfilavam com minissaias e hot pants. Quando decidiram por uma calça comprida, ousaram, a cintura foi rebaixada. Uma beleza aos olhos, os pêlos rebeldes teimando em saltar o cós. Tudo isso deslumbrava, despertava sonhos e desejos ardentes na rapaziada. Quanta feminilidade. Os mais atrevidos avançaram até onde foi permitido.

Quando a praça recebia a visita de uma moça bonita oriunda de outra cidade, todos os moços voltavam seus olhares para a cobiçada, disputando entre si quem seria o primeiro conquistador a levá-la para a muralha do amor. Afinal, “ao vencedor as batatas”.

As ações aconteciam sobre os olhos de todos os frequentadores do ambiente. Tudo aquilo fazia parte do cenário do domingo à noite em Oeiras. O movimento se desenvolvia ainda embalado pelos sons dos boleros de Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Núbia Lafaiete, Carlos Galhardo, Lupicínio Rodrigues, Bienvenido Granda, Orlando Dias, Carlos Alberto, Silvinho... Repassados pela radiola do Café Oeiras. Ouvíamos as músicas das nossas tias e pais aderindo ao novo rock-and-roll.  O intervalo das dezenove às vinte e duas horas foi às três horas mais agradáveis e vividas pela juventude daqueles anos.

No tempo da usina velha, nas justas dez horas da noite, o Café Oeiras fechava suas portas e a praça se esvaziava. O final da exibição da segunda sessão do filme representava o último movimento no local. Depois disso, e só em tempos de férias é que alguns moços permaneciam por ali, prolongando uma conversa fiada. Era à hora e a vez dos que sabiam dedilhar as cordas de um violão e dos cantores de repertório refinado e vozes maviosas. Nesses quesitos, Gerardo Queiroz e meu primo Gerson Campos foram os maiorais. Os pontos de partida era o próprio Passeio Leônidas Melo, ou o parque infantil assim como balaústres frente ao Palácio João Nepomuceno. Houve noites em que havia mais de duas serenatas pelas ruas. Quando nenhum deles sabia cantar ou tampouco tocar violão, não se perdia o intento. Uma pequena radiola portátil Sonata Philips GF133 a pilha resolvia a questão. Só não podia faltar um litro de cinzano, São Rafael ou outra bebida alcoólica. E então se passava a atormentar as noites de sonos dos pais de moças bonitas.

Nas convidativas noites enluaradas, após a serenata passar pelas portas de todas as pretendidas, uma parte de seus componentes procuravam o Bar da Evinha, que ficava no bairro da bomba, entre a BR-230 e o muro do cemitério. Por lá se saboreava uma bem temperada panelada ou uma mão de vaca, acompanhada por uma última cerveja.

O dia seguinte era uma segunda feira. Nossos pais dormiam tranquilos. Os grandes males que assolam e flagelam a humanidade de hoje não faziam parte daquele tempo.

 Quantas noites felizes.     

3 comentários:

  1. Caro Antonio Reinaldo,
    Parabéns pelo "Noites de Domingo", que romanticamente retrata o glamour de uma época. Os cenários ricamente narrados e vivenciados em Oeiras me fizeram viajar no tempo e lembrar que passei pelas mesmas experiências na minha juventude em Parnaíba. Abraços a você e ao Elmar Carvalho.
    Ben-Hur

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  2. Reinaldo, recordar é viver, este seu relato, foi um retorno ao tempo da juventude de todos nós e um retrato de nossas pequenas e grandes cidades nos anos sessenta. Em Teresina tudo acontecia na Praça Pedro II, Cines Rex e 4 de Setembro e o espaço e Salão de festa do Clube dos Diários.
    Um abraço Itamar

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  3. Comunico e convido aos leitores desse capítulo do livro Aquarelas de um Tempo que essa obra será lançada dia 23 de março próximo - uma quarta feira - na livraria ENTRELIVROS na avenida Dom Severino ao lado da fazendaria próximo da farmácia BigBem, às 7 horas da noite. Convido a todos e aos que assim porcederem. Abraço e até por lá. Antonio Reinaldo Soares Filho

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