quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CORAÇÃO PARTIDO



29 de outubro   Diário Incontínuo

CORAÇÃO PARTIDO

Elmar Carvalho

Estava eu posto em sossego, no salão de entrada da APL, no sábado passado, a conversar com o confrade Reginaldo Miranda sobre os seus projetos historiográficos, entre os quais se encontram a reedição de seus livros e o término da redação de suas novas pesquisas, que darão origem a novas obras sobre a nossa história e sobre nossos vultos ilustres, quando chegou o escritor e cardiologista José Itamar Abreu Costa.

Itamar nos contou um fato anedótico de dois ferrenhos adversários políticos, que o bispo Dom Abel Alonso Nunez, com a sua intermediação, terminou por apaziguar e conciliar. No fecho da narrativa do episódio, revelou que um deles morreu de coração partido. Fiquei curioso, e logo imaginei que o finado havia contraído uma forte paixão amorosa não correspondida. Isso porque a metáfora do “coração partido” é usada na literatura e mesmo nas conversas informais como símbolo de desilusão amorosa, de amores sem correspondência, de amores impossíveis ou proibidos.

Dr. Itamar, ante minha irrefreável curiosidade, deu rápida explicação, e me prometeu enviar maiores informações por e-mail. Cumprindo a promessa, enviou-me o seguinte bilhete eletrônico:

“É uma situação já bem documentada. Nos pacientes submetidos a stress permanente, haverá liberação excessiva de substâncias vasoativas (Adrenalina e Noradrenalina), e como consequência a coronária sofre um espasmo e o paciente infarta, ao ser estudado por Ecocardiograma são detectadas grandes áreas de necrose no músculo do coração.

Submetido ao cateterismo e cinecoronariografia (estudo das artérias coronárias), eis a surpresa: as artérias coronárias estão quase sempre isentas de obstruções. Em outras situações o paciente tem morte súbita e, ao ser submetido à necropsia, são detectadas imensas áreas de necrose da musculatura do coração e o padrão das artérias coronárias completamente normais.

A doença leva este nome em função de que existe uma cidade no Japão (tradicionalmente agrícola – plantações de arroz), na qual os jovens japoneses trabalham cerca de 18h/dia, sem férias, sem perspectivas para o futuro; estes trabalhadores apresentam uma frequência muito alta de infarto e/ou morte súbita.”

Ante os esclarecimentos acima, verifico que o coração mencionado pelo doutor Itamar foi literalmente partido, e nada tinha a ver com os metafóricos corações partidos dos poetas e amantes, embora um forte estresse provocado por amores infelizes ou trágicos possa literalmente “arrebentar” um coração, segundo deduzo da leitura do e-mail acima transcrito.

Outrora, acreditou-se que o coração seria a sede do amor. Hoje quase todos acreditam que os sentimentos estejam em algum lugar do cérebro. Alguns acreditam que eles estejam alojados na alma ou no espírito. Não irei, aqui, discutir assunto tão abstrato e controverso. De qualquer maneira o coração passou a ser símbolo do amor. É um importante órgão, vigoroso, de músculos nobres e resistentes, conquanto também possa ser necrosado e partido. Portanto, recomendo que ninguém ame demais, ou, pelo menos, não ame além de sua capacidade.

É, na verdade, uma bomba, que faz o sangue circular por todas as veias e artérias. E se ele parar, a vida para. Foi chamado de comboio de cordas pelo poeta Fernando Pessoa: “E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama coração.” Eu o chamei de bomba, mas bomba incendiária: “Meu coração / é uma bomba incendiária / mas muitas vezes tem servido / de bobo da corte / para os fúteis e vulgares.”

No livro Psicanálise dos Gênios (Doentes Célebres), de Gastão Pereira da Silva, leio que o grande poeta Shelley, ao morrer em circunstância trágica, teve o seu corpo levado a uma pira fúnebre. Então, ocorreu algo de extraordinário, que deixo GPS descrever: “De súbito, porém, o corpo estala e se encurva no ar e o coração de Shelley aparece inteiramente ileso! As chamas não o queimam, mas o cérebro ferve literalmente dentro do crânio, como se estivesse dentro de uma caldeira!” E conclui afirmando que tudo o fogo destruíra, menos o coração bondoso do poeta, que costumava fazer caridade.

No conto O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde, o protagonista, na verdade uma suntuosa e bela estátua, manda em sucessivas ocasiões que a andorinha, que o amava, distribuísse aos necessitados as valiosas peças de metais nobres e pedras preciosas de que era revestido, até se transformar numa escultura feia e sem valor artístico. Quando a andorinha morreu aos seus pés, o seu coração se partiu. “Como ele perdeu a beleza, perdeu também sua utilidade”, proclamou, doutoral, o professor de arte da Universidade.

Os administradores da cidade mandaram, então, fundir a estátua, para que uma nova fosse feita. Tudo o fogo derreteu, menos o coração bondoso (e partido) do Príncipe Feliz, que foi jogado no lixo.  Um dia, pediu Deus a um de seus anjos que lhe trouxesse “as duas coisas mais preciosas da cidade”. E o anjo lhe entregou a andorinha morta e o coração de chumbo.  

6 comentários:

  1. Belo texto. Esperamos que os leitores melhorem os seus humores, menos stress, mais chance de uma vida saudável
    Um abraço itamar

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  2. Espero, caro doutor Itamar, que ninguém vá mais cair na besteira de morrer de "coração partido".

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  3. Grande Poeta,
    Já desconfiava que o amor não é um bom sentimento, posto que é egoísta. Pensando contrariamente, gostaria de manter o meu intacto, vivo e imune ao despedaçamento. Agora falando sério: pegastes o pião na unha, poeta. Extraíste um belo texto das informações técnicas/médicas enviadas pelo nosso amigo e grande cardiologista, Dr. Itamar Abreu, que de coração sabe muito.

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  4. Caro JP,
    Obrigado por suas palavras desvanecedoras.
    Mas crônica é isso mesmo, é muitas vezes fazer de um intragável limão azedo uma gostosa (se o texto for bom) limonada.
    Dr. Itamar é quem tem o coração de muita gente nas unhas, ou melhor, nas mãos. É literalmente um estraçalhador e reconstituidor de corações.

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  5. Estimado amigo Elmar Carvalho:

    Li há pouco sua crônica "Coração partido, plena de alusões pertinentes a autores exponenciais da literatura universal, com Pessoa, Wilde, Shelley..
    Vejo que o amigo anda mas ainda afiado na composição de suas crônicas, anotações, lembranças, casos, histórias, enfim, tudo desaguando limpidamente em linguagem cada vez mais bem trabalhada."
    O que é mais curioso, à medida que está mais experiente, a meu ver, está também adquirindo aquele domínio tão sonhado pelos escritores, que é o de escrever com mais fluência, com maior capacidade de "domar" a linguagem. Isso, para mim, é amadurecimento da função da escrita de um prosador ou poeta, ou cronista, ou ensaísta, enfim, em qualquer gênero onde possa projetar o talento.
    Isso é bom para V. e para a literatura que faz e regozijo dos seus leitores.
    Li seu discurso de recepção ao novo membro da APL, o amigo comum Dílson Lages.
    Com estilos diferentes, tanto na poesia de ambos quanto na visão da vida, saí da leitura do seu discurso imaginando o encontro de dois poetas que, no íntimo do labor do mais sublime dos gêneros literários - a poesia - talvez se sintam mais à vontade de falar de poesia, ainda que em ocasião solene de discurso acadêmico, no qual a tônica é exaltar, sem exageros, o valor da obra do empossado e do panegírico dos ocupantes anteriores da mesma cadeira. Foi o que V. fez, e o fez de maneira ajustada ao momento de necessário brilho.
    Após a leitura e a audição no site do Dílson, fiz, no espaço reservado da página de destaque, um breve comentário que, até agora, não foi liberado, a menos que eu tenha cometido alguma imperícia técnica no manuseio digital.
    Porém, aquele comentário foi feito sob o impulso de emoção da leitura, quer dizer, foi escrito com a naturalidade com a qual desejava externar a minha alegria da peça oratória. E me recordo de que muitas vezes, por falha minha no manuseio do computador, se perderam várias observações que já expendi a textos seus e de outros autores piauienses.
    Espero, por conseguinte, que o comentário seja liberado a fim de que lhe chegue ao conhecimento.
    Algo bom está acontecendo com a literatura que produz em prosa: em considerável quantidade de textos que V. tem postado no seu blog.
    Sinto que há uma vontade febril de criar textos, de dedicar grande parte de sua vida atual à literatura. Vejo isso com muita prazer.
    Acredito que seja essa fase sua a da concentração na prosa.
    V. é um intelectual que sabe respeitar a si mesmo na condição de artista, assim como sabe ser um escritor cavalheiro em convívio harmonioso com seus pares, neles encontrando o que seja mais específico e mais grandioso, sem os sentimentos subalternos da inveja e daquilo que chamaria traição literária.Esta enfermidade a encontramos em alguns escritores, no passado e no presente, em qualquer parte, seja no estados mais pobres, seja nas metrópoles. Penso que longe disso se posiciona a sua decência e compostura de autor.
    O que mais deploro na vida literária é aquela traição acima referida, e amiúde praticada até por bons escritores.Para mim, atitude dessa natureza só diminui o valor de um escritor, de um artista,em qualquer plano da Arte.
    Sonegar reconhecimento de outrem, o qual lavra o mesmo terreno, o literário, tem característica de perfídia, de papel de capadócio, de apagamento de valores por meios de ações ilícitas no campo da literatura.
    Quem pratica tais baixezas d'alma jamais será um escritor genuíno, uma verdadeira vocação de escritor. e o tempo, só o tempo, cuidará de silenciá-los devidamente.

    Um forte abraço do

    Cunha e Silva Filho


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  6. Amigo Cunha e Silva Filho,
    Não preciso dizer o quanto desvanecido e emocionado fiquei com o seu abalizado comentário.
    Infelizmente o que você refere no final de seu comentário é uma triste verdade. A inveja grassa em nosso meio, seja de forma escancarada, dissimulada ou mal-disfarçada, e se manifesta no silêncio, nas omissões, nas preterições, nas sonegações de oportunidade às pessoas de mérito. Às vezes há uma troca de favores, de elogios recíprocos.
    Ainda bem que, vez ou outra, surge uma pessoa de sua estirpe que reconhece e proclama os valores dos outros, de forma desinteressada.
    Abraço,
    Elmar

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