Pastor José Pedro Araújo, pai do cronista |
Um exímio contador de histórias
José Pedro Araújo
Romancista, cronista e
historiador
Sou de uma geração que muito
preza as histórias contadas nas calçadas em noites de lua cheia. Entretanto,
sou péssimo depositário de uma grande parte das mais belas que ouvi com tamanho
encantamento. A minha memória ainda resiste e não se esquece do prazer que
sentia ao ouvi-las, mas deixou que se perdesse o conteúdo delas. Quanto a minha
alma, por outro lado, agasalhou com o cuidado de um banqueiro avarento o guião
de cada uma delas e não revela nem mesmo para mim.
Assim mesmo, ou por isso mesmo,
sou escravo delas. Divirto-me apenas com as lembranças desses momentos como se
visitasse um ambiente de locação de um filme, mesmo sem saber o seu roteiro.
Sei apenas que o tema era belíssimo e que a história, apesar de bem guardada no
meu intimo, não consigo recordar.
Meu pai era diferente. Tinha uma
memória fantástica para armazenar informações que ouvia ou fatos que
presenciava. Coisa de bom matemático que ele era, que nunca se esquecia das
fórmulas necessárias para a resolução dos problemas. Por conta disso, tinha a
memória perfeitamente fresca e arejada para armazenar novas informações. Se
vivo estivesse, faria agora dia 17 de fevereiro oitenta e nove anos.
E uma vez caída na sua memória,
jamais se apagava. Essa capacidade de reter as histórias que ouvira na sua
meninice ou que lera em algum folhetim usava também com maestria para nos reter
em casa, nas noites escuras do meu Curador. Para evitar que fôssemos brincar
com as outras crianças nas vielas de puro breu, ele arrumava os travesseiros da
sua cama como encosto e desfiava uma série ininterrupta de belas estórias de
Trancoso sem repetir uma única vez qualquer delas. Enquanto isso, deitávamos em
torno dele sem perder uma palavra do que dizia, até que adormecíamos um por um.
E ele considerava sua missão concluída quando nos colocava nas nossas redes
para acordarmos somente no dia seguinte.
Exímio contador de narrativas
fantásticas, sua vida também daria um belo compêndio de histórias. Histórias
verdadeiras, cheias de atos folhetinescos e hiláricos, gostosamente contadas
por ele, e também atestadas por testemunhas de ilibada e incontestável estofo
moral.
Acredito mesmo que os poucos
leitores das crônicas que escrevo aqui nesse blog, também devem está lembrando
algo parecido enquanto passa os olhos por essas singelas linhas. Pais, na
acepção da palavra, são todos iguais. Exortam, admoestam, e até mesmo desferem
alguns cascudos quando o mau comportamento dos filhos extravasa. Mas termina o
dia sempre da mesma forma também: com a filharada em sua volta para ouvi-los
contar belas histórias, fictícias ou não.
Uma dessas histórias que muito me
causava admiração aconteceu quando ele, ainda jovem, pouco depois de atingir a
maioridade, sentou praça na Policia Militar do Maranhão. Nessa época, o estado
passava por uma grave crise politica e institucional em decorrência do
descontentamento causado pelo resultado das últimas eleições para governador do
estado.
A história: quando foi anunciado
como eleito naquele pleito majoritário o empresário Eugênio Barros,
incontinente, as Oposições Coligadas reclamaram de fraude nas apurações e
conclamaram a população de São Luís a sair às ruas para impedir a continuação
do mandato do governador que rapidamente havia sido empossado no cargo maior do
Estado. Ao cabo de uma semana a revolta já estava instalada em toda a cidade,
culminando com algumas ações de violência explicita que desaguaram na
depredação das casas do Desembargador Henrique Costa Fernandes e do Juiz Rui
Morais. Estes dois magistrados haviam tido atuação decisiva no resultado do
pleito, pelo que consta. Algumas casas de populares também foram queimadas e a
culpa pelo acontecido foi jogada para um e outro lado, acirrando ainda mais a
disputa que tomava contornos de tragédia.
O palanque das oposições estava
armado em plena Praça João Lisboa, a poucos quarteirões do palácio do governo,
ao tempo que alguns oposicionistas armados haviam se entrincheirado, a
princípio, na igreja da Sé, defronte à sede do governo. A história da revolta
encontra-se registrada nos anais da politica maranhense, mas, a que desejo
contar foi vivida por meu pai e relata uma passagem engraçada daquele instante
em contraponto ao momento de profunda incompreensão que se vivia naqueles
tempos de extrema violência.
Instalado no Palácio dos Leões,
sede do governo do estado, Eugênio Barros determinou que se fizesse um reforço
na guarnição que lhe dava proteção. Temia pela sua própria vida. O comandante
buscou no destacamento da capital alguns homens de porte físico avantajado e
munidos de reconhecida coragem para enfrentar a população conflagrada que
ameaçava invadir o palácio a qualquer instante. Foi nessa ocasião que meu pai
foi destacado para servir na guarda palaciana. E mesmo entre esses homens
destemidos, havia certo receio de se ficar de sentinela na guarita instalada no
portão lateral do palácio, cidadela mais avançada e mais propensa a um ataque.
De fato, algumas escaramuças sempre ocorriam principalmente no final da tarde,
quando alguns oposicionistas faziam incontáveis disparos de arma de fogo em
direção ao palácio, acobertados pela penumbra que começava a cobrir a cidade
nessas horas e protegidos pelas espessas portas da catedral.
Certo dia estava meu pai como
sentinela mais avançada na famigerada guarita, quando um velho cabo da guarda
palaciana se aproximou dele e indagou como estavam as coisas. A pergunta fazia
sentido porque estava se aproximando a hora em que se realizavam os costumeiros
disparos em direção à sede do governo. O cabo não era reconhecido pelos
companheiros de farda como um homem de muita coragem. Além disso, era motivo de
chacota em razão de um defeito de nascença que fazia com que seus pés se
voltassem para dentro, conhecidos entre nós como tesourinha. Claudicante, o
velho militar passou em frente à sentinela e continuou se movendo lenta e
receosamente rumo à calçada. Nesse momento, meu pai, a sentinela, esquecendo
todas as normas militares que exigem respeito ao superior hierárquico, soltou
um grito de alarme: “cuidado, cabo! Os homens vão começar o ataque!”. O pobre
homem tentou voltar para a segurança do palácio, mas as pernas lhe faltaram e
ele caiu sentado ao chão. E como os membros inferiores não atendessem ao
comando do cérebro, voltou engatinhando para dentro. A gargalhada foi geral.
Humilhado, o cabo apelou para a sua autoridade e disse que ia denunciar o
soldado Araújo aos seus superiores. No que o transgressor lhe respondeu:
“denunciar como, Pé-de-porco, se tu não sabes escrever”? O apelido, empregado
em razão do seu caminhar bamboleante, deixava o pobre homem ainda mais
injuriado. Mas, a verdade sobre o seu analfabetismo o deixava mais propenso
ainda à gaiatice dos colegas. E por essa razão, não conseguia formular nenhuma
denúncia contra os subordinados que estavam sempre a tirarem brincadeiras com
ele. Ao concluir a história, sempre se dizia arrependido de ter assim procedido
com uma pessoa que nunca lhe havia feito mal. E que contava aquilo como exemplo
de como não se deve proceder com as pessoas portadoras de deficiências que elas
não tinham culpa de possuir.
Outra história que gostava de
contar teria ocorrido quando ele já se encontrava destacado no novo município
de Presidente Dutra. Naqueles tempos, a má fama sobre a violência que imperava
na cidade já havia chegado à capital, São Luís. E era tamanha, que fazia com
que poucos policiais se aventurassem a servir na cidade, mesmo a despeito de
receberem um aditivo ao soldo para prestar serviço na região do Japão, como era
conhecida. Animado pelo incremento no salário e estimulado pela notícia de boas
oportunidades na região que começava a se desenvolver com certa rapidez, o
soldado Araújo veio prestar os seus serviços na longínqua cidade de Presidente
Dutra. E, de fato, não encontrou vida fácil no município. Apesar do seu tamanho
diminuto, a cidade não parava de produzir novos fatos que serviam para aumentar
ainda mais a sua fama de terra violenta. Naquele tempo, a ingerência politica
era também um dos principais problemas com o qual a polícia tinha que conviver,
talvez mais ainda do que a que se observa hoje em dia.
Certo dia, o soldado foi chamado
para atender a uma ocorrência. Certo cidadão havia chegado embriagado em casa e
promovera bárbaro espancamento na sua pobre esposa. Não era a primeira vez que
isso ocorria e nem a primeira em que a polícia era chamada para impedir a
continuação do grave delito. O problema era que o sujeito, useiro e vezeiro em
grave atentado à vida da pobre mulher, sempre recebia a proteção do maior líder
politico local e em poucas horas já estava na rua novamente. E sabendo-se
acobertado pela autoridade que lhe esquentava as costas, o homem já saía
desafiando a policia quando era levado preso após desferir mais uma sessão de
espancamentos contra a maltratada esposa. Nesse dia, porém, ele não contava com
uma mudança na situação que iria influenciar sua vida para sempre.
Destacado para cumprir a missão,
Araújo saiu da delegacia prometendo a si mesmo que precisava adotar uma postura
diferente em relação àquele caso que já lhe estava enchendo as medidas. Chegando
à casa do reincidente espancador de mulheres, o militar encontrou um quadro
pavoroso. Com o rosto muito inchado pelas agressões e o resto do corpo todo
lanhado em razão de inúmeras chibatadas recebidas, a mulher estava naquele
momento sofrendo novas agressões. Com uma chibata em uma das mãos, o marido
havia iniciado nova sessão de espancamentos, quando foi impedido pelo soldado
que acabava de adentrar ao quarto do casal, alertado pela gritaria que se ouvia
do lado de fora da casa. Revoltado com o quadro dantesco que acabava de
presenciar, o policial tomou o chicote das mãos do agressor e passou a
tratar-lhe da mesma maneira, aplicando-lhe uma série de chicotadas no lombo.
Atingido pelas tiras de couro cru, o homem começou a gritar e a espernear,
incomodado bastante com o mesmo remédio que costumava aplicar na pobre esposa.
Concluída a abordagem, o militar arrastou o homem rua acima no sentido da
delegacia de polícia. E como vinha acontecendo nas outras vezes, o salafrário
começou a gritar pedindo ajuda ao seu protetor e dizendo-se agredido e
humilhado pelo policial. Nesse momento o soldado o repreendia, e por fim,
cansado do estardalhaço feito, mandou que ele gritasse mais alto ainda, e
mostrasse a sua falta de vergonha para toda a cidade. A situação continuou
assim até chegarem à delegacia. A comunidade inteira saia à porta para
presenciar a cena que deixava a todos com um sorriso nos lábios, satisfeito com
o novo desfecho daquele caso que já estava virando requentado angu de caroço.
Não se sabe se por já está
agastado com os problemas causados pelo insano aliado politico ou se por
respeito, desta vez, às leis vigentes, o certo é que o homem não recebeu
cobertura nenhuma do seu protetor, e permaneceu um bom par de dias preso. Certo
mesmo, é que quando a prisão foi relaxada, ele pegou a família e desapareceu.
Mudou-se para lugar desconhecido ou ignorado. A história não terminaria ai,
entretanto. Anos depois, paisano novamente e desempenhando a nobre profissão de
mascate para sustentar a família recentemente formada, meu pai transitava certo
dia por uma estrada erma tocando um burro carregado de mercadorias, quando
avistou dois sujeitos que vinham ao seu encontro. O da frente, montava um belo
cavalo muito bem ajaezado. Vinham em marcha acelerada. Papai julgou reconhecer
o homem que encabeçava aquele pequeno cortejo, ocasião em que passou pela sua
cabeça toda a história acontecida naquele triste dia, quando teve que se
rebelar contra a sua natureza e partir com descontrolada fúria contra o
agressor.
Ao se aproximarem, os homens
diminuíram a marcha e encararam o outro viajante com muita insistência. Meu pai
confessou ter temido pela sua vida. Desarmado como estava, viu o homem à sua
frente parar de um tranco só, forçando-o a adotar igual procedimento. E por
baixo da camisa que ele mantinha aberta até quase a altura do umbigo, avistou o
cabo branco de um volumoso revólver. Era chegada a hora do acerto de contas,
pensou meu pai.
“Soldado Araújo”? – indagou o
viajante com voz forte e autoritária. “Ex-soldado Araújo” – respondeu meu pai
no mesmo tom – “Com quem tenho a honra de falar?” - tentou também ganhar tempo
enquanto pensava em alguma saída. Nesse instante o homem estendeu a mão para
cumprimentá-lo e perguntou se ele não estava reconhecendo o sujeito que havia
dado tanto trabalho para a polícia lá no Curador. Meu pai disse que lembrava
sim, mas que aquilo era coisa do passado. O homem sorriu como se tivesse
entendido o receio que provocava naquele instante. E soltando uma gargalhada
disse que meu pai estava agora apertando a mão de um homem verdadeiro. E
agradecia pela surra que havia tomado naquele tempo, fato que o fez mudar de
cidade, e de vida também. Ele agora era um verdadeiro pai de família e
agradecia isso à lição recebida naquele dia. Pôs-se ainda à disposição
afirmando que sua casa estaria sempre de portas abertas para receber os amigos.
Falou ainda que a mudança de vida havia permitido que ele conseguisse amealhar
um considerável patrimônio também.
Quando ouvi esta história à
primeira vez, indaguei do papai se ele não havia ficado com medo daquele
encontro. Sorrindo gostosamente ele me respondeu: “Medo que só passou quando a
poeira levantada pelas montarias daqueles dois homens se dissipou na estrada”.
Estas foram apenas duas das
histórias vividas pelo meu pai, um piauiense que viveu a vida intensamente e
que escreveu a maior parte dela em terras do velho Curador.
Caro piauiense de coração, José Pedro Araújo:
ResponderExcluirSuas duas breves histórias contadas pelo seu pai, do qual herdou o nome. São divertidas, hilárias, cheias de humor aliciante e nos prende a atenção até ao desfecho.
Realmente, tem razão ao definir o velho pai com tanto carinho e sobretudo com o seu aplauso de filho de um bom contador de histórias.
Sua condição de historiador e pesquisador seguramente lhe são auxiliares indispensáveis a relatar o que ouviu condição de filho admirador da memória, aliás, prodigiosa do pai, conforme nos diz.
O fato é que o filho revela o domínio de contar,ou melhor, de reproduzi-las em linguagem precisa e recheada de expressões locais que encantam o leitor aficionado de narrativas bem urdidas.
Ambas as histórias relatadas satisfazem à curiosidade de quem as lê, o que comprova a qualidade sua de vivificar o que ouvira há tempos do testemunho paterno.
Sua capacidade de descrever e movimentar os personagens lhe confere estatuto de ficcionista.
Tem domínio próprio da linguagem de sabor popular e ao mesmo tempo de conhecedor dos segredos fundamentais de quem escreve com consciência literária.
A história do cabo medroso e aleijado e a outra em que seu pai deu uma lição de coragem e de moral no marido espancador da esposa são dois exemplos dessas narrativas gostosas de se ler e até de repassar aos outros.
Vejo, pois, que na sua pessoa convivem bem o historirador e o ficcionista. Ambos estão armados do mais indispensável instrumento de narrativa, repito, o manejo lúcido da linguagem, embebida certamente em bons autores sem os quais não só o talento basta, mas deve ser acompanhado da vocação de escritor. Parabenizo-o por todas essas virtudes.
Um abraço piauiense de
Cunha e Silva Filho
Meu caro Cunha e Silva Filho,
ResponderExcluirSomente hoje retornei de uma viagem de uma semana que me impediu de agradecer humildemente as belas e alentadoras que escreveste ao comentar o texto acima. Entretanto, fui alertado sobre isso pelo nosso querido Poeta Elmar Carvalho por e-mail, e de onde estava, pude apreciar e me emocionar com o texto belíssimo que escreveste a título de comentário sobre meu escrito.Poucas vezes pude me emocionar tanto com alguém, sobretudo alguém que nem ao menos tive o prazer de um breve contato pessoal. Agradeço-te pelas palavras ditas,mesmo tendo perfeita consciência sobre o meu pequeno cabedal de conhecimentos sobre o assunto tratado, apesar do muito que me esforço para adquiri-lo. Li o belo texto lá no retiro serrano em que,juntamente com a minha mulher, nos encontrávamos, e vi que ela também ficou emocionada, principalmente pelo jeito carinhoso com que foi concebido mas, e sobretudo, pela forma bela e bem concatenada como as ideias saíram da sua pena. E não se contendo, falou: como escreve bem esse rapaz! Quanto a isso, também estávamos em perfeito acordo. Um forte abraço!
Não se trata de jogar confete, já que não mais estamos no período momesco, mas o que o Cunha disse sobre o Araújo, e o que o Araújo escreveu sobre o Cunha eu endosso, e por conseguinte assinaria embaixo.
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