Entre o "diário
perdido" e a recuperação pela memória
Cunha e Silva Filho
As memórias são construídas entre o perdido e relembrado. Ao escrever suas memórias o
autor muitas vezes lamenta consigo mesmo porque não havia feito a cronologia
dos principais lances de sua
própria história. Ah, se
tivesse escrito aqueles lances que tanta significação teriam no futuro! As memórias, assim, perdem
momentos iluminados do ser diante da passagem da vida. Incidentes que não deveriam ser apagados mas escritos na velha forma de
diários, de um diário que
anotasse, ao longo da vida, nomes, paisagens, diálogos, pensamentos,
confissões, divagações sobre as artes, o
ser humano, a existência, aqueles bons ou maus instantes do pretérito.
Só na ficção poder-se-ia recapturar
todo esse novelo de fatos através da manipulação livre através do recursos narrativos das anacronias
ou meramente pela cronologia tradicional.
As memórias sobrevivem de perdas e de esquecimentos voluntários ou inconscientes.
Aquele encontro com a primeira
namorada, com um grande amigo, com um professor que nos encantou, com as
inúmeras conversas com nossos pais. Quantas coisas perdidas para sempre que não podem mais ser socorridas pela
capacidade limitada da retentiva!
Que pena! Perderam-se, desta forma,
talvez os melhores pedaços de
nossas vidas na infância, na
adolescência, na vida adulta. O que
ficou foi a súmula incompleta de
retalhos do passado. Por essa razão, as memórias são apenas uma parte que nos vem à tona de forma involuntária ou porque forçamos a barra para que
fatos acontecidos, diálogos,
incidentes e acidentes possam vir ao
presente.
As memórias não são apenas
relatos lembrados, mas reconstruções
do passado pela linguagem
que, muitas vezes, as ficcionaliza a fim de
preencher os gaps, as ausências,
as impossibilidades amnésicas.
A essas impossibilidades de recuperação do tempo perdido chamaria de "diário perdido". Todo ser humano tem em
potencial esse "diário perdido". Seria possível escrever-se um
tipo de cronologia dessa natureza? Creio que não. Mesmo porque
quando somos tão crianças ainda não estamos preparados
para botar no papel o que nos aconteceu
há cinquenta anos, por exemplo.
Mas, quanto lamentamos a
perda do tempo que vivemos, sobretudo os melhores dias
de nossas vidas: a infância e a
adolescência. Contudo, é claro que esse "diário perdido" levaria o
narrador quase a uma reprodução mais
abrangente dos fatos passados. Já
imaginaram um romance que pudesse ter acesso a esse "diário perdido"?
O mesmo se dá com as fotos
que não tiraram de nós quando pequeninos. Eu mesmo nunca saberei como
foi a minha fisionomia de bebê, com três anos, com
sete anos, em foto em que
aparecesse os meus pais junto de mim . Hoje em dia, que profusão de fotos possuem os novos
pais com a facilidade
permitida pelos celulares, pela
internet. As crianças de hoje não
terão, na sua maioria, esse problema de
lamentar as imagens perdidas,
nunca gravadas pelas câmeras dos celulares, tabletes etc.
Vivemos a época mais intensa das
imagens de nossos corpos, de paisagens,
de eventos, de closes e
ainda mais de filmagens
de tudo e de todos. Tudo se
grava, tudo se fotografa. É o reinado do vídeo. Além de o
vídeo nos mostrar a imagem, ainda
nos permite ouvir a voz de todos
que nele aparecem.
Ora, todas essas novidades virtuais serão
úteis aos memorialistas do futuro, que
lidarão cm novos instrumentos
de recuperação de fatos de sua
história pessoal ou coletiva.
Quem sabe, as memórias do futuro serão apenas em parte faladas,
em parte vistas.
Mas, o que me traz a este artigo são as
memórias à moda antiga, aquelas cultivadas por escritores, me limitando apenas
aos nossos, Joaquim Nabuco, Humberto de
Campos, Gilberto Amado, Graciliano
Ramos, Álvaro Moreira, Érico Veríssimo.
No Piauí, já contamos com um bom número
de livros de memórias ou que se assemelham a estas, ou mesmo se
incluiriam em memórias ficcionais. Já formaria assim um corpus de matéria memorialística
para pesquisadores. Quem se aventura?
Só para citar os autores que me chegaram
ao conhecimento: Eleazar Moura (Amarante antigo – alguns homens e fatos; Nasi
Castro (Amarante – um pouco da história
e da vida da cidade, Amarante – folclore e memória; Cunha e Silva (Copa e
cozinha);Homero Castelo Branco (Ecos de Amarante); Celso Barros Coelho (Tempo de memória); Olemar de
Souza Castro (Minhas duas pátrias, Sob o sol
poente); Assis Fortes (Memórias
de mim, histórias dos outros); Francisco Miguel de Moura (O menino quase
perdido); William Palha Dias (Memorial de um obstinado); José Ribamar Garcia (E depois, o trem); Jesualdo Cavalcanti Barros (Tempo de contar); Elmar
Carvalho (Confissões de um juiz);Geraldo Almeida Borges (Província submersa –
crônicas Teresinenses (século XX).
Na impossibilidade deste tão ansiado
"diário perdido", os autores,
todavia, não abdicam de seu direito de recordar o que de outra
forma seria para sempre sepultado como
matéria rememorativa, perdendo com
isso grandes relatos de escritores sobre si e sua época. Sem obras dessa
natureza, empobreceria também, no seu
conjunto, a história literária
brasileira.
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