Foto meramente ilustrativa |
Belas tardes de domingo
José Pedro Araújo
Contista, cronista e romancista
Existem coisas que marcam a fogo
a nossa memória para sempre e, invariavelmente, tornam do canto escuro em que
ficaram guardadas eternamente, despidas da parte ruim, é claro, para nos
inundar de saudades. A maioria delas é composta por acontecimentos simples que,
quando damos conta delas para outrem, ficam sem entender onde reside a graça
daquilo que dizemos. Para nós, entretanto, elas são tão importantes quanto
pequenas joias de valor incalculável, pois nos levam para o passado mais alegre
da nossa pretérita existência. Essas lembranças, muitas vezes, são trazidas até
nós sempre que alguma coisa nos acontece, como quando ouvimos uma velha música
de que gostamos, e ela sempre vem acompanhada pela lembrança de um lugar, de
uma pessoa, ou mesmo de um fato acontecido quando a ouvíamos.
O tempo vai passando, a idade vai
chegando sorrateira com suas dores e suas cores cinzentas, mas traz
costumeiramente também lembranças muito queridas para nós. Uma dessas
lembranças simples e duradouras nos dá conta do que acontecia nas tardes
dominicais do meu Curador.
Nos primeiros anos dos sessenta,
havia pouca coisa para se fazer numa cidade tão pequena e desprovida de opções
de lazer como a nossa. Para os aficionados pelo futebol, sempre restava o velho
radio de pilhas e suas ondas médias, que traziam até eles o som das
transmissões futebolísticas, por exemplo. Sentados confortavelmente em cadeiras
espreguiçadeiras, esses torcedores sertanejos ouviam com atenção os ataques de
histeria dos locutores quando algum atacante do seu time favorito se aproximava
do gol adversário. Às vezes, não havia o jogador ainda ultrapassado a linha que
divide o gramado, mas eles já carregavam na emoção e deixavam o sofrido
torcedor com a impressão de que a bola já estava quase dentro do gol adversário.
Para a garotada, porém, restava
pouco o que fazer. Assim, tinha que se agarrar em alguma coisa para ocupar o
tempo que se escoava vagarosamente rumo ao anoitecer. Tocavam a inventar
brincadeiras e a buscar emoção nas coisas à disposição e tão corriqueiras. Sem
alumbramento, entretanto.
Uma dessas possibilidades de dar
um pouco de alegria às tardes de domingo, aconteceu quando um empresário da
cidade, Zé da Cruz, adquiriu um caminhão novinho em folha, para transportar
mercadorias e produtos relativos à sua atividade empresarial. Corria ai, como
já falei, o inicio dos anos sessenta, e existiam poucos carros na cidade ainda
inexpressiva. De modo que a simples aquisição de um veiculo por algum dos
moradores da cidade já era assunto para ser tratado nos pontos de maior
ajuntamento de pessoas, como a praça da matriz, o mercado central ou mesmo as
igrejas.
Como ia dizendo, o caminhão do Zé
da Cruz era uma das novidades mais alvissareiras da localidade e todo mundo
queria conhecer o tal veículo motorizado e, se possível, desfrutar do seu
conforto, dando uma voltinha nele. Nem precisava ser na cabine. Na carroceria
já estava de bom tamanho. Não posso
negar, fiquei encantado com aquele Chevrolet branco e de para-lamas pintados na
cor azul (se não me falha a memória).
Logo que fiquei sabendo da novidade, convidei meu pai, grande amigo do
empresário, a lhe fazer uma visita. Era uma tarde linda de domingo e o sol
brilhava forte, cobrindo de amarelo toda a região presidutrense. Com muita
luta, meu pai acedeu ao meu convite e dali a pouco partimos em direção à praça
da matriz. A casa a qual nos destinávamos ficava em uma das esquinas da praça
principal da cidade. E, como sempre acontecia, fomos recebidos com o maior
carinho e afeto pelo casal de amigos. Como não poderia deixar de ser, a
conversa logo enveredou para a chegada do novo transporte, recentemente
adquirido.
Conversa vai, muda para as
novidades da politica, depois volta ao assunto que nos levara até ali. E eu
ali, quieto e esperançoso. Esperançoso que o anfitrião nos convidasse para
conhecer a novidade. Mas, como em muitas coisas da minha vida, aconteceu
melhor. Em dado momento, Zé da Cruz perguntou ao amigo (depois sócio em uma
loja de tecidos), por que não davam uma voltinha no Chevrolet. Ai, não me
aguentei e já levantando da cadeira clamei em alto e bom som: claro que meu pai
aceita! Posso ir junto?
Bom. O que aconteceu depois, não
recordo muito bem. Nem mesmo quem dirigiu o caminhão, pois o seu proprietário
não possuía habilitação para guia-lo. O que eu sei, com certeza, foi que logo
estávamos passeando pelas ruas empoeiradas da cidade. Meu pai ia na cabine
(boleia) junto com o proprietário, e eu encarapitado na carroceria, seguro ao
gigante. E daí a pouco, a carroceria estava repleta de gente. Adultos, crianças,
mulheres e homens, somavam um só e coeso grupo: a trupe dos cidadãos mais
felizes da cidade.
Ah! Quem nunca experimentou
aquele vento frontal no rosto, fresco e a despentear-lhe os cabelos, não faz
ideia do prazer que sentíamos naquele instante. A alegria era visível no rosto
de cada um dos sortudos que ali estava. O riso saia fácil e as gargalhadas
acompanhavam o solavanco do caminhão pelas ruas esburacadas e poeirentas. E
quando avistávamos algum conhecido, aqueles felizes passageiros acenavam inebriados
e gritavam para chamar-lhe a atenção. Queriam ser vistos naquela comitiva da
felicidade. E, de vez em quando, alguém corria atrás do carro e subia na
carroceria para aproveitar o convescote dominical. Dai a pouco, a carroceria
não cabia mais ninguém.
Se bem me lembro, fomos até muito
depois do bairro Campo Dantas, depois voltamos pela Magalhães de Almeida e
seguimos até o Varjão. Um passeio e tanto. Uma felicidade sem par. Quando o
caminhão parou na frente da casa do proprietário, a noite já cobria a cidade
com o seu manto escuro, posto não termos luz elétrica naquele tempo, apesar de
já termos sentido o prazer dessa modernidade em épocas passadas. Os postes de
pau d’arco com toda a fiação, ainda se encontravam enfiados no chão, para
atestar isso, mas o velho motor elétrico se achava fora de combate há muitos
anos. Por esta razão, ao apearmos do Chevrolet a escuridão já tomava conta da
cidade.
Quase não me continha na minha
alegria ao volta para a nossa casa. Meu pai, como sempre fazia, estimulava o eu
prazer ao concordar que aquela havia sido uma tarde de domingo sem igual.
Durante muitos outros domingos, sempre à tarde, ainda voltamos a nos deleitar
com aquele passeio. Entretanto, quando o caminhão se achava em viagem, ou sem
gasolina, pois ainda não existia um posto do combustível na cidade, a decepção
era total. Estava acostumado demais com aquele sacrossanto passeio dominical.
Não me recordo também quando teve isso fim, e nem por que terminaram com o
nosso lazer especial de domingo. Minha memória não guardou essa informação.
Sei apenas que durou o tempo
suficiente para que não me esqueça jamais de como era doce e agradável aquelas
tardes ensolaradas e o especialíssimo passeio sobre a carroceria do caminhão
Chevrolet. Hoje em dia, mesmo possuindo nosso automóvel até certo ponto
confortável, não sinto o mesmo gosto, a mesma sensação ao passear pelas ruas.
Aquele vento fresco batendo no rosto, brincando com os meus cabelos, é uma
sensação que guardarei na memória para sempre. Belas tardes de domingo!
Fonte: blog Folhas Avulsas
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