A Bela dos Diários
Dílson Lages (*)
O professor de Teoria Literária Salvatore D'Onofrio, em
Teoria do Texto - Prolegômenos e Teoria da Narrativa, evidencia que "os
personagens constituem os suportes vivos da ação e os veículos das ideias que
povoam as narrativas". Por essa razão, segundo o pesquisador, o estudo dos
personagens deveria ocorrer simultaneamente ao das sequências narrativas,
porque "a caracterização dos personagens ilumina o sentido da história e
vice-versa".
A assertiva de D'Onofrio serve para dialogar com os temas e o
estilo de "A Bela dos Diários", reunião de treze contos de
Austregésilo Brito, nome de obra já consolidada
na literatura piauiense, por meio de livros de contos como Fetiche e
Algodões. Austré Brito centra-se em praticamente todos os contos - como uma das
estratégias maiores da interlocução com os leitores - no superdimensionamento
dos personagens e das ambientações em que eles se inserem. Esse, alias, é sem
dúvidas o ponto de partida da gênese de suas criações, ponto em torno do qual
organiza estrutural e semanticamente suas narrativas. Ao fazê-lo, sua
perspicácia e estilo selecionam exclusivamente detalhes-ações que se
inter-relacionam, e paradoxalmente tornam a escritura mais exata, mais fluente.
Enfatizando esses elementos, consegue o escritor provocar os
leitores, ao transferir características do ambiente para os personagens e
vice-versa, em processo de humanização da paisagem, por meio do qual ganham
impulso as representações mentais e as associações que asseguram o deslanchar
da leitura, reiteradamente, em passagens como: "O pai na bodega, o dia
todo. Caminhava pra lá e pra cá, do balcão ao armazém. De passagem pela
cozinha, olhava de esguelha para Elzzira. Ela correspondia. arregaçava o
vestido colado ao corpo, mostrava as coxas (O primeiro amor, p.41). Quase um
Albergue. Fachada comum, porta larga ao centro separava os janelões. Corredor
longo da entrada à sala de jantar, de onde seguia outro corredor menor,
estreito, até a cozinha ampla e semiaberta(...). No hall, o banheiro e o
dormitório de dona Judite (Casa de pensão, p.57)”.
Assim é que, respectivamente, a angústia pela consumação do
encontro amoroso, acentuado pela distância dos lugares sociais de ambos (o
quitandeiro e Elzzira) naquele momento, funde-se ao espaço, a partir da
ansiedade gerada pelos movimentos do quitandeiro e da própria Elzzira. Assim é
que o desejo de controle que almejava ou pensava em ter dona Judite sobre sua
pensão se apresenta na associação entre a disposição da arquitetura do recinto
em que reside e o perfil do personagem em construção, mais evidente à proporção
que a narrativa avança até apontar a avareza peculiar à proprietária da pensão.
Mantendo a linha de outras produções, divide-se o escritor
entre dois grandes eixos. Divide-se entre o mergulho nas insatisfações e
contradições da materialidade do amor, em textos de acentuado apelo erótico, e
o desnudamento de dramas sociais ou das situações pitorescas das pequenas
comunidades e sua gente; com a revelação, em plano secundário, de traços
característicos do ethos da paisagem social dos lugarejos.
Na primeira parte de A bela dos Diários, os leitores se
absorvem com narrativas cujo cerne é as contradições da paixão cega. Em algumas
sequências, a ênfase com que o tema é tratado pode até chocá-los, dada a
contundência do léxico ou a estilização da vulgaridade em que se revertem as
cenas fundamentais dos núcleos narrativos. Personagens como Consuella, Jéssica
e Úrsula – mesmo que focalizadas exclusivamente pelo olhar do desejo – e
exaustivamente erotizadas, reduzidas à condição de objeto do amor – resumem
o mistério e encantamento da sedução.
Nesse sentido, recriam os narradores a aura de perplexidade
própria do jogo erótico e impulsionam as carências que alimentam o prazer.
Assim, deparam-se os leitores com personagens masculinos hipnotizados, à
procura de explicações que não encontram ou à busca de se libertar da paixão.
Confirma-se, por meio desses personagens, o que explica Maria Rita Kehl, em
estudo sobre o olhar da sedução: “O olhar seduzido é perplexo. Procura recobrar
o domínio de si mesmo”.
Na segunda parte do livro, os leitores encontrarão episódios
pitorescos, que resgatam a temática dos contos populares, sem, contudo,
estereotipar a linguagem ou modificar o modo de contar próprio de Austré.
Nesses contos, a paisagem e os personagens, humanizados pela imaginação pessoal
dos leitores, dão margem a antigos costumes de pequenos lugarejos,
desemborcando, sempre, em inesperada situação de humor, ou, fugindo à regra dos
temas dessa parte, em denúncia social - caso específico de “O caos”, no qual o
drama de se locomover pelo tráfego de Teresina-PI é tratado de maneira
inusitada.
“Em literatura, todo conteúdo está associado a um colorido
emocional, que faz parte da informação transmitida pela obra”, escreve Vicente
Jouve, enfatizando que “os textos quase sempre exemplificam emoções (a dor, a
insatisfação, a tristeza), por meio de propriedades formais que as exprimem
metaforicamente”. Em A Bela dos Diários, essas emoções possuem lugar certo:
personagens e ambientes que dão corpo e substância à linguagem. O leitor é
capturado pelos dramas, carências e desejos de cada personagem ou sorri de
situações que a literatura, como a vida, revela-nos inesperadamente.
(*) Dílson Lages Monteiro é professor, diretor do Portal e
Editora Entretextos e membro da Academia Piauiense de Letras (APL). E-mail: dilsonlages@uol.com.br
Fonte: portal Entre-textos
Fonte: portal Entre-textos
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