segunda-feira, 18 de julho de 2016

AS TREMPES


AS TREMPES

Jacob Fortes

Trempe, para efeito deste texto, são três pedras dispostas em triângulo em que se assentava a panela ao fogo. Essa prática, herança avoenga primitiva, ocorria entre as comunidades caboclas; a bem dizer matutos ingênuos que habitavam os cafundós dos sertões e que, sob a condição de meeiros, retiravam da terra o seu sustento. Com o evolver das tecnologias e do progresso social as trempes desusaram-se. Hoje elas exprimem heresia à religião tecnológica e profanação ao santuário Brastemp. Depois que o homem do asfalto passou a guiar-se pelo piloto automático, imposição, aliás, do principio hedonístico que sintetiza, em dimensões mundiais, a lei do menor esforço, essa desaparecida prática, vestígio do atraso, se fez soberba na gleba aldeã das minhas primícias. Restou o desenho imaginativo dessa gleba; onde deixei o meu cavalo comendo capim nos tabuleiros. Recentemente sonhei que ele reapareceu na capital de Juscelino, transfigurado: os cascos rotundos viraram pneus e o capim virou gasolina agonienta. Ao despertar dos devaneios, que fugiram silenciosa e furtivamente, ainda retive a pálida imagem: um menino descamisado, galopando em seu “bolero”, ruço pedrês, pelos tabuleiros.

À época, o compartimento das trempes era o local mais palatável à tropa da creche. Nessas trempes, abastecidas de lenha em queima, o sertanejo preparava a sua dieta, à moda do seu tempo. Exemplificativamente: café da manhã: cuscuz na tigela, com leite de cabra e café no bule (coado num pedaço de pano). A sêmola do milho havia de ser cozida a vapor: uma panela fervente, um pedaço de pano e prato de ágata no papel de cuscuzeira; beiju; abóbora, ou batata doce, cozida, com casca. Almoço: Maria-isabel de carne seca (não de sol como supõe o praciano), farofa de ovo na gordura de porco ou no azeite de tucum. Alternativamente frito de carne seca (ou de tripa) com arroz, este pilado no pilão de socar. Com tantas enxadas e labutações caseiras, adeus adiposidade.

Visualizar essas trempes nos dias de hoje só é possível por meio do Google ou às margens de um ribeirão quando um pescador eventualmente lhe restabelece o uso para que os tições em brasa o aqueçam durante as cruvianas noturnais e orvalhadas.

Eis, portanto, resumidamente, as trempes, a quem deito reverentemente o meu olhar compassivo e memória saudosa. Apesar da sujidade do seu borralho, particularidade que lhes eram marcantes, as trempes realçam uma infância desfrutada de modo farto; custodiada por uma gente (sem acessórios e sem fidalguia) que apesar de diminuída na incultura cerimoniosa do sertão tinha como principal atributo a riqueza da virtude (que tende ao desuso; igualmente às trempes). Que bom seria se os citadinos fizessem da virtude algo tão espontâneo quanto os matutos faziam dos pleonasmos uma cantiga: “entrar pra dentro, hemorragia de sangue, labareda de fogo, etc.”.   

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