AS TREMPES
Jacob Fortes
Trempe, para efeito deste texto,
são três pedras dispostas em triângulo em que se assentava a panela ao fogo.
Essa prática, herança avoenga primitiva, ocorria entre as comunidades caboclas;
a bem dizer matutos ingênuos que habitavam os cafundós dos sertões e que, sob a
condição de meeiros, retiravam da terra o seu sustento. Com o evolver das
tecnologias e do progresso social as trempes desusaram-se. Hoje elas exprimem
heresia à religião tecnológica e profanação ao santuário Brastemp. Depois que o
homem do asfalto passou a guiar-se pelo piloto automático, imposição, aliás, do
principio hedonístico que sintetiza, em dimensões mundiais, a lei do menor
esforço, essa desaparecida prática, vestígio do atraso, se fez soberba na gleba
aldeã das minhas primícias. Restou o desenho imaginativo dessa gleba; onde
deixei o meu cavalo comendo capim nos tabuleiros. Recentemente sonhei que ele
reapareceu na capital de Juscelino, transfigurado: os cascos rotundos viraram
pneus e o capim virou gasolina agonienta. Ao despertar dos devaneios, que
fugiram silenciosa e furtivamente, ainda retive a pálida imagem: um menino
descamisado, galopando em seu “bolero”, ruço pedrês, pelos tabuleiros.
À época, o compartimento das
trempes era o local mais palatável à tropa da creche. Nessas trempes,
abastecidas de lenha em queima, o sertanejo preparava a sua dieta, à moda do
seu tempo. Exemplificativamente: café da manhã: cuscuz na tigela, com leite de
cabra e café no bule (coado num pedaço de pano). A sêmola do milho havia de ser
cozida a vapor: uma panela fervente, um pedaço de pano e prato de ágata no
papel de cuscuzeira; beiju; abóbora, ou batata doce, cozida, com casca. Almoço:
Maria-isabel de carne seca (não de sol como supõe o praciano), farofa de ovo na
gordura de porco ou no azeite de tucum. Alternativamente frito de carne seca
(ou de tripa) com arroz, este pilado no pilão de socar. Com tantas enxadas e
labutações caseiras, adeus adiposidade.
Visualizar essas trempes nos dias
de hoje só é possível por meio do Google ou às margens de um ribeirão quando um
pescador eventualmente lhe restabelece o uso para que os tições em brasa o
aqueçam durante as cruvianas noturnais e orvalhadas.
Eis, portanto, resumidamente, as
trempes, a quem deito reverentemente o meu olhar compassivo e memória saudosa.
Apesar da sujidade do seu borralho, particularidade que lhes eram marcantes, as
trempes realçam uma infância desfrutada de modo farto; custodiada por uma gente
(sem acessórios e sem fidalguia) que apesar de diminuída na incultura
cerimoniosa do sertão tinha como principal atributo a riqueza da virtude (que
tende ao desuso; igualmente às trempes). Que bom seria se os citadinos fizessem
da virtude algo tão espontâneo quanto os matutos faziam dos pleonasmos uma
cantiga: “entrar pra dentro, hemorragia de sangue, labareda de fogo, etc.”.
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