Cidade matriz
Clóvis Moura (1925 – 2003)
Uma cidade do interior. Não apenas
geografia. Mas a família, o
sangue e eventos.
Aí paramos um dia, no regresso.
Dali saímos um dia, para a posse
que não se realiza.
Margeamos
a vida. E a cidade triste,
decadente, persiste. Os parentes
estão morrendo,
os defuntos repousam lado a lado,
os tatus perfuram o cemitério,
há cheias, invasões, o rio sobe,
chega ao muro dos despojamentos
e a cidade permanece.
Decadente.
Contudo ali temos raízes.
Dali saiu um poeta sorridente.
Morreu doido, contudo
deslumbrado.
Morreu louco, nostálgico da
serra.
Nos poros da
cidade há casas mansas.
Numa nasceu o pai. Noutra morreu
o avô patriarca. Sempre estamos
em qualquer parte. Ali: uma
criança
que chorou numa sala, teve cabra
mansa que vinha ao quarto com o
seu úbere
cheio de leite para o aparecido.
Uma criança na cidade mansa
e o cemitério triste onde os anus
sujam as lápides. Uma cidade só.
Num mapa sujo. Num momento
imundo.
As
moças não se casam.
Fazem crochê e doces. Salpicadas
de desejos definham. Vem o moço
de outra cidade. Namora e
desilude.
O
rio sem piedade leva os primos
para as cidades grandes. E
aparece
convite para o enlace em outra
terra.
Espirais de suspiros. Depois,
rezas
na igreja onde o padre ouve os
pecados.
... As andorinhas sujam a hora
sagrada.
E
a lua nova salpica de lobisomens as sombras das gameleiras.
(Extraído do livro Argila da
Memória, 2ª edição – Edições Corisco)
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