Foto meramente ilustrativa |
Escritor, historiador e membro da APL
Descoberto o vasto sertão do Piauí
iniciou-se a lenta marcha de desbravamento e conquista territorial no objetivo
de assentar a base colonial portuguesa. Desde o ano de 1662, bandeirantes
paulistas armam as tendas do primeiro arraial nas margens do riacho de Santa
Catarina, sendo o mesmo denominado Arraial dos Paulistas. Logo mais, a Casa da
Torre, então sob o comando de Francisco Dias d’Ávila e de seu sócio Domingos
Afonso Sertão, assenta a caiçara dos primeiros currais nos vales ribeirinhos,
sendo 129 as fazendas ao final do referido século XVII. No início do século
seguinte ainda estava o nosso sertão em plena era de conquistas, oportunizando
a muitos portugueses vir aqui viver a sua epopeia colonial, desbravando terras
e implantando currais. Estavam, assim, ao mesmo tempo adquirindo patrimônio
particular e alargando o domínio de sua pátria portuguesa. Não faziam nada de
errado, estavam conquistando e construindo uma nova sociedade dentro dos padrões
do cristianismo, do capital e do trabalho.
Entre os que chegaram ao tempo de
conquista do sertão estava João Rodrigues de Miranda, casado com Josefa de
Sousa. O casal se estabeleceu na fazenda Buriti, na margem do Riacho do Brejo,
também chamado Brejo do Buriti, afluente do Riacho Fundo, no médio curso do rio
Piauí. No Mapa de Henrique Antônio Galluzzi(1760), aparece como fazenda com
capela, o que denota a fé cristã dos moradores. Todavia, mesmo arriscando suas
vidas para afastar os indígenas e colonizarem os novos domínios, inicialmente,
são obrigados a pagar renda aos Regulares da Companhia de Jesus, como
sucessores de Domingos Afonso Sertão, no valor de 10$000 (dez mil réis) anuais.
Depois adquiririam a fazenda(AHU-Piauí - Cx. 4 – D. 4; Cx. 25 – D. 60; Cx. 4 –
D. 309). Alargando seus domínios e aumentando o rebanho, cedem novas conquistas
aos dois filhos mais velhos, que as situam com gado vacum e cavalar, sendo a
fazenda Trindade dada a Antônio Pereira de Miranda e a fazenda Guaribas a
Francisco Félix de Miranda, ambas sendo retiro da do Buriti. Em 1764, este
último filho aparece como intendente arrecadando alimento (gado e farinha), em
sua região, para abastecer as tropas de combate aos índios Pimenteiras. Depois
muda-se para o Gurgueia. Além desses dois filhos mencionados, o indicado casal
ainda deixou os filhos José, Ignácio, Luiz e João Rodrigues de Miranda.
Pois bem, Ignácio Rodrigues de
Miranda nasceu 1737, provavelmente em 31 de julho, dia consagrado a Santo
Ignácio de Loyola no calendário cristão. Foi quem herdou a fazenda, nela
vivendo até o fim de sua vida, criando gado e administrando a lavoura e
escravatura. Viveu com abastança.
Além de fazendeiro, foi também
militar e político. Desde a mocidade assentou praça de soldado Dragão, de onde
galgou o posto de ajudante das primeiras ordenanças, posteriormente extintas.
Em 1776, teve seu nome proposto para o mesmo posto de ajudante do Terço de
Cavalaria Ordenança, porém, não sendo aceito em face de não encontrar-se
servindo na mencionada tropa ao tempo da proposta, assumiu em seu lugar, Félix
do Rego Castelo Branco.
No entanto, no ano seguinte foi promovido
ao posto de capitão do mesmo Terço de Cavalaria Ordenança da Capitania de São
José do Piauí, atendendo à indicação ainda de 24 de fevereiro de 1776. Nesse
posto realizou inúmeras diligências e prestou relevantes serviços à sua terra.
Na carreira política foi eleito por
diversas vezes, vereador, presidente do Senado da Câmara e juiz ordinário da
cidade de Oeiras, então capital do Piauí.
No ano de 1781, na falta de ouvidor
letrado, foi eleito ouvidor-geral da capitania pela lei, assumindo essa elevada
magistratura em 2 de janeiro do ano seguinte. E, por força da lei, tendo em
vista a vacância do cargo de governador, para atender o disposto no Alvará
Régio de Sucessão, assumiu na mesma data a chefia da Junta de Governo do Piauí,
sendo auxiliado por dois adjuntos, o sargento-mor Manoel Pinheiro Ozório e o
vereador Antônio Gameiro da Cruz. Sendo reeleito pelo Senado da Câmara,
permanece no exercício desses dois cargos até 2 de janeiro de 1784, quando
transfere as funções ao sucessor Marcos Francisco de Araújo Costa. No entanto,
retornou às funções, por poucos dias, durante o mês de junho de 1784.
Nesse mesmo período, acumulou também
as funções de provedor da real fazenda e dos defuntos e ausentes, capelas e
resíduos, corregedor da Câmara, com alçada, chanceler juiz das justificações de
índio e mina, e dos feitos e agravos da Coroa, vedor e auditor geral da gente
de guerra, com alçada cível e criminal, e mais anexos.
Conforme se vê, durante dois anos
consecutivos(2.1.1782 – 2.1.1784), acumulou a justiça e a chefia administrativa
do Piauí, enfeixando, assim, grande soma de poderes. Figura, pois, entre os
governantes do Piauí.
Durante sua gestão conduziu-se com
altivez e independência, entrando em rota de colisão com o ajudante Antônio do
Rego Castelo Branco e seus familiares. Então, em 1783, porque um preto cativo
de nome João, encarregado de cortar carnes no açougue da cidade, fora à sua
casa fazer-lhe a barba, ao retornar ao açougue foi injustamente preso na cadeia
pública, carregado de ferros, por ordem do almotacé Manoel José dos Santos,
aliado de Rego. Era um ato de provocação, valendo-se o almotacé da autoridade
do cargo. Em represália, ignorando a imunidade do funcionário, Miranda manda
pôr o mesmo debaixo de ferros na cadeia pública, por duas horas. Desde então,
passou a sofrer as maiores perseguições por parte de Antônio do Rego e seus
seguidores, que manipulando os vereadores, fizeram diversas representações
contra sua pessoa, até conseguirem uma punição em maio de 1788. É que Miranda
não podia prender o almotacé, apenas afastá-lo das funções(AHU. Cx. 016. D.
838).
Todavia, em 1786 o ajudante Antônio
do Rego Castelo Branco se confronta com o padre Dionísio José de Aguiar,
vigário de Oeiras. E durante processamento de devassa o capitão Ignácio
Rodrigues de Miranda, comparece em juízo dia 10 de outubro daquele ano, para
dar testemunho em favor do vigário. É qualificado como “natural e morador nesta freguesia e da governança desta cidade, na
qual serviu de ouvidor pela lei, de idade que disse ser de quarenta e nove
anos, pouco mais ou menos, que vive de seus bens” (AHU. Cx. 14. D. 820; Cx.
15. D. 825, 827, 829 e 832).
Ignácio Rodrigues de Miranda era um
homem extremamente católico, devoto de Nossa Senhora da Conceição e de Santo
Antônio de Lisboa, ou de Pádua, cujas imagens à vezes levava consigo durante
espinhosas missões militares. Era também de visão elevada, com instrução acima
da média, sendo possível que tenha estudado com padres jesuítas no colégio de
Salvador, ou na companhia de parentes em Portugal. Durante seu indicado
depoimento em favor do padre Dionísio, atacou Antônio do Rego, mostrando
altivez, independência e consciência política, ao declarar:
“que
ordinariamente os que costumam servir na governança desta cidade são homens
fazendeiros, e por isso pouco experientes nos negócios políticos e públicos,
aproveitando-se por isso o dito Rego para os dirigir; e outrossim disse que é
bem verdade que o dito Rego todas as vezes que se não segue os seus ditames,
não perde a ocasião de se vingar daquela pessoa procurando por falsas ideias e
calúnias deitá-la a perder muito principalmente aqueles que lhe podem fazer
alguma sombra, e por isso ouve muitos queixarem-se de seu gênio orgulhoso e
vingativo” (AHU.
Cx. 14. D. 820; Cx. 15. D. 825, 827, 829 e 832).
Conforme se vê, era um
inquebrantável piauiense que não se dobrava a conluios políticos, pugnando ao
lado de outros denodados como Marcos Francisco de Araújo Costa e Domingos Gomes
Caminha.
Na carreira militar, merece
referência a exitosa entrada que fez contra os índios Pimenteiras, em 1790. Por
aqueles dias essa nação vinha causando preocupações nas cabeceiras do rio
Piauí, atacando fazendas e matando pessoas e animais domésticos. Aterrorizados,
muitos colonos ameaçavam abandonar as fazendas. Muitos são os relatos de
desinteligências entre os indígenas e colonos, que, à medida que avançavam com
fazendas pelas cabeceiras daquele rio, iam reduzindo a área dos indígenas. A
estes só restava atacar as fazendas e tentar recuperar o antigo território. Foi
esta a última grande nação indígena que habitou o território piauiense,
resistindo até princípio do século XIX, ajudados pela geografia local, pois
abrigavam-se em plena caatinga entre as costaneiras e reentrâncias serranas do
Piauí, fronteiriças à Bahia. Algumas entradas
anteriores, feitas pelo tenente-coronel João do Rego Castelo Branco e seus
filhos Félix e Antônio do Rego, haviam sido infrutíferas. Assim, pouco se sabia
sobre esses indígenas, ignorando-se a quantidade e força. Eram de língua
desconhecida, mesmo pelos indígenas que integravam as tropas, entre esses
Acoroás, Gueguês, Jaicós e Timbiras. Dizia-se que eram rebelados do rio de São
Francisco, mas não se sabia ao certo. Portanto, era muito importante a obtenção
de intérpretes. Foi nessa conjuntura que o governo interino da Capitania, ainda
composto por outros membros da Junta Trina, o nomeou em 27 de fevereiro de
1790, para comandar tropa de combate aos mesmos indígenas. Nesse mesmo dia o
referido governo interino lhe comunica a nomeação na forma seguinte:
“Tendo
este governo interino notícias certas do estrago que fez o gentio na fazenda
intitulada o Cavaleiro, vamos por esta nomear a V. Mce., comandante da tropa
que V. Mce., sem perda de tempo deve formar de todos os soldados auxiliares e
ordenanças, e ainda dos que o não forem com as armas que cada um tiverem, e
puderem haver, e formada como lhe for possível, mandará municiada com a pólvora
que leva o capitão Joaquim José Vicente de Almeida, e mande com ela correr a
fronteira do mesmo gentio para o fazer retirar, e atemorizar, caso estejam
postados próximo a nós. (...). Devemos lembrar a V. Mce, que S. Maj. proíbe a
guerra ofensiva a estas nações, e que só nos concede a defensiva, por ser
direito natural cada um defender a sua vida, a sua pessoa e os seus bens, e os
do soberano de quem é vassalo” (AHU 016 – Cx. 18 – D. 929).
Mais tarde, em 8 de julho de 1790, o
referido governo interino assim comunica a situação ao capitão-general do
Estado, fazendo breve relato dos acontecimentos:
“...
e ao mesmo passo requerendo providências sobre o mesmo gentio, ao contrário
largariam suas fazendas deixando seus gados ao desamparo sem o devido benefício
por não se esporem a experimentar a tirania daquele bárbaro gentio, assim como
aqueles dois miseráveis experimentaram, em benefício dos mesmos moradores, e
dos das Reais Rendas de S. Maj., por lhe ser indubitável o acontecimento de
prejuízo com a despovoação das ditas fazendas na falta dos dízimos que delas
recebia, se incumbiu ao capitão de cavalaria ordenança Ignácio Rodrigues de
Miranda, morador na ribeira do Piauhy, a diligência de formar uma tropa para
correr as fronteiras do sertão acima referido, para o fim de se atemorizar o
sobredito gentio e retirar-se, quando estivesse postado perto de nós, (...); e
remetendo-se-lhe dez libras de pólvora com o seu competente chumbo para
municiar a dita tropa com a qual passaria o dito capitão/ a quem nomeamos
comandante dela/ao predito sertão” (AHU 016 – Cx. 18 – D. 929).
No cumprimento dessa importante
missão, conforme mais tarde relatou, se dirigiu à fazenda da Conceição com 50
soldados, fazendo ciência aos mesmos de seu objetivo e os exortou a bem o
cumprirem. Disse da importância de fazerem algumas presas, a fim de as
prepararem para intérprete em missões futuras. Então, liderando os mesmos
marchou procurando uma lagoa que fica quatro léguas distante da referida
fazenda, para daí descer em busca da aldeia indígena, correndo as fronteiras
até a fazenda o Cavaleiro. Dessa forma, chegou à referida lagoa no dia 30 de
maio, às 8h da manhã e às 14h expediu 40 homens escoteiros, nomeando por cabo
José Dias da Costa, com as recomendações de estilo. No dia seguinte(31.5.1790),
aqueles descobriram rastro fresco do gentio. E a poucos passos chegaram a uma
roça, de onde ouviram rumor de gente e pancadas de pisar pilões em duas partes
distintas. A essa altura, seguiram a uma das partes por onde um pequeno caminho
os guiava, sendo que “por milagre da
Virgem N. Sra da Conceição e do glorioso Santo Antônio, que levaram por guia,
chegaram sem ser vistos nem ouvidos pelos indígenas”. Então, os assustaram
com o disparo de quatro armas, fazendo com que corressem assustados,
aprisionando os soldados aqueles que estavam mais a jeito. Todavia, “em face dos gritos das presas e crianças,
voltaram os homens com o mesmo ímpeto, que foi necessário ao cabo com muito
trabalho e fadiga dos soldados fazer fogo ao inimigo, ficando deles quatro
mortos e dois soldados flechados, ambos varados nos braços esquerdos”. Diante dessa forte reação, fugiram os
indígenas “e de longe gritavam, lançando
por cima algumas flechas”. Então, “o
cabo mandou também gritar e disparar alguns tiros, com que tudo se acalmou”.
Diante dessa situação, “os soldados quiseram queimar tudo e custou
ao cabo controlá-los para que só queimassem as armas, inclusive imensas
flechas, trazendo algumas, de que vão duas flechas ao governo sendo uma de
ferro, que flechou um soldado”, além de dois machados e alguns outros
utensílios, disse Miranda em correspondência.
Porém, para retornar em segurança os
soldados fugiram da trilha por onde tinham ido, com receio de serem vítimas de
tocaias. Rasgando a íngreme caatinga, sem estradas, chegaram ao encontro do
capitão Ignácio Rodrigues de Miranda no dia 1º de junho.
Quatro dia depois, em 5 de junho,
Ignácio Miranda chega com seus solados e presas indígenas à fazenda da Onça, de
seus amigos Ribeiro Soares. Então escreveu ao governo interino:
“Ilmo.
Sr. Hoje, cinco de junho, me acho nesta fazenda da Onça, com a presa de cinco
índias mulheres, três crianças fêmeas, e três machos, que fazem o número de
onze, tudo do gentio das Pimenteiras, alguns dos pequenos doentes, que me é
necessário conduzi-los de cavalo, e assim os vou conduzindo com todo o amor e
zelo até donde V. Sa., for servido//Também me assiste o cuidado de que essa
cidade ainda se acha infestada das bexigas, e que indo elas para lá se lhes der
semelhante mal será certo morrerem, [ficando] V. Sa., com esse desgosto, eu com
o meu trabalho perdido, e os moradores sem esperança de alívio e no mesmo
perigo, ou em muito mais que até agora: este é o meu sentir; V. Sa., mandará o
que for servido// De todo o acontecimento que nesta diligência tem havido, breve
será V. Sa., ciente; esta só vai dirigida a dar a V. Sa., este gosto, que sei
há de ser grande; eu por ora não necessito cousa alguma, mas sempre desejo que
V. Sa., dê a providência que vir será necessária pelas fazendas da Inspeção, e
no enquanto me não chegar resolução de V. Sa., sempre me hei de ir valendo do
que me for preciso. Deus guarde a V. Sa.// Fazenda da Onça, 5 de junho de
1790.// De V. Sa., obediente súdito// Ignacio Rodrigues de Miranda”.
Mais tarde, em 14 de junho, já em
sua fazenda do Buriti, no vale do Riacho Fundo, escreveu outra correspondência:
“No
dia onze do presente mês de junho cheguei a este Riacho Fundo bastantemente
molesto, e com as índias muito destroçadas, umas sem poderem andar por razão
das muitas pedras dos caminhos, outras com febre e catarrões, mandando-as
conduzir nas garupas dos soldados, em muitas vezes com os filhinhos nos braços,
porque só corações de ferro, não terão compaixão de tal miséria, lembrando-me
ao mesmo passo do muito que V. Sa., me recomendou respeito ao amor com que
deviam ser tratados, mas o certo é que só o que não for católico, não terá
compaixão de tanta miséria”.
E noutro trecho da mesma
correspondência:
“As
índias eu sentirei se se perderem ou se forem parar onde lhes falte amor e
caridade, ou instrução para servirem de guia, no que V. Sa., não deixará de pôr
todo cuidado, como benigno pai”.
Chegando adoentado dessa missão,
recomendou ao cabo José Dias da Costa lavá-los para Oeiras.
Ao chegarem à capital faleceram de
imediato duas índias em face de doenças, febre e catarrões. Em seguida, chamam
os índios Guegués, Acoroás e Jaicós, assim como pessoas que conheciam a língua
geral e ninguém conseguiu entendê-las. Foram então distribuídas em casas de
família, a fim de que aprendessem o nosso idioma e, assim, servirem de
intérpretes em missões futuras, bem como informar sobre sua nação.
Infelizmente, esses indígenas seriam exterminados no primeiro quartel do século
seguinte, por José Dias Soares, a serviço do governo.
Depois dessa importante missão, o
capitão Ignácio Rodrigues de Miranda ainda permaneceria no posto de comandante
militar do rio Piauí, prestando relevantes serviços. Todavia, faleceu algum
tempo depois, provavelmente em sua fazenda do Buriti, onde residia. Deixou
viúva, D. Leandra Maria de Jesus e já com família constituída o filho Felipe Nery
de Miranda.
Foi um grande piauiense do período
colonial, deixando um nome honrado, grande descendência e larga folha de
serviços prestados à pátria.
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