São Raimundo Não Nascido
José Maria Vasconcelos
Professor, escritor e cronista
Se não nasceu, não viveu nem morreu
nem ressuscitou. Certo? Não. Explico já o mistério.
Anualmente, uma voltinha ao novenário
de São Raimundo Nonato, paróquia do Bairro Piçarra. Nem parece com os anos da
minha infância ou dos párocos capuchinhos que por ali passaram. Coroinha de
sete anos, eu me apaixonava pelas noites festivas de leilões, barracas, mundão
de gente que se deslocava de toda parte para a modesta capela de São Raimundo,
1955, que se erguia à direita do atual templo.
Paupérrima Piçarra, piçarrenta, sem
caçamento, sem água encanada. Um poço artesiano da Prefeitura ao lado do velho
Mercado servia à população. A ponte de madeira sobre o Poti, no final da Higino
Cunha. Por ali, passavam “caboclos” trazendo produtos agrícolas para vender na
feira. Pela madrugada, caravanas de noivos, em cavalos, vestidos de branco, soltavam
foguetes e se dirigiam ao templo para casar. Comerciantes “lavavam a burra”,
vendendo de tudo. Vaqueiros a cavalo vinham para homenagear noite deles.
Frei Eliézer, italiano queridíssimo na
comunidade, iniciou movimento para construção de novo templo, moderno e
gradioso, além de um prédio para serviço social. De motocicleta, levava-me para
acolitar a missa, ligar o som, atender a periferia. Feliz, pois meu pai só
dispunha de bicicleta, fruto da bodega. Na pobreza, Martinho e Dedé nunca negaram
à Igreja serviços e ofertas. A Divina Providência multiplicou-lhes com a
prosperidade.
Antigos paroquianos recordam-se dos
tempos heroicos de Frei Eliézer, abraçado à procissão de fiéis, nas tardes de
domingo, dirigia-se a pé, até o Poti, para encher sacos de areia para a
construção da igreja. No meio da generosidade coletiva, eu só suportava uma
latinha de areia; o frade transformava o chapuz da batina em fardo. Exibia
filmes, com entrada paga e promovia leilões. O milagre da multiplicação dos
pães e peixes em doações e sacrifícios. Suado e exausto, ele servia de pedreiro
no alto dos paredões.
Uma convocação urgente da província
transferiu Frei Eliézer de Teresina para Belém, ainda no início da cobertura do
templo. O frade abateu-se profundamente.
Dona Rita, 84 anos, reside ainda em
antiga residência, frente ao templo. Sentada, contempla o que foi entregue à
administração dos frades franciscanos. Desencantada, resume a nostalgia:
“Aquilo não é a mesma coisa. Os frades nem ligam para o novenário. Só um
tiquinho de gente nas quermesses. Até o marco da fundação do templo foi
arrancado.”
Arrancado, também, foi Frei Eliézer,
que não experimentou o parto de seus sonhos. Arrancado do ventre de sua mãe,
morta, foi Raimundo Nonato. Do latim, portanto, Não Nascido, no século 12 na
Espanha. Sacerdote da Ordem dos Mercedários, perseguido por muçulmanos, na
Argélia, por libertar escravos e cristãos da tirania. Preso, torturado e
doente, regressou à patria e faleceu, quando era escolhido para cardinalato.
Nenhum comentário:
Postar um comentário