quinta-feira, 18 de agosto de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XVII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo XVII

Prostituição e tragédia familiar

Elmar Carvalho

Com a finalidade de colher informações para o jornal mimeografado O Liberal e para futuros trabalhos no campo da história social recente e da  sociologia eborense, Marcos fez várias entrevistas com idosas e jovens prostitutas, e também com antigos frequentadores de lupanares. Ele tinha ciência própria de certos fatos, histórias e costumes, porque esporadicamente fazia as suas incursões e “vistorias”, tanto na alta como na baixa zona meretrícia, bem como sabia de fatos que lhe foram repassados pelos seus colegas e amigos. Dizia estar fazendo laboratório literário.

Em decorrência desse seu trabalho jornalístico e intelectual ficou sabendo que muitas mulheres caíram na difícil “vida fácil” após terem se entregado, em confiança, a seu noivo, que lhes prometia casamento; algumas por gosto, e outras por certa irresponsabilidade juvenil. Quando os pais tomavam conhecimento, por causa de gravidez ou não, de que a filha não era mais virgem, as expulsavam de casa. Muitos chegavam a dizer que a filha “desonrada” era um “dedo cortado fora”. Não servia para nada.

Sem estudo e sem aptidão para o trabalho doméstico, que não tinha as garantias trabalhistas atuais, muitas iam exercer o meretrício, que, ao menos enquanto eram jovens, era muito mais bem remunerado. Mas Marcos suspeitava que muitas iam em busca da chamada vida fácil, do trabalho menos estafante e mais bem pago, e algumas desejavam mesmo o hedonismo do sexo, da dança, da música e da bebida. Sentiam prazer no exercício da profissão e do gozo cotidiano e repetido com diferentes parceiros, como se isso fosse uma constante ventura e aventura.

No mês de junho alguns cabarés costumavam fazer os arraiais dos folguedos de São João e São Pedro. As quadrilhas eram animadas e tinham muitos participantes. Algumas eram bem simples, enquanto outras tinham certo requinte. Os sanfoneiros afamados eram convocados, e traziam seus parceiros, tocadores de pandeiro, triângulo, chocalho e zabumba. O carnaval também era comemorado, com bailes alegres e cheios de enfeites. Muitas raparigas ostentavam belas fantasias e enigmáticas máscaras. Os instrumentos de sopro imperavam, com repertório de esfuziantes marchinhas e saracoteantes frevos.  

Mas a prostituição tinha os seus riscos e mazelas, que seguem sinteticamente enumerados: gravidez indesejada, doenças venéreas, sífilis, abusos de homens grosseiros ou embriagados, logro na hora do pagamento dos honorários e brigas com outras raparigas e homens por causa de ciúmes e outras rixas, às vezes antigas, que afloravam durante as bebedeiras. Muitas mulheres, quando não recebiam o pagamento combinado, puxavam uma lâmina de barbear, uma faca ou um canivete para compelir o parceiro a cumprir a avença verbal. Se mesmo assim o homem não efetuava o pagamento, algumas chegavam a lhes provocar lesões, havendo mesmo alguns casos de morte. Por causa de indesejada gravidez, alguns abortos eram executados pelas “fazedoras de anjos”, mediante perigosas beberagens e curetagens.

Algumas dessas mulheres, as mais belas, mais jovens e mais afortunadas, eram aceitas no alto meretrício, onde tinham quarto e cama mais confortáveis, mais higiênicos, e onde a comida era de melhor qualidade. Outras, as mais feias ou mais velhas, só conseguiam alugar um quartinho, guarnecido apenas por uma tosca e estreita cama, de colchão de palha, e uma rústica mesinha, sobre a qual eram colocados um espelho pequeno, uma bacia de alumínio, um litro com água, um sabonete, quase sempre da marca Gessy, e um pote de talco Cinta Azul. Muitas colocavam na parede um enorme pôster de seu ídolo favorito, cantor ou ator de fotonovela, que vinha encartado em revista feminina da época.

Quando a prestação de serviço terminava, o homem segurava a bacia com as duas mãos e a mulher lhe fazia as abluções na genitália, com a garrafa d’água e o sabonete. Isso não era considerado uma humilhação da meretriz. Era aceito como o complemento indispensável e natural do seu trabalho.

Alguns homens, os mais delicados ou sensíveis, dispensavam essa higiene, e eles mesmos se asseavam como podiam. Os quartinhos mais humildes sequer dispunham de luz elétrica e tudo isso era feito à luz mortiça de uma lamparina a querosene. Muitas dessas mulheres tinham na pele marcas de doenças, como sarampo ou varíola, e cicatrizes de facas, dentadas ou unhadas, resultantes de brigas com clientes ou colegas.

Gracinha, além de filha de uma viúva que veio a exercer o meretrício, como já dito, era neta materna de Marlene, afamada prostituta de Évora, nos áureos tempos da carnaúba e de outros produtos do extrativismo. Nos seus anos de juventude e beleza fora a de mais extensa e seleta freguesia. Além de bela, era perita em sua arte, e se esmerava em bem tratar os homens que a procuravam, dando-lhes carinho e palavras amorosas e de delicado estímulo. Tinha ou fingia êxtases que deixavam os homens com o ego lá em cima, como se fossem o maior amante do mundo. Se se sentiam enganados, jamais reclamavam de tão reconfortante logro.

Contudo, não foi Marlene perfeita em sua profissão, porque veio a se apaixonar por um de seus amantes, o que ainda hoje é tido como erro grave. Deu-lhe tudo, tudo, até mesmo dinheiro; perdeu dinheiro, ao afastar-se dos amantes mais lucrativos, para se dedicar ao gigolô que tanto amava. Um dia ele, sem medir e sem adoçar as palavras, lhe disse de chofre:
– Depois de amanhã vou me casar. Nunca mais virei aqui. Não me procure mais e não me mande recado.

Nada mais disse, nem procurou ouvir. Virou as costas e se foi, sem aceno e sem palavras convencionais de despedida e desculpas, e sem se voltar uma única vez.


No dia do casamento, à boca da noite, Marlene foi até uma mercearia e bar, que havia perto. Sorrindo, cumprimentou uns homens que tomavam cerveja. Pediu um litro de querosene. Os homens a olharam com admiração, pois apesar de seus 37 anos de idade, ainda era uma formosa, simpática e atraente mulher. Um pouco depois chegou a notícia: uma rapariga se matara, incendiando as próprias vestes e lençóis, embebidos de querosene.  

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