HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio
internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem
sendo escritos.
Capítulo XVII
Prostituição e tragédia familiar
Elmar Carvalho
Com a finalidade de colher
informações para o jornal mimeografado O Liberal e para futuros trabalhos no
campo da história social recente e da sociologia
eborense, Marcos fez várias entrevistas com idosas e jovens prostitutas, e
também com antigos frequentadores de lupanares. Ele tinha ciência própria de
certos fatos, histórias e costumes, porque esporadicamente fazia as suas
incursões e “vistorias”, tanto na alta como na baixa zona meretrícia, bem como sabia
de fatos que lhe foram repassados pelos seus colegas e amigos. Dizia estar
fazendo laboratório literário.
Em decorrência desse seu trabalho
jornalístico e intelectual ficou sabendo que muitas mulheres caíram na difícil
“vida fácil” após terem se entregado, em confiança, a seu noivo, que lhes
prometia casamento; algumas por gosto, e outras por certa irresponsabilidade juvenil.
Quando os pais tomavam conhecimento, por causa de gravidez ou não, de que a
filha não era mais virgem, as expulsavam de casa. Muitos chegavam a dizer que a
filha “desonrada” era um “dedo cortado fora”. Não servia para nada.
Sem estudo e sem aptidão para o
trabalho doméstico, que não tinha as garantias trabalhistas atuais, muitas iam
exercer o meretrício, que, ao menos enquanto eram jovens, era muito mais bem
remunerado. Mas Marcos suspeitava que muitas iam em busca da chamada vida
fácil, do trabalho menos estafante e mais bem pago, e algumas desejavam mesmo
o hedonismo do sexo, da dança, da música e da bebida. Sentiam prazer no
exercício da profissão e do gozo cotidiano e repetido com diferentes parceiros,
como se isso fosse uma constante ventura e aventura.
No mês de junho alguns cabarés
costumavam fazer os arraiais dos folguedos de São João e São Pedro. As
quadrilhas eram animadas e tinham muitos participantes. Algumas eram bem
simples, enquanto outras tinham certo requinte. Os sanfoneiros afamados eram
convocados, e traziam seus parceiros, tocadores de pandeiro, triângulo,
chocalho e zabumba. O carnaval também era comemorado, com bailes alegres e
cheios de enfeites. Muitas raparigas ostentavam belas fantasias e enigmáticas
máscaras. Os instrumentos de sopro imperavam, com repertório de esfuziantes
marchinhas e saracoteantes frevos.
Mas a prostituição tinha os seus
riscos e mazelas, que seguem sinteticamente enumerados: gravidez indesejada,
doenças venéreas, sífilis, abusos de homens grosseiros ou embriagados, logro na
hora do pagamento dos honorários e brigas com outras raparigas e homens por
causa de ciúmes e outras rixas, às vezes antigas, que afloravam durante as
bebedeiras. Muitas mulheres, quando não recebiam o pagamento combinado, puxavam
uma lâmina de barbear, uma faca ou um canivete para compelir o parceiro a
cumprir a avença verbal. Se mesmo assim o homem não efetuava o pagamento,
algumas chegavam a lhes provocar lesões, havendo mesmo alguns casos de morte.
Por causa de indesejada gravidez, alguns abortos eram executados pelas
“fazedoras de anjos”, mediante perigosas beberagens e curetagens.
Algumas dessas mulheres, as mais
belas, mais jovens e mais afortunadas, eram aceitas no alto meretrício, onde
tinham quarto e cama mais confortáveis, mais higiênicos, e onde a comida era de
melhor qualidade. Outras, as mais feias ou mais velhas, só conseguiam alugar um
quartinho, guarnecido apenas por uma tosca e estreita cama, de colchão de
palha, e uma rústica mesinha, sobre a qual eram colocados um espelho pequeno,
uma bacia de alumínio, um litro com água, um sabonete, quase sempre da marca
Gessy, e um pote de talco Cinta Azul. Muitas colocavam na parede um enorme
pôster de seu ídolo favorito, cantor ou ator de fotonovela, que vinha encartado
em revista feminina da época.
Quando a prestação de serviço
terminava, o homem segurava a bacia com as duas mãos e a mulher lhe fazia as
abluções na genitália, com a garrafa d’água e o sabonete. Isso não era considerado
uma humilhação da meretriz. Era aceito como o complemento indispensável e
natural do seu trabalho.
Alguns homens, os mais delicados ou
sensíveis, dispensavam essa higiene, e eles mesmos se asseavam como podiam. Os
quartinhos mais humildes sequer dispunham de luz elétrica e tudo isso era feito
à luz mortiça de uma lamparina a querosene. Muitas dessas mulheres tinham na
pele marcas de doenças, como sarampo ou varíola, e cicatrizes de facas,
dentadas ou unhadas, resultantes de brigas com clientes ou colegas.
Gracinha, além de filha de uma viúva
que veio a exercer o meretrício, como já dito, era neta materna de Marlene,
afamada prostituta de Évora, nos áureos tempos da carnaúba e de outros produtos
do extrativismo. Nos seus anos de juventude e beleza fora a de mais extensa e
seleta freguesia. Além de bela, era perita em sua arte, e se esmerava em bem
tratar os homens que a procuravam, dando-lhes carinho e palavras amorosas e de
delicado estímulo. Tinha ou fingia êxtases que deixavam os homens com o ego lá
em cima, como se fossem o maior amante do mundo. Se se sentiam enganados,
jamais reclamavam de tão reconfortante logro.
Contudo, não foi Marlene perfeita em
sua profissão, porque veio a se apaixonar por um de seus amantes, o que ainda
hoje é tido como erro grave. Deu-lhe tudo, tudo, até mesmo dinheiro; perdeu
dinheiro, ao afastar-se dos amantes mais lucrativos, para se dedicar ao gigolô
que tanto amava. Um dia ele, sem medir e sem adoçar as palavras, lhe disse de
chofre:
– Depois de amanhã vou me casar.
Nunca mais virei aqui. Não me procure mais e não me mande recado.
Nada mais disse, nem procurou ouvir.
Virou as costas e se foi, sem aceno e sem palavras convencionais de despedida e
desculpas, e sem se voltar uma única vez.
No dia do casamento, à boca da noite,
Marlene foi até uma mercearia e bar, que havia perto. Sorrindo, cumprimentou
uns homens que tomavam cerveja. Pediu um litro de querosene. Os homens a
olharam com admiração, pois apesar de seus 37 anos de idade, ainda era uma
formosa, simpática e atraente mulher. Um pouco depois chegou a notícia: uma rapariga
se matara, incendiando as próprias vestes e lençóis, embebidos de querosene.
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