HISTÓRIAS
DE ÉVORA
Este
romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente),
à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXXVIII
Epílogo
Elmar Carvalho
Com
a continuação do namoro, Marcos e Lívia puderam se conhecer melhor, em suas
qualidades positivas e defeitos. Sentiam a falta um do outro, e não perdiam a
oportunidade de estar juntos. Mesmo em seus silêncios, o rapaz sentia que a
moça o compreendia, como nenhuma mulher antes o compreendera.
Passou a lhe frequentar a residência, e
observou quão ela era boa irmã e excelente filha, afetiva e atenciosa. Na
verdade, formavam uma exemplar família de classe média, muito bem constituída.
Seus pais eram unidos, e nunca os viu discutindo, ou um levantando a voz além
do estritamente necessário.
Não demorou a compreender que Lívia era a sua
“cara metade”, e que parecia feita para ser a sua esposa. Não tinha nenhuma
dúvida, era Lívia a sua mulher ideal, conquanto a notasse levemente possessiva
e um tantinho ciumenta. Mas esses eram pecadilhos quase virtudes, e a seu ver
facilmente perdoáveis. Na verdade, isso quase lhe proporcionava certo júbilo.
No começo do ano, quando fizera 33 anos de
idade, ainda com aparência jovem em seu início de maturidade, Marcos combinou o
casamento com Lívia para o final de maio, o mês das noivas, embora não tenham
formalmente firmado esse compromisso, com trocas de aliança e tudo mais que a
praxe recomendava.
Sabia que sua vida mudaria bastante, e que a
sua liberdade minguaria, pois Lívia lhe merecia todo respeito, atenção e
carinho. Mesmo porque, disso tinha plena consciência, as relações afetivas,
sobretudo as conjugais, eram feitas de trocas e correspondências, e se ele
desejava esse tratamento, deveria de igual forma tratá-la.
Por isso mesmo, no final de semana que
antecedera o de seu casamento, resolveu ir a Évora, para comemorar a sua
despedida de solteiro, o seu bota-fora da condição de homem livre, sem freios e
peias conjugais. Cauteloso, para não criar nenhum problema antes de seu
casório, convidou-a a ir em sua companhia. Mas ela, mulher sábia, ouviu os
conselhos da mãe, e o deixou partir sozinho, pois reconhecia que aquele deveria
ser um momento só dele e de seus amigos, contanto que não houvesse nenhuma
sirigaita pelo meio.
Preparou uma trilha sonora de sua despedida de
solteiro, gravada com esmero na melhor fita K7 da época, e seguiu a ouvi-la no
toca-fitas de seu Monza prateado. Ao chegar em Évora, um pouco depois do
meio-dia daquele sábado, percebeu que a sua despedida seria a de um homem só; a
sua despedida seria de si mesmo, ou melhor, da vida livre, leve, solta, sem
amarras e cabrestos, que levara até então. Mas sabia que o casamento tinha lá
as suas vantagens, senão ninguém casaria, lógico.
Mário Cunha já se tornara carioca há um bom
tempo, Fabrício viajara em inspeção a uma de suas lojas e Maurício Vanderley
fora passar o final de semana em sua fazenda na Serra do Cachimbo. Marcos,
conquanto se policiasse, não pôde deixar de lembrar, com saudade, de Ester,
prima do amigo, linda serrana, de estelares olhos azuis, que nunca mais reviu e
jamais voltaria a rever.
Resolveu fazer o seu périplo nostálgico,
elegíaco, poético, patético e sentimental sozinho. Foi iniciá-lo no Recanto da
Saudade, à beira do Paraguaçu. O comandante Augusto se mostrou muito feliz e
honrado com a sua visita, e incontinenti lhe trouxe um copo americano gelado e
uma cerveja “empoada”, ou “véu de noiva” ou “pescoço de águia americana”; ou,
para resumir, gelada até o ponto ideal.
Augusto, já de posse de sua flanela vermelha,
para limpar os seus discos de Vinil, pelos quais nutria um ciúme doentio,
perguntou a Marcos qual a música que ele gostaria de ouvir, tendo este
respondido:
– Por favor, caro amigo Augusto, peço que
ponha para tocar o Juramento de Playboy, de Carlos Gonzaga. E, se possível,
desde que não aborreça os seus outros fregueses, repita essa música duas vezes,
pois estou me despedindo de minha vida de solteiro... No próximo sábado,
passarei a ser um homem sério, ou seja, enforcado ou algemado pelo casamento.
Ambos sorriram, e em pouco tempo se ouvia, na
bela e inconfundível voz de Carlos Gonzaga:
Eu jurei fazer de tudo pelo nosso amor
Eu jurei deixar a minha vida de playboy
Eu jurei trocar meu pé de bode por um Volks
E as calças justas por um terno de senhor (...)
Quando Marcos foi pagar as duas cervejas que
tomara, dom Augusto pediu:
– Por favor, deixe, desta feita, que este
pobre dono de bar e garçom pague a conta por você.
Os dois se abraçaram, e Marcos, após contemplar
as águas morosas e amorosas do Paraguaçu, nas quais banhara vezes sem conta, partiu,
em seu carro, ouvindo sua exímia trilha sonora, para o centro histórico da
cidade, que fora recentemente tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN. Tinha certo orgulho de haver contribuído, com seus
artigos e crônicas para que isso tenha acontecido. Participou da comitiva de
artistas e intelectuais que entregara fundamentado e circunstanciado memorial,
por ele redigido, à diretora desse órgão no estado.
Foi até a Praça Lucas Mendes Furtado, para
abraçar o amigo Louro, sempre muito simpático em sua frequentada banca de
revistas e jornais. Mais uma vez lamentou que um alcaide, “prefeito jumento e
jumento perfeito”, como vociferou notável poeta satírico, a tenha destruído, e
reconstruído em linhas modernosas, tão diferentes do traçado belo e elegante,
que lhe marcara a infância, a adolescência e a juventude.
Quanta saudade sentia da velha praça, dos
momentos que ali passara. Lembrança das quermesses, dos volteios, das primeiras
namoradas, dos primeiros amores tão cheios de mágoas... Quem lhe traria de
volta o belo e velho coreto e a sua linda cúpula? Quem lhe traria de volta a
saudosa pérgula, em cujo tanque sinuoso os peixes e a tartaruga nadavam,
provocando-lhe tanto encantamento em seu tempo de criança? E o odorífero
caramanchão, em cuja sombra aconchegante estivera algumas vezes, a abraçar e
beijar, com muita ternura, a inesquecível namorada de sua perdida inocência?
Tudo, como no filme, o tempo levara, menos em
sua memória, “lâmina de desassossego / cornucópia insana insaciável / a jorrar
o passado / que não morre nunca / sempre ressuscitado / no eterno regresso / a
nós mesmo”. Olhou em volta da praça. Alguns casarões foram demolidos, por
ignorância dos donos ou por apego aos metais.
Pensou nos amigos de outrora e do futebol.
Alguns partiram para lugares distantes, em busca de melhores dias, iludidos,
muitas vezes, por falsas promessas e acenos enganosos de sereias. E os amigos
mortos, que nos acompanham cada vez mais vivos? Amigo, como diz a canção, é
coisa para se guardar, no lado esquerdo do peito.
Reviu o prédio onde funcionara o Évora Clube.
Lembrou as tertúlias dançantes e as gatinhas de sua época, jovens, belas e
felizes. Hoje, tudo era apenas saudade. Saudade de uma época morta, que não
mais existiria, em que fora tão emotivo e tão sentimental. A matriz ainda se
mantinha bela e imponente, e isso lhe trouxe mais recordações. Seguiu a pé para
a Zona Planetária, que ficava bem ali, a dois quarteirões apenas.
Teve um choque. Era o início do pôr-do-sol; as
nuvens já se mostravam avermelhadas e a melancolia já se lhe infiltrava na
alma, quando viu que vários casarões ou “planetas” haviam
caído. Um passante lhe informou que a velha zona meretrícia tombara durante uma
chuva torrencial, um verdadeiro dilúvio que desabara sobre Évora, dois dias
atrás. Não bastasse o aguaceiro, uma violenta ventania açoitou a cidade,
fustigando de forma impiedosa as velhas casas do lupanar.
Marcos não teve como não lembrar os versos
iniciais de A Zona Planetária:
Anfion percorre os sulcos
dos discos das vitrolas e as
emoções são alinhadas pedra a pedra.
Apolo é qualquer moço feio
que nos vitrais Narciso se julga.
(...)
Nas calçadas altas da Zona Planetária
meretrizes expõem suas carnes
em varais de açougues imaginários
aos transeuntes ou faunos eventuais
Ao olhar aqueles escombros, ao andar pelas
ruínas das telhas e dos frágeis adobes dos velhos cabarés, onde andara muitas
vezes em sua ardente adolescência, sentiu-se o rapaz o próprio Jeremias, da
evocação do poema Saudade, de Raimundo Correia:
Tudo
passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;
Em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a Jerusalém de tantos sonhos!...
Marcos Azevedo parecia ouvir os acordes
vívidos, vibrantes e, contudo, melancólicos da marcha turca Ruínas de Atenas,
do inigualável Beethoven, que não fazia parte de sua trilha temática. Sentiu
então, como jamais sentira antes e como jamais sentiria depois, o pungir
agridoce da saudade. Pressentiu que a sua vida e a de Évora tomariam novos
rumos.
Os punhais de seda da saudade lhe golpearam as
entranhas mais profundas de sua alma. Punhais de seda, sim, macios sim, mas que
feriam, como um néctar venenoso – doce, inebriante e letal.
Dr. Elmar,
ResponderExcluirBom dia! Tive a grata satisfação de ler todos os capítulos do seu interessante romance HISTÓRIAS DE ÉVORA.
Lendo o romance, tive a sensação de conhecer ou ter visto alguns dos logradouros e outros locais mencionados nas histórias narradas. Os fatos contados sobre as personagens do romance, em alguns casos, também me reavivaram minhas lembranças dos anos 60 e 70.
Parabéns pelo excelente romance HISTÓRIAS DE ÉVORA. Outros romances da lavra do ilustre poeta por certo serão agraciados aos seus leitores.
Um grande abraço.
Chico Acoram Araújo
Caro Acoram,
ResponderExcluirao concluir este último capítulo senti como se tirasse um peso de cima de mim, pois esse romancinho vinha consumindo minhas energias, vez que encarei a sua elaboração com muita seriedade e compromisso.
Agradeço-lhe as palavras elogiosas e de estímulo.
Abraço,
Elmar
Estimado Poeta, acompanhei também, igualmente ao nosso amigo Acoram, toda a saga do protagonista Marcão, e creio que ficarei com saudades da leitura dos capítulos semanais que vinham até nós todas as quintas-feiras através do seu blog. Na minha ótica de mero curioso do assunto, vejo que o autor virou a última página com maestria, amarrando as pontas de todas as Histórias de Évora e concluindo mais um belo trabalho lavrado com a competência costumeira e o selo poético do laborioso e prolífico Elmar Carvalho.
ResponderExcluirCaro José Pedro Araújo,
ResponderExcluirVocê não pode imaginar a sensação de alívio e de senso do dever cumprido que as suas palavras amigas me causaram.
Muito obrigado, caro amigo.