Velha casa em que o autor da crônica residiu |
Creoli do Joviniano
José Pedro Araújo
Romancista, historiador e cronista
As lembranças que guardo desse
pequeno vilarejo encravado no centro do território do velho Curador são fortes
demais para abandonarem a minha memória já tão carregada de passado. São
passagens, paisagens e acontecimentos que teimam em vir à baila quando menos
espero. E não poderia ser diferente. Tudo isso acontecia quando ela ainda tão
vazia de anamnese, por tão nova que era, ainda estava começando a armazenar os
meus acontecidos. E pelo visto possui muitos terabytes de espaço, pois ainda
continua a guardar lembranças. A povoação a qual me refiro, era um simpático
vilarejo com ruas bem definidas e uma população que extravasava simpatia por
todos os poros e para todos os lados. E foi esse local que meu pai escolheu
para instalar uma filial da sua loja. Mais que isso. Por gostar tanto do
lugarejo, escolheu-o para sua morada temporária, tendo residido lá por quase
dois anos. Papai também representava
politicamente a região, elegendo-se por mais de uma vez para a Câmara do
município. E foi assim que ele juntou a família, três dos quatro filhos já
nascidos - o mais velho(eu, no caso) precisava continuar os estudos na cidade –
e realizou a mudança.
A primeira lembrança que me vem
da nossa chegada ao Creoli do Joviniano, com a tarde já findando, é a de que
alguns amigos do meu pai se reuniram com ele na calçada em uma roda de conversa
que entrou noite adentro. Naquele instante, também criei o primeiro problema
para ele resolver. Entediado com aquele converseiro sem fim, apanhei um pequeno
talo de coco babaçu e comecei a brincar com ele. Foi ai que apareceu o outro
protagonista da história, um pinto pelebreu. Manso e crédulo na boa índole dos
circundantes, o pintinho subiu à calçada e começou a caminhar por ela. Foi
nesse instante que eu, fazendo uso da pequena arte de madeira que eu tinha nas
mãos, dei uma traulitada na pobre ave que a deixou prostrada, praticamente
morta. Nesse instante, um dos visitantes levantou-se de um salto e reclamou
comigo bruscamente. Não sabia que eu era filho do amigo que visitava. Foi um constrangimento
total quando o meu pai ralhou comigo e pediu desculpas ao dono do pequeno
pinto. Depois, respondi pelo mal feito ,apesar dos meus pouco mais de seis
anos.
Mas nem só de lembranças ruins, a
minha memória está repleta. A melhor delas diz respeito ao açude que já foi
objeto de uma crônica minha também. Era o maior ajuntamento de águas que eu já
havia visto. Para mim, com aqueles olhos de menino guloso por novos
descobrimentos, era um mar sem fim. Um oceano bravíssimo. Havia ainda uma bela
lagoa, dita do Creoli. Cercada por uma vegetação alta e luxuriante, aquele
brejo virou local de intensas visitações minha. Todos os dias, saía a passear
em volta dela, sob a sua sombra reconfortante, baladeira ao pescoço, à caça de
passarinhos. No seu entorno fiquei conhecendo a árvore frutífera que lhe
emprestou o nome: o Creoli (Mouriri surinamensis Aubl.). Trata-se de uma árvore
frondosa que tem preferência por áreas úmidas e que produz uma frutinha amarela
comestível. Essa lagoa ficava muito próxima da minha casa, dai a facilidade que
eu tinha de brincar nas suas margens. E possuía, também, uma quantidade de
sapos tão grande como jamais vira. As noites escuras do Creoli eram tomadas
pela volumosa e estridente sinfonia daquele coral aquático.
A propósito disto, aquele
primeiro ano foi marcado por uma temporada de chuvas muito intensas, algo quase
fora do normal(vivíamos o ano de 1960). Todas as noites a tempestade se abatia
sobre a povoação, e isso provocou um problema adicional para a minha mãe: uma
avalanche de rãs invadiu as casas mais próximas à lagoa. E como ela tinha pavor
desses bichinhos visguentos e frios, quase não dormiu por um bom período. Os
sapinhos surgiam de todos os lugares, se metiam entre as telhas e saltavam para
dentro da casa. Como não havia luz elétrica naquele tempo, a escuridão das ruas
favorecia o aparecimento dos bichos em profusão, expulsos do alagadiço próximo
devido à elevação das águas. Amedrontada, a minha mãe deixava lamparinas acesas
em todos os cômodos, mas nem isso impedia que a multidão de rãs pululasse pela
casa. Mamãe contava ainda apavorada, muitos anos depois, que algumas delas
saltavam sobre as lamparinas e apagavam as chamas. E causavam um verdadeiro
transtorno para ela.
Mas o Creoli não era só isso. Era
um lugar agradabilíssimo, um local em que imperava a concórdia, e era habitado
por de pessoas amáveis e amigáveis. Anos atrás, retornei àquela vila e quase
não a reconheci. O açude se achava muito assoreado e tomado por uma vegetação
aquática sinalizando que as suas águas também estavam muito poluídas. Quanto à
lagoa do Creoli, nem sinal dela. Um desmatamento desenfreado ceifou das suas
margens o belo arvoredo, e suas águas fugiram do local para sempre. Até mesmo a
velha capela havia sido demolida e mudaram de local. De uma fileira de
flamboyants em chamas, posto estarem sempre floridos, que existia em uma das
entradas do povoado, não tive notícia. Mas o povoado continua atraente e
convidativo. Suas ruas agora estão asfaltadas, e a luz elétrica, e também a
água encanada, são serventia para seus moradores.
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