terça-feira, 20 de novembro de 2018

Creoli do Joviniano

Velha casa em que o autor da crônica residiu

Creoli do Joviniano


José Pedro Araújo
Romancista, historiador e cronista

As lembranças que guardo desse pequeno vilarejo encravado no centro do território do velho Curador são fortes demais para abandonarem a minha memória já tão carregada de passado. São passagens, paisagens e acontecimentos que teimam em vir à baila quando menos espero. E não poderia ser diferente. Tudo isso acontecia quando ela ainda tão vazia de anamnese, por tão nova que era, ainda estava começando a armazenar os meus acontecidos. E pelo visto possui muitos terabytes de espaço, pois ainda continua a guardar lembranças. A povoação a qual me refiro, era um simpático vilarejo com ruas bem definidas e uma população que extravasava simpatia por todos os poros e para todos os lados. E foi esse local que meu pai escolheu para instalar uma filial da sua loja. Mais que isso. Por gostar tanto do lugarejo, escolheu-o para sua morada temporária, tendo residido lá por quase dois anos.  Papai também representava politicamente a região, elegendo-se por mais de uma vez para a Câmara do município. E foi assim que ele juntou a família, três dos quatro filhos já nascidos - o mais velho(eu, no caso) precisava continuar os estudos na cidade – e realizou a mudança.

A primeira lembrança que me vem da nossa chegada ao Creoli do Joviniano, com a tarde já findando, é a de que alguns amigos do meu pai se reuniram com ele na calçada em uma roda de conversa que entrou noite adentro. Naquele instante, também criei o primeiro problema para ele resolver. Entediado com aquele converseiro sem fim, apanhei um pequeno talo de coco babaçu e comecei a brincar com ele. Foi ai que apareceu o outro protagonista da história, um pinto pelebreu. Manso e crédulo na boa índole dos circundantes, o pintinho subiu à calçada e começou a caminhar por ela. Foi nesse instante que eu, fazendo uso da pequena arte de madeira que eu tinha nas mãos, dei uma traulitada na pobre ave que a deixou prostrada, praticamente morta. Nesse instante, um dos visitantes levantou-se de um salto e reclamou comigo bruscamente. Não sabia que eu era filho do amigo que visitava. Foi um constrangimento total quando o meu pai ralhou comigo e pediu desculpas ao dono do pequeno pinto. Depois, respondi pelo mal feito ,apesar dos meus pouco mais de seis anos.

Mas nem só de lembranças ruins, a minha memória está repleta. A melhor delas diz respeito ao açude que já foi objeto de uma crônica minha também. Era o maior ajuntamento de águas que eu já havia visto. Para mim, com aqueles olhos de menino guloso por novos descobrimentos, era um mar sem fim. Um oceano bravíssimo. Havia ainda uma bela lagoa, dita do Creoli. Cercada por uma vegetação alta e luxuriante, aquele brejo virou local de intensas visitações minha. Todos os dias, saía a passear em volta dela, sob a sua sombra reconfortante, baladeira ao pescoço, à caça de passarinhos. No seu entorno fiquei conhecendo a árvore frutífera que lhe emprestou o nome: o Creoli (Mouriri surinamensis Aubl.). Trata-se de uma árvore frondosa que tem preferência por áreas úmidas e que produz uma frutinha amarela comestível. Essa lagoa ficava muito próxima da minha casa, dai a facilidade que eu tinha de brincar nas suas margens. E possuía, também, uma quantidade de sapos tão grande como jamais vira. As noites escuras do Creoli eram tomadas pela volumosa e estridente sinfonia daquele coral aquático.

A propósito disto, aquele primeiro ano foi marcado por uma temporada de chuvas muito intensas, algo quase fora do normal(vivíamos o ano de 1960). Todas as noites a tempestade se abatia sobre a povoação, e isso provocou um problema adicional para a minha mãe: uma avalanche de rãs invadiu as casas mais próximas à lagoa. E como ela tinha pavor desses bichinhos visguentos e frios, quase não dormiu por um bom período. Os sapinhos surgiam de todos os lugares, se metiam entre as telhas e saltavam para dentro da casa. Como não havia luz elétrica naquele tempo, a escuridão das ruas favorecia o aparecimento dos bichos em profusão, expulsos do alagadiço próximo devido à elevação das águas. Amedrontada, a minha mãe deixava lamparinas acesas em todos os cômodos, mas nem isso impedia que a multidão de rãs pululasse pela casa. Mamãe contava ainda apavorada, muitos anos depois, que algumas delas saltavam sobre as lamparinas e apagavam as chamas. E causavam um verdadeiro transtorno para ela.

Mas o Creoli não era só isso. Era um lugar agradabilíssimo, um local em que imperava a concórdia, e era habitado por de pessoas amáveis e amigáveis. Anos atrás, retornei àquela vila e quase não a reconheci. O açude se achava muito assoreado e tomado por uma vegetação aquática sinalizando que as suas águas também estavam muito poluídas. Quanto à lagoa do Creoli, nem sinal dela. Um desmatamento desenfreado ceifou das suas margens o belo arvoredo, e suas águas fugiram do local para sempre. Até mesmo a velha capela havia sido demolida e mudaram de local. De uma fileira de flamboyants em chamas, posto estarem sempre floridos, que existia em uma das entradas do povoado, não tive notícia. Mas o povoado continua atraente e convidativo. Suas ruas agora estão asfaltadas, e a luz elétrica, e também a água encanada, são serventia para seus moradores.   

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