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Essas Comodidades Que Acabam Com
o Meu Salário
José Pedro Araújo
Contista, cronista e romancista
Outro dia estava conversando com
meus botões: para onde estará indo o meu salário? Pus-me a pensar e descobri
coisas interessantes sobre o destino desse dinheirinho suado que eu morro de
trabalhar, e quando mais faço isso, mais sobram dias do mês para cobrir.
Em tempos passados, lá no meu velho Curador,
vivia-se muito bem, mesmo com salário pequeno. Isso quem tinha salário. Quem
não tinha vivia também. Milagre? Nem tanto. Para começar, a alimentação básica
da família era à base de arroz, feijão, carne, farinha de mandioca e, às vezes
macarrão (caramba, o mesmo que hoje?). O arroz e o feijão eram produzidos pela
própria família, ou adquiridos na mercearia do amigo mais próximo. A proteína
da carne, em boa parte do tempo, era suprida pelas galinhas ou pelos leitões
que criávamos no nosso próprio quintal. E quando precisávamos recorrer ao
açougue, pagávamos preços bem em conta, uma vez que tudo era produzido no
próprio município, e sem o custo dos transportes ou mesmo sem a avassaladora
carga de impostos.
Hoje não funciona mais assim. O
arroz vem do Rio Grande do Sul em carroçarias de caminhões, um frete que custa
fortunas. E ainda tem mais uma fila interminável de gente atrás do dono do
caminhão. O produtor lá no Rio Grande entregou o seu produto para um atravessador,
que o repassou para um cerealista, que por sua vez fracionou o saco de sessenta
quilos adquirido, e o acondicionou em embalagens de cinco quilos. Depois disso,
entregou para o distribuidor. Foi esse individuo quem embarcou o produto no seu
caminhão (ou em outro alugado), rodou o Brasil inteiro até entregar no
mercadinho da nossa cidade. Foi, portanto, o dono do mercadinho quem me vendeu
o produto.
Nessa cadeia perversa que se
formou antes que o arroz chegasse até a mim, todo mundo pagou imposto e cobrou
o seu lucro. Imposto municipal, estadual e federal. (Esqueci-me de dizer que o
meu arroz era pilado na minha própria casa, não precisava pagar nada também
pelo serviço). Pois bem, finalmente o arroz chegou à minha casa. Sobrou para
mim todos os impostos cobrados antes, nos três níveis de governo e em todas as
mãos por onde passou até chegar às minhas. O lucro de cada mão por onde passou
também.
A despesa do caminhão também foi
paga por mim, e o lucro do dono da máquina também. O arroz que saiu das mãos do
produtor a R$ 0,89 (oitenta e nove centavos o quilo). Chegou a minha casa
custando R$ 2,90, esse mesmo quilo. 225% a mais. Essa mesma conta pode ser
feita para o feijão que vem da Bahia, ou mesmo do Paraná. E também para a carne
de boi, que vem do Pará, Mato Grosso, Tocantins, ou do próprio Maranhão. Para o
frango e o porco, a mesma conta pode ser feita.
Se fosse somente para isso que
vai o meu salário, ainda poderia me dar por satisfeito. Agora, quando vou ao
supermercado, trago mais uma quantidade enorme de produtos para acompanhar o
meu arroz com feijão e carne de outrora. Tudo para terminar me alimentando do
mesmo jeito. Ou pior. Dizem que o arroz e o feijão vêm com veneno. E a carne de
gado, de frango ou de porco, vem com anabolizantes e outras cositas mas. E eu
ainda tenho que pagar para consumir essas porcarias que só me fazem mal? Além
de incluir o médico e o farmacêutico nessa conta dolorosa.
Mas ai veio mais gente, não
satisfeita com o meu infortúnio, querendo tirar um naco do meu humilde salário
já tão atacado. O governo (nos três níveis também), resolveu implantar um
sistema de abastecimento de água na cidade. Dizia que a água que provinha de
graça do meu poço não prestava para o consumo. E então o governante, preocupado
com a minha saúde, é claro, pegou o dinheiro do imposto que eu paguei, fundou
uma empresa de águas, pagou com ele a perfuração de um poço, colocou alguns
canos sob o chão, adquiridos da mesma forma, com o meu dinheiro (contratou todo
o serviço com um parente ou amigo), empregou seus familiares na minha
empresa(minha?), e passou a me vender a água que eu antes consumia de graça.
Fez a mesma coisa com a energia.
Toda a empresa montada com o dinheiro dos meus impostos. Aqui a coisa foi até
pior. Criou uma empresa para construir uma barragem e outra para distribuir a
energia lá produzida. A que produz, vende para a que distribui, e tira o seu
lucro, paga os seus impostos. E esta passou a me vender a energia por um valor
absurdo, ai também embutido o valor da produção (aqui também teve emprego para
todos os familiares e amigos), e ainda me cobra uma carga de impostos de fazer
chorar pelo serviço. Eu que gastava pouco dinheiro para manter minhas
lamparinas acesas durante a noite, agora me habituei a usar a tal energia
durante o dia inteiro. E a que custo?
Tive que gastar mais com a saúde,
a educação, a segurança, telefone, e até para transitar pelas estradas
construídas com o dinheiro dos meus impostos. Pois os serviços que o governo me
oferece são de péssima qualidade. É de chorar, não é mesmo?
Mas não o aconselho a chorar
ainda, tem mais. Pela casa que eu pensava ser de minha propriedade(já que
comprei o terreno e construí a choupana), passaram a me cobrar um tal imposto
predial e territorial urbano. Para o sitiozinho, um tal de imposto territorial
rural, mais taxa de cadastro rural, e mais tributo sobre tudo o que eu tiro de
lá. Esses bens são meus ou não?
E achando pouco o que já fazem
comigo, abandonei o meu cavalo, vendi a minha bicicleta, descansei as minhas
pernas, e agora ando de carro para os mesmo lugares a que ia antes. Talvez vá
um pouco mais distante. Mas, para quê? E a que custo? Na bicicleta só precisava
trocar dois pneus quando acabavam os que estavam em uso. Agora tenho que
comprar quatro, mais um de reserva. A um valor vinte vezes maior. Não precisava
encher o tanque da magrela com o caríssimo combustível, pagar taxa de
emplacamento, seguro, pagar para ter uma carteirinha que me autoriza a
dirigi-la, multas, impostos, e até mesmo pagar um motorista, caso não soubesse
dirigir.
E não parou por ai. Não chore
ainda. Em casa, entrava ano, saia ano, e ninguém falava em aniversário, ou
melhor, só falava (agora tem que comemorar, e até mensário). E quando alguns
bacanas chegaram à cidade com essa moda, passamos a adotá-la também. Ainda saia
baratinho, contudo. Alguém da casa fazia um bolinho, espremia algumas laranjas
ou cortava alguns maracujás colhidos no próprio quintal, misturava com bastante
água, e estava tudo bem. Podíamos cantar os parabéns que ninguém ia reclamar.
O presente que se dava também era
coisa barata. Sabonete Carnaval, pasta Kolynos ou, no máximo, um pote de
brilhantina Glostora ou mesmo um tubo de Trim. Depois apareceu o Ki-Suco para
facilitar a vida de quem não tinha laranja ou maracujá no próprio quintal. Já não
precisava mais pedir na casa vizinha. Custava pouco o saquinho. E, além de
tudo, tratava-se de uma novidade! Estava resolvida a questão.
E agora, o que fazemos? O bolo
tem que ser originado de uma confeitaria. Os salgadinhos devem ser variados, e
também adquiridos em pastelarias da moda. Tem mais a decoração, a música (sem
falar que temos que ficar horas batendo palmas e acompanhando o parabéns pra
você enquanto a criançada pede quinhentas vezes para apagar as velinhas).
Refringentes em caixas. Ou dezenas de garrafões de dois litros. Nem vou falar
de cerveja para os pais dos convidados, whisky e coisas que tais! Já está se
vendo quanto custa um aniversariozinho em casa de assalariado, não é? Mas tem
que ser feito, porque o vizinho que (aparentemente) ganha menos que eu o faz
para toda a família? Por quê não eu?
Acho que vou parar por aqui. Pode
começar a chorar. Não vou nem falar de internet, telefone celular, streaming de
filmes, canais por assinatura, etc, etc, etc. Para quê? Só para me martirizar
mais ainda. Eu quero é voltar para o passado. Lá vivia como um rei e a
baixíssimo custo!
Por conta dessas coisas foi que o poeta paraibano inspirou-se e fez um poema intitulado "Vou-me embora pro Passado".
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