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A
batalha das cocadas na frente da casa-grande
Pádua Marques
Escritor e jornalista
A miséria estava batendo
agora na porta da frente de casa da família de Simplício Dias da Silva desde
quando o imperador dom Pedro I lhe virou as costas por causa de seu envolvimento
e obediência cega ao juiz de fora João Cândido de Deus e Silva e gente do
Pernambuco e do Ceará, que agora queriam uma república pra o Brasil. O antes
senhor da Parnaíba, que recebia nobres, estudiosos, comerciantes interesseiros
e até piratas na sua casa, amargava o desprezo político e a pobreza, a ponto de
sua mulher, dona Isabel Thomásia ter arranjado um negro pra vender cocadas na
porta de casa.
A cozinheira, tão logo
passava a hora do almoço, se punha a fazer as cocadas pra que tão logo
amanhecesse o dia vinha o negro da casa, Pano Véi, lá de dentro com o tabuleiro
forrado com um pano de sacos pra esquina da rua Grande, esperar a freguesia de
embarcadiços, soldados, gente de repartições públicas e quem descia ou subia
nas canoas indo pra Tutoia no Maranhão. Isso de domingo a domingo. Vez por
outra dona Isabel e o marido, agora doente, ficavam na janela de cima olhando o
movimento embaixo.
Por volta das nove horas,
já o sol queimando o lombo dos negros que trabalhavam no porto lá embaixo, Pano
Véi já estava em serviço fazia tempo. Olha a cocada! Olha a cocada! E nesse
sentido só desmontava aquele negócio quando já não tinha nenhuma cocada e o que
sobrava era algum farelo. Corria pra dentro da casa-grande e ia prestar contas
com a dona do negócio. Quando muito, recebia um tostão, que logo iria ser gasto
lá embaixo no cais com um mercado de cachaça ou de fumo.
No outro lado da rua a
família Miranda Osório era um tormento pra o antes todo poderoso e destemido
Simplício Dias da Silva. Desde o assassinato de Raimundo em 1812 e a recusa de
Simplício em ser governador do Piauí, as coisas andavam de mal a pior pra
família. Dívidas, traições e tudo o mais se acumulavam naquela casa de paredes
encardidas. Na igreja nem ia mais por causa da inchação nas pernas e sentindo
uma dureza no pé da barriga. E agora mais aquela, de até na venda de cocadas da
mulher encontrar um concorrente, o negro Mão de Pilão.
Tanto um quanto outro
eram negros ainda novos beirando quando muito, os trinta anos. Mão de Pilão
talvez fosse até mais velho. Mas quem era que iria se preocupar com idade de
cativo? Talvez pra criar sua empresa que lhe garantisse um tostão pra
aguardente, arranjou com seu dono um ponto pra venda de frutas na frente de
casa de Miranda Osório. E em pouco tempo já vendia muita manga, bananas, limões
doces, melancias, abacates, fumo de mascar e rapé, doce de leite e cocadas.
Pano Véi estava começando
a ficar com raiva daquele negócio. Trabalhava que nem um burro botando água pra
o senhor tomar banho, limpava a igreja, a frente da casa, o quintal, cortava um
galho de árvore, fazia uma limpeza nos cemitérios da família, enchia os potes
da cozinha e ainda de manhãzinha tinha que torrar a cabeça naquele terror de
sol vendendo cocada pra dona Isabel na esquina! Se quebrasse alguma cocada e
tendo que voltar pra dentro do tabuleiro ou algum freguês não pagasse, era
castigo na certa. Era vida de cão aquela
sua! Agora me vinha Mão de Pilão, com tabuleiro de frente com mais coisas pra
vender e lhe tirando freguesia! Ia fazer um bonito com aquele negro.
Mão de Pilão ficava de lá
olhando o movimento e falando alto toda a lista do que vendia. Olha o limão
doce! Olha a manga, olha a manga! Olha a cocada de coco fresco! Aqui tem rapé e
tem fumo! Três tostões, três tostões e é pra acabar! Os fregueses iam e vinham. Passavam e acabavam
comprando isso ou aquilo. O negro suado e satisfeito ia colocando num caixa de
madeira o apurado e cantando uma canção alegre, aprendida com as mulheres da
vida lá embaixo no cais do porto.
Pano Véi esperou dar mais
movimento na rua Grande, justo quando acabava de atracar no cais do Porto
Salgado uma canoa vinda da Tutoia, no Maranhão, carregada de lenha. Era carga
pra casa de Simplício e outros principais da Parnaíba. Havia vendido pouco sua
a cocada naquela quinta-feira. Enquanto isso Mão de Pilão, de lá, aproveitava
quem estava subindo o barranco e gritava ainda mais alto, intimando, fazendo
troça com ele.
O negro enjeitado da casa
de Simplício Dias foi se aproximando do tabuleiro de Mão de Pilão com as duas
mãos cheias de areia. Esperou um freguês pagar e ir se retirando com umas
frutas. Jogou areia por cima como se fosse chuva. A areia caiu direitinho em
cima das cocadas de Mão de Pilão. O nome feio comeu. Filho dessa, filho daquela.
Acabaram se atracando. Foram ao chão e as vaias acompanharam. Foi cangapé pra
todo lado e pra cima dos tabuleiros. As frutas, o rapé e o fumo em frente da
casa de Miranda Osório, enfim, tudo que tinha no tabuleiro de Mão de Pilão se
espalhou. Reboliço dos diabos.
Foi o bastante pra
aparecer gente de tudo quanto era lado vinda da frente da matriz, do cais e de
tudo mais. Por sorte não puxaram facas. Veio milícia e prendeu os dois negros
arruaceiros. Sabendo de quem eram, foram cada um levados aos seus donos. Simplício
ficou sabendo do ocorrido logo depois da dormida do almoço. Pano Véi levou uma
pisa de umbigo de boi e teve a comissão do dia confiscada. Simplício Dias da
Silva, mesmo já sem saúde, não queria ninguém com valentia e autoridade maior
que a dele na Parnaíba. E muito menos partindo de negros!
Muito obrigado pela sua atenção, amigo Elmar Carvalho.
ResponderExcluirNão há de que, amigo Pádua.
ResponderExcluirVocê enriquece nosso blog.