Fonte: Portal Entretextos |
Fazenda Paraíso
Renato Castello Branco
Historiador, romancista e memorialista
Quando chegamos à fazenda, o sol
abrasava no zênite. Ali, na ilha dos Mulungus, já se estava a apenas cinco
quilômetros do oceano. Mais um pouquinho e o rio desaguaria no estreito e
desértico litoral piauiense, de estranha beleza. Então era uma sucessão de
praias infinitas, alvas dunas e coqueirais, batidos eternamente pelo vento
nordeste.
Atracamos no porto das Canoas, e
seguimos pela picada que conduzia à casa de telha, no alto do barranco. De
longe avistei, antes de tudo, o secular pau d’água de minha infância, abrindo
sua imensa galhada. No alto, empuleirado em seus galhos pujantes, o jirau de
troncos de carnaúba, de onde vínhamos olhar o Parnaíba desfilando suas águas.
Lá iam as águas rolando, arrastando galhos de árvores, balseiros, verdes moitas
flutuantes, que o rio arrancava das margens, de algum barranco. Às vezes, caíam
em funis, rodando, rodando, até afundar. Certa feita eu vira um desses funis,
em época de enchente, empolgar uma canoa, girando-a, girando-a, num
irresistível sorvedouro, até arrastá-la para o fundo. Os canoeiros, grandes
nadadores, conseguiram escapar. Entregaram-se às águas deixaram-se levar sem
resistência, para só então escaparem, afastando-se a nado. Ai! Saudades de
minha infância, das brincadeiras com os primos e os filhos dos agregados,
caçando passarinhos, montando cavalo em pelo, banhando nas águas do rio!
Subíamos a pé pela margem alguns quilômetros. Depois lançávamos à corrente e
vínhamos descendo as águas, nadando ou boiando agarrados a um tronco.
Caminhamos mais um pouco,
galgamos o barranco e divisamos a casa de telha, com seu varandão ocupando toda
a frente. Lá estava o letreiro, pintado em letras primitivas, numa chapa de
madeira: Fazenda Paraíso.
Quando alcançamos o alto do
barranco, a cachorrada da fazenda veio a nosso encontro, latindo e abanando o
rabo, hesitante entre ser agressiva ou acolhedora. Atrás deles logo divisei
Cazuza, inconfundível após cinquenta anos de ausência. Envelhecido como envelhecem
os sertanejos, curtido de sol e chuva, humilde e simples, e ao mesmo tempo com
inata dignidade. Abraçamo-nos. Ou melhor, a princípio abracei-o eu, ele inibido
e duro, braços tesos, entre os meus. Depois prevaleceu seu coração e se desfez
em ternura, abraçando-me também.
Mal entramos na velha casa da
fazenda, repleta de memórias, larguei no quarto minha sacola, bebi um copo de
água fresca do pote, retirando-a com uma caneca de alumínio de longo cabo, e
convidei Cazuza para tomarmos um banho no rio. Ele riu com um riso maroto de
garoto apanhado em flagrante. E descemos juntos para o porto das Canoas.
Tiramos a roupa e atiramo-nos n’água, nadando, espadanando, como fazíamos em
criança. Ficamos um longo tempo dentro do rio, pendurados na borda de uma canoa,
conversando. Falamos da infância, dos animais, do cavalo Dois de Ouro, da
eguinha Melindrosa, nossa amante, do touro zebu Monte Negro, dos cachorros
Rompe Nuvem e Vai-ou-Racha. Eles eram parte do nosso mundo e nossa vida, como
velhos companheiros inesquecíveis, nossa versão nordestina do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, de Monteiro Lobato. Já agora éramos apenas dois velhos, amigos,
recordando uma infância comum.
Voltamos para a casa de telha
onde Sensata, a mulher de Cazuza, nos esperava com uma panelada, com pirão
escaldado. Na panela, afloravam tripas e miúdos de boi, pedaços de linguiça e
partes de chouriço. Assustei-me com a perspectiva de ingerir um prato tão rico.
Mas não quis desapontar Sensata. Servi-me do mínimo essencial para não ferir
sua susceptibilidade de quituteira famosa.
Lembrava-me de Sensata em menina.
Quem a visse hoje – murchos os olhos, murcho o busto, murcha a boca sem dentes
– não poderia imaginar o que ela fora na adolescência, sua beleza agreste, seu
viço, seus modos provocantes.
Um dia meu avô apanhara Sensata e
Cazuza se bolinando atrás de uma moita de murici. Enxotou-os aos brados,
ameaçando-os com terríveis punições. Mais tarde, porém, surpreendi-o, bem
humorado, contando a cena à minha avó. Minha avó, ao contrário, ficou chocadíssima
e mandou chamar dona Perpétua, mãe de Sensata, para contar-lhe o ocorrido, o
que lhe valeu uma surra de umbigo de boi.
Depois do almoço espichei-me numa
rede de tucum, armada na varanda, para descansar. Nas ripas do telhado, de
troncos de carnaúba, lagartixas desfilavam, balançando as cabecinhas. Mais
adiante, uma casa de marimbondo-chapéu, redonda e chata. Um beija-flor invadiu
a varanda, pairou no ar com as asas vibrando invisíveis, e desapareceu como um
clarão. Pouco a pouco, adormeci.
Fonte do texto e da foto: Portal
Entretextos.
Publicado originalmente em
janeiro de 1988, na edição 28 da revista Globo Rural.
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