O enviado do Diabo
Pádua Marques
Cronista, contista e romancista
Mané Vinvim, Domingos, Sardião,
Florindo, Seu Lino, Pilão, Tunga, Zé Preto, Menelau, Capote e Miguel Arcanjo
estavam ali no porto Salgado naquela terça-feira de mão no queixo esperando uma
decisão do encarregado dos estivadores pra saberem como iria ficar a situação
dos dias parados, sem movimento e muita conversa naquele meio pra fim de agosto
em Parnaíba. Alguns deles haviam passado já umas três noites na beira do rio
matando muriçocas.
No amanhecer do dia seguinte vinha lá
de dentro dos armazéns e lojas alguém com alguma novidade sobre de como iria
ficar o serviço daqueles homens que pouco tinham pra levar pras suas casas. Mas
isturdia havera de tudo voltar a ser como antes. Em casa da maioria, morando
nos distantes, as crianças passavam necessidade e os calangos estavam passando
por debaixo das trempes da cozinha porque a Parnaíba estava parada e as
mulheres dos estivadores não tinham o de comer pra botar na panela. Tardasse
muito podia dar até em morte!
Tudo por culpa de um tal Waldemar
Figueiroa, o novo inspetor da alfândega de Parnaíba e que tão logo desembarcou
no porto Salgado foi logo impondo mil e uma normas pra tudo quanto era
atividade. Era ter conhecimento de que estava atracando um vapor, um barco
qualquer e lá estava ele mesmo fazendo revista nas cargas, bagagens e até nas
pessoas!
Não tinha conversa e nem privilégios.
O coitado do velho que viesse dos Araioses ou de São Bernardo com a filha e o
genro se consultar com doutor Mirócles na Santa Casa e ele Figueiroa
suspeitasse, era de mandar abrir a mala e revirar tudo. Caísse na besteira de
trazer dos Araioses um leitão, um capado, um franguinho que fosse pra um agrado
a doutor Zé Narciso corria o risco de ser repreendido e humilhado na frente de
todo mundo.
Descesse um canoeiro com cinco ou seis
sacos de carvão ou de manga, no porto Salgado e Figueiroa estava rente mandando
abrir, derramar no cais pra ver se havia algum indício de contrabando. Senhora
ou moça fosse embarcar pra Tutoia e pra de lá ir pra São Luís, ele queria saber
o que tinha na bagagem. Armazéns estavam sendo revistados.
As lojas colocadas sob a suspeita de
venderem artigos falsificados ou de não recolherem os impostos devidos. Desde
então nunca mais se tinha tido sossego naquela Parnaíba. Era o grande, o
pequeno, o miúdo, o rico, o mais ou menos, o arremediado! Quem viesse
atravessando de canoa de Ilha Grande, do Labino e dos Tatus com alguma
mercadoria, era motivo até de prisão.
E a coisa foi engrossando. Os
comerciantes passaram a reclamar e agora já em voz alta e em reuniões por uma
atitude de quem fosse de direito. Aquilo não estava certo não! Casa Inglesa,
Franklin Veras e tantas outras. De tanto se reclamar sobre esta atitude do
inspetor Figueiroa, a conversa acabou chegando aos ouvidos de seu Constantino
Correia, presidente da Associação Comercial de Parnaíba.
A Associação Comercial de Parnaíba e a
Associação Comercial Varejista de Parnaíba se uniram com propósito de dar um
cobro no inspetor Waldemar Figueiroa. Naquele setembro de 1927 o comércio da
Parnaíba parou. Nem pra frente e nem pra trás! Lojas e armazéns no porto
Salgado e vizinhança, fosse do que fosse, ficaram com as portas fechadas por
dez dias. Todos os escritórios de representação, importadores e exportadores. E
no porto o movimento vindo do Maranhão desceu ao rés do chão. Os estivadores
ficaram com os braços cruzados.
No porto Salgado aqueles dias de
incertezas foram os piores pra todos aqueles homens rudes. Sem terem o que
fazer, um vapor pra descarregar ou carregar, passavam o dia tomando banho. Uns
pescando peixes miúdos, branquinha, bagres e até camarão de água doce.
Outros ficavam apostando quem tinha
mais força pra atravessar até a ilha em frente, mostrando destreza, nadando só
com um braço. Mergulhando por mais tempo, catando isso ou aquilo no fundo do
rio, caçando jacarés nos alagadiços na Ilha de Santa Isabel, achando graça,
mangando uns dos outros.
Mas por trás daquela alegria por não
terem trabalho, aqueles estivadores amargavam uma tristeza grande. Suas
famílias passavam necessidades. E nos
Tucuns e mais embaixo nos distantes da Parnaíba, nos pontos de cabarés, com
suas mulheres feias, umas gordas, outras sujas, mais outras magras,
desdentadas, enfraquecidas, desalinhadas, com filhos pelo meio, de vestidos
encardidos e cheirando a azeite de coco ou a tição de fogo sapecado, a pobreza
dominava. Quitanda que fosse não queria mais vender fiado. Gente doente na
porta da Santa Casa era só o que tinha.
Já entre aquela gente pobre tinha quem
estivesse se saindo pra pegar no que era alheio, vivendo de jogo apostado. E
veio entre uns estivadores aquela vontade de vingança com o inspetor Figueiroa
ou até mesmo com donos de lojas e armazéns. Se era pra dar prejuízo que desse
pra todo mundo!
Zé Preto, negro de uns vinte e poucos
anos, parrudo, cabeça quadrada, de boa altura, vindo de São Bernardo ainda
molecote e que cresceu e se criou ali pelo porto Salgado, sempre de faca
peixeira por dentro do cós do calção imundo de sujo, foi lá nos fundos de um
armazém e trouxe ainda na boca da noite uma vasilha até o meio, cheia de cera
de carnaúba, um molambo e um tição de fogo aceso.
Enquanto os companheiros estavam
entretidos com o jogo de baralho pra matar o tempo e as muriçocas, ele Zé Peto,
já correndo a noite pra entrada na madrugada, foi até a casa de pedra desceu os
degraus e caiu na água levando a vasilha já acesa. Era pra jogar no interior da
embarcação Estrela do Mearim. Tivesse gente dentro ou não, o intuito era tocar
fogo, causar prejuízo.
Mas o negro acabou fazendo barulho e
alguém lá de dentro, talvez um vigia, se acordou e perguntou quem era que
chegava. Zé Preto não respondeu. De novo o embarcadiço perguntou quem era. Zé
Preto começou a ficar com medo. Quem pode mais do que Deus? Quem pode mais do que Deus? Quem pode mais do
que Deus?
O negro estivador se arrepiou dos pés
à cabeça, segurou a peixeira na cintura, saiu se abaixando até alcançar a popa
da embarcação e se faqueou na água. A vasilha com a cera de carnaúba ainda
pegando fogo foi deixada no convés. Lá mais em cima os colegas ouviram o
barulho de alguém na água e a gritaria e correram pra ver do que se tratava.
Mas Zé Preto, favorecido pela escuridão, deu um mergulho profundo e quando saiu
foi do outro lado, entre os matos da beira do rio, já na Ilha de Santa Isabel.
Enquanto isso no outro dia e nos dias
seguintes chegavam mulheres vindas dos distantes com recas de meninos, sujos,
famintos, doentes, pedindo comida nas portas das famílias mais ricas. E aquilo
fez com que pela primeira vez as senhoras dos maiorais pedissem aos maridos que
fosse feita alguma coisa pra afastar aquele flagelo.
Os maiores comerciantes da Parnaíba se
reuniam pra abrir as burras e criarem um meio de ajudar aqueles miseráveis. Se
desse comida, tipo arroz, feijão, farinha, massa de milho, açúcar, um
quarteirão de azeite, roupa, rede pra
dormir, um paletó velho, algum calçado, um pão de sabão de coco pra tomarem
banho e lavagem de trens, remédio. Nada de dinheiro!
Essa situação de calamidade na
Parnaíba naquele mês de setembro com o comércio perdendo dinheiro, a fome e as
doenças se aproximando das casas dos ricos na praça de Santo Antonio, na porta
do Colégio das Irmãs e do largo da igreja de Nossa Senhora da Graça e do
Rosário dos Pretos, a pobreza e a inquietação capazes de causar até morte!
Ladrões, ditos amigos do alheio, se
apossando de tudo, até de uma galinha no quintal, acabou chegando aos ouvidos
do governo no Rio de Janeiro, a capital da República dos Estados Unidos do
Brasil. Lá mais uns dias e chegou a decisão de afastar Waldemar Figueiroa do
cargo de inspetor da alfândega.