sexta-feira, 5 de junho de 2020

Entre sapotis e carambolas




Entre sapotis e carambolas

Pádua Marques
Contista e romancista

Madrinha Gesuína havia mandado Tina limpar o pátio onde estavam no chão alguns muitos sapotis e carambolas apodrecendo e levantando mosquitos. Aquilo, aquela sujeira sem fim só haveria de chamar a atenção de meninos moleques de rua, homens que trabalhavam no porto, nas oficinas, nas fábricas de pilar arroz e a gente pobre dos Tucuns, os pedidores de esmolas que ficavam até tentando com a ajuda de um pedaço de pau ou outro meio a retirar essas frutas pelos vãos das grades.

Gesuína de Sales, a mulher mais rica da rua Vera Cruz em Parnaíba, viúva do capitão de navios Joaquim de Sales, o comandante Quincas de Sales, mandava, se preciso fosse, até soltar os três cachorros pra assustar aqueles invasores. E além da sujeira daquelas frutas podres levantando mosquitos, poderiam causar um dano no automóvel que fazia anos estava guardado, um Ford V8 Window Coupe. Depois que o marido morreu ela não quis mais saber de mandar vender ou contratar um chofer pra, pelo menos levar ela e Tina na missa, na igreja de Nossa Senhora da Graça.

A Parnaíba estava ficando grande e rica demais naquela guerra na Europa em 1941 e muitos parnaibanos que viviam nos Estados Unidos passaram a ficar preocupados e a causar preocupação. Mas dona Gesuína não era de largar o pé do telefone e do rádio, este último uma coisa nova, com a novidade da Rádio Educadora. Aqueles dois luxos eram ainda sua ligação com o que foi no passado, quando casou em Amarante, sua terra, com o jovem e entusiasmado capitão Joaquim de Sales e que lhe trouxe em seguida pra terra dos Moraes Correia.

Ela e Quincas de Sales nunca tiveram filhos. Fora o casal na casa apalacetada da Vera Cruz, vivia a negra Vicentina, a Tina, vinda com ela de Amarante desde o primeiro dia pra debaixo do teto do capitão. Ele, homem de grande fortuna, era mão fechada a ponto de, já doente recusar pagar passagem e tratamento em São Luiz no Maranhão e andar uma semana inteira vestido com um pijama. Fedia de longe. Quando a sujeira dava na vista de um lado, ele virava pelo avesso.

Deixou pra ela muito dinheiro, o palacete com boa mobília, quadros, vasos de porcelana, prataria e o automóvel, um carro muito bonito, preto, elegante e que chamava a atenção de todo mundo na Parnaíba. Comprado com a ajuda de gente de dentro da alfândega. Há um pouco tempo Gesuína comprou nos Marc Jacob uma geladeira, peça muito bonita e que funcionava a querosene.

Mas foram poucos os vizinhos que puderam ver. Da mesma forma foi quando ainda vivo, o capitão Quincas de Sales mandou instalar o telefone. Nada de estranhos dentro de casa, pedindo água gelada ou pra que Tina guardasse carne ou peixes. A luz elétrica dentro de casa era mandada ligar tão logo era difícil enxergar alguma coisa no escuro e tão logo ela Gesuína se recolhia pra seu quarto, a afilhada e criada vinha e apagava tudo e ia também dormir.

Gesuína custou a se acostumar com a luz elétrica e com o telefone. Mas só ela podia atender as raras ligações quando o aparelho tocava. Nos últimos anos dona Gesuína de Sales vivia dizendo pra uns poucos que ainda passavam por sua sala na Vera Cruz, que tinha dinheiro e se quisesse e ela estivesse à venda, podia comprar a Parnaíba inteirinha! Sales, seu marido, nunca foi de querer comprar terras. Esse negócio de léguas e mais léguas de carnaubais na Ilha Grande de Santa Isabel e na beira do rio Parnaíba, até a Barra do Longá, era fortuna enterrada!

Mas o capitão Joaquim de Sales, o Quincas de Sales, sendo rico e conhecido pelo silêncio que cobriu a sua e a vida da mulher Gesuína, era de guardar raiva de gente como a que alimentava pelo poeta Alarico da Cunha. Se bem que o jornalista nunca lhe tenha dirigido uma única vez a palavra e pouco tenha visto Sales em público, ali pela mercearia do seu Bembém, na rua Duque de Caxias e noutros lugares, no Cine Éden, na praça, nas casas comerciais dos Veras, pela Casa Inglesa e nos estabelecimentos dos Jacob.

Quincas de Sales tinha uma cisma porque o poeta era espírita. Dentro de casa xingava Alarico da Cunha de tudo quanto era nome feio. Gesuína ficava calada e até se retirava da sala. O capitão também não gostava de sair com a mulher pra ir à igreja. Detestava os padres, as imagens, as procissões, as novenas, as confissões e muito menos alguém vir pedir que fosse padrinho de seu filho. Mas a mulher, de birra, mandou fazer um banco com o nome deles, “Capitão Joaquim de Sales e Gesuína de Sales”.

Quando ele morreu, passados mais uns anos, Gesuína também já não gozando de saúde e de paciência e vendo seus dias se consumindo, igual às velas de cera ainda acesas nos altares de Nossa Senhora das Graças, mandou tirar o banco da igreja. O carro de pouco uso, luxuoso, lustrado, possante e o banco da igreja com o nome deles, passaram a ser vizinhos de esquecimento e entulho entre as carambolas e os sapotis podres no jardim da rica e sombria rua Vera Cruz, na antes barulhenta e rica Parnaíba.  

Um comentário:

  1. Pádua Marques, bom dia, que bela prosa, os personagens parecem reais, pelo menos alguns que li sobre eles ou ouvi falar deles em Parnaíba. O velho bairro Tucuns que a Dona Chiquita, no final dos anos 60, ia comprar mangas trazidas pelos canoeiros do Povoado Céu para vender no Mercado da Guarita. É uma viagem no tempo e na memória da Princesa do Igaraçu.
    Abraços,
    Everardo de Oliveira
    Parnaíba-PI

    ResponderExcluir