Edição antiga de O Mártir do Gólgota |
DIÁRIO
[O Mártir do Gólgota e eu]
Elmar Carvalho
26/03/2021
Dos nove para os dez anos de idade fui inoculado pelo vício
da leitura. Como já relatei alhures, nessa idade fui morar na zona rural de
Campo Maior. À falta da movimentação, dos barulhos, das luzes elétricas e das
brincadeiras da cidade, me voltei para os livros da pequena biblioteca de meu
pai. Logo, os li todos. De forma que, a cada sete ou quinze dias, quando meu
pai ia à cidade, de lá voltava me trazendo vários volumes, tomados por
empréstimo das bibliotecas de minha madrinha Mirozinha, prima de minha mãe, e
da do Grupo Escolar Valdivino Tito, onde ela lecionava.
Entre os poucos livros de meu pai, havia algumas antologias
didáticas e um livro sobre a história da Literatura Brasileira, este contendo
comentários críticos, pequenos trechos literários exemplificativos do comentário
e a síntese biográfica dos autores. Foram escritos ou organizados por, entre
outros, Aída Costa e José de Sá Nunes. Eu os li e reli várias vezes, e procurei
lhes assimilar as lições, os exemplos e o que eu achava mais bonito e
emocionante. Daí me veio a vontade de ser escritor. Assim, li os principais
livros da literatura infanto-juvenil, e mais tarde vários clássicos da
literatura brasileira e mundial, sobretudo romances e livros de contos e
poemas.
Do acervo de meu pai, li partes do romance O Mártir do
Gólgota, de Henrique Pérez Escrich. Li apenas partes, porque a obra se
encontrava dilacerada e esquartejada. Muitos anos depois, ao indagar sobre a causa
de sua mutilação, meu pai me revelou que eu próprio o dilacerara, quando ainda
infante. Contou-me que sua mãe, Joana Lina, ao brincar comigo, e, não desejando
me contrariar, deixava que eu rasgasse muitas páginas literárias.
Quem diria que, alguns anos depois, em lugar de verdugo, eu
fosse me tornar um amante inveterado de obras literárias. Tendo minha avó falecido
em 30/03/1963, eu forçosamente teria que ter menos de sete anos. Em virtude de
não ter nenhuma lembrança desse meu vandalismo literário, creio devesse ter 3
ou 4 anos. Como me causava desgosto eu não poder acompanhar a sequência de
todas os relatos desfiados ao longo do volumoso livro, em que era romanceada a
vida de Jesus Cristo.
Em Parnaíba, no início de minha juventude, me veio uma enorme
vontade de ler e/ou reler esse romance, que pelos motivos ditos acima não o
lera de forma completa. Além do mais, já lá se iam mais de década em que eu
lera várias de suas páginas. Porém, não o encontrei à venda através do sistema
de reembolso postal, muito menos em livraria. Também não o encontrei em
biblioteca pública ou particular a que tivesse acesso. Meu pai ainda consultou
alguns amigos que poderiam tê-lo, mas não teve sucesso nessa busca. Nem mesmo o
Monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio, que fora meu professor no curso de
Administração de Empresas na UFPI, o tinha. Fiquei frustrado com essa leitura
incompleta.
Contudo, certo dia, mais ou menos em 1988, já morando em
Teresina, conversei com um poeta sobre essa minha busca inglória. O vate vendia
livros de sua propriedade e autoria, e alguns de outros autores, e, quiçá, de
propriedade, digamos, indefinida. Conhecendo o meu forte desejo de reler O
Mártir do Gólgota, me disse que o conseguiria para mim. De fato, poucos dias
depois ele me retornou à SUNAB, que então já funcionava no prédio da Delegacia
do Ministério da Fazenda no Piauí.
O poeta notando nos meus olhos e na minha fala certa ânsia e
sofreguidão, foi implacável; me cobrou um bom preço, e ainda alguns livros “de
volta”, ou seja, como parte do pagamento. Mesmo assim não me chateei e fiz o
negócio de bom-grado. Entre os livros que me exigiu, me lembro bem que um era
Os Sertões, de Euclides da Cunha, em bonita edição do Círculo do Livro, que eu
adquirira pelo serviço de reembolso postal, hoje em desuso.
Achei que não lhe fosse degustar a leitura com o mesmo prazer
que sentira, quando, garoto de dez ou onze anos, o fiz pela primeira vez. Mas o
fiz com a mesma volúpia intelectual de outrora, quando tudo me era novidade e
motivo de encantamento. O volume, de aspecto bem antigo, no formato 18cm por
14cm, com 757 páginas, não tem apresentação nem prefácio, e sequer o nome da
editora e data da publicação.
Nesta terça-feira, dia 23, recebi, pelos Correios, uma nova
edição desse romance, que comprei através da Amazon. Tem o subtítulo, que não
aparece em meu volume antigo, de “tradições do oriente”. Foi publicado pela
Sirius Editorial em abril de 2019. Nas informações técnicas consta que a capa é
do pintor holandês Pieter Lastman (séc. XVII), que reproduz sua tela A
Crucificação. Traz várias gravuras de Gustave Doré e ilustrações desentranhadas
da 2ª edição espanhola (1866), realizada por L. Lopez Y A. Gulon, Editores.
Tem ainda orelha, apresentação, nota biográfica e uma
introdução, esta do próprio autor, contida em meu velho alfarrábio. Pinço da
orelha o seguinte trecho: “Combinando História e ficção, Pérez Escrich consegue
em O Mártir do Gólgota respeitar a veracidade substancial da figura de Cristo
sem sacrificar sua imaginação de romancista. // O cenário político da Judeia na
época do nascimento de Cristo, o mundo decadente da Roma imperial, a sequência
histórica da vida de Cristo à luz do Evangelho, a perseguição dos cristãos pelo
paganismo romano são mostrados nesta obra com fidelidade à essência da sua
doutrina.”
Na Nota Biográfica nos é dada a informação de que o
romancista nasceu em Valência em 1829. E que, aos 19 anos, ante a morte
repentina dos pais de sua jovem namorada, se sentiu compelido a se casar com
ela e a assumir a criação de seus quatro irmãos. Em determinada etapa de sua
vida, chegou a ser um homem rico, graças à popularidade de suas obras. Houve
época em que faturava cerca de 50.000 pesetas por ano.
Ajudou amigos e escritores iniciantes. Para melhor
recebê-los, passou a viver como um príncipe, em hotel de luxo. Contudo, sempre
se manteve como um perfeito cavalheiro, homem cristão e bom que era. No
melancólico crepúsculo de sua vida, velho e esquecido, passadas as pompas de
seu tempo de glória, precisou ocupar cargo de pequena remuneração. Diz a nota
biográfica: “Homem muito gentil, cavalheiro exemplar de excepcional simpatia,
morreu aos 68 anos em 1897.”
O romance, em estilo folhetinesco, como era moda na Europa,
na época, foi publicado pela primeira vez em 1863 e 1864, em cinco volumes.
Misturando história e ficção, o autor colheu os elementos do conteúdo de sua
obra magna em livros de História e na Bíblia, e sem dúvida na tradição oriental,
como sugere o subtítulo e, talvez, em Evangelhos apócrifos, a que possa ter
tido acesso.
Bira Câmara, autor da apresentação e do projeto gráfico,
entende que nele predomina a fantasia, e afirma que “se o romance histórico já
representa um problema, o romance histórico-religioso levanta muito mais”.
Acrescenta que “ao contrário do juízo do público leitor que consagrou esta obra
através do tempo, os críticos em geral fazem restrições a ela, que está longe
de ser uma obra-prima”; todavia considera que ela teria passado pelo teste do
tempo e caído no gosto popular, conforme o comprova “o grande número de edições
e de leitores”, que a teriam elegido como “um dos mais belos romances do gênero
folhetinesco”.
Entretanto, não informa que restrições os críticos lhe teriam
feito ao longo de mais de século e meio de sua primeira edição. Tampouco
esclarece porque não poderia ser uma obra-prima. Talvez lhe falte a esmerada
técnica da romancística de um Flaubert, sobretudo em Madame Bovary. Pode ser
que haja algum derramamento emocional, um ou outro exagero descritivo, e talvez
um grande número de relatos permeando o que deveria ser a história principal.
Todavia, no relato de muitas aventuras e na dissertação sobre alguns fatos fica
claro que ele soube pintar o cenário de forma atraente e soube dar vida a seus
personagens, quase nos causando a sensação de estarmos assistindo a um filme.
Não se pode negar, Pérez Escrich era um grande contador de
histórias. Sabia emocionar e mesmo comover o leitor. As várias histórias que se
sucedem ao longo dos sucessivos livros, enfeixados nas duas partes do volumoso
romance, nos atraem e nos atiçam o imaginário, e os trechos verídicos, elaborados
à luz da História e dos Evangelhos, servem para aprimorar e reavivar os nossos
conhecimentos sobre Jesus Cristo e sobre outras figuras bíblicas. É um livro
que, pela terceira vez, estou lendo com prazer.
“Sem faltar ao dogma, muitas vezes havemos adotado o estilo
poético, que não fica mal a um livro desta índole”, disse o autor em sua introdução.
De fato, em certos momentos, o ritmo de sua prosa se reveste de bela e
comovente poesia. E então não nos podemos esquecer da poesia que flui em muitas
passagens do Velho e do Novo Testamento, como nos Salmos, nos Cantares de
Salomão e nas parábolas e discursos de Jesus.
Suas descrições, em alguns trechos, sobretudo quando exaltam o céu da Galileia e as cambiantes cores do crepúsculo, quando parecem aspirar o aroma balsâmico das faldas do Carmelo, quando evocam os imponentes e odoríferos cedros das cordilheiras do Líbano, adquirem o ritmo e a fluência de exuberante prosa poética.
O livro, Em mar, gerou adaptação para o teatro com o nome de A Tragedia do Golgota, peça muita famosa em Teresina no início dos anos sessenta.
ResponderExcluirDe fato o autor foi também dramaturgo, embora suas peças tenham caído no esquecimento.
ResponderExcluirParabéns, muito agradável a leitura deste texto!
ResponderExcluirExcelente, Poeta. Você foi muito feliz ao combinar um belo e instigante ensaio literário com um importante movimento rememorativo. E isso adicionou a sua crônica aquela pitada atrativa que nos faz mergulhar com intensa curiosidade na leitura de um determinado texto.
ResponderExcluirFoi um dos melhores livros sobre a vida do Mestre Jesus Cristo que já tive a honra de ler, reler e ler e reler. Sou apaixonada por essa obra que para mim, é raríssima! A história de Dimas me fascinou sobremaneira! Eunice Câmara
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