[Carta-louvação a Noturno de Oeiras e outras evocações]
Elmar Carvalho
25/03/2021
Nesta terça-feira, dia 23, recebi por WhatsApp, enviado por Carlos
Rubem, a Carta-louvação a Noturno de Oeiras e outras evocações, escrita pelo
Dr. Elisabeto Ribeiro Gonçalves, radicado em Belo Horizonte, um dos mais
respeitados oftalmologistas do Brasil. Mais tarde, para minha grande
satisfação, vi que o confrade e amigo Des. Sebastião Martins, ex-presidente do
Tribunal de Justiça do Piauí, a havia postado no grupo de WhatsApp da AMALPI –
Academia Maçônica de Letras do Piauí.
Preciso contar um pouquinho a história dessa exemplar e
irretocável missiva. No dia 11/12/2014, participei da solenidade de lançamento
do monumental livro Enlaces de Famílias – uma genealogia em construção, da
autoria do escritor, historiador, biógrafo e genealogista Valdemir Miranda de
Castro. No final do evento, a professora e historiadora Teresinha Queiroz me
apresentou à senhora Anatália Gonçalves de Sampaio Pereira, e lhe falou do meu
livro Noturno de Oeiras e outras Evocações, e sobretudo do poema Noturno de
Oeiras. Ela ficou muito interessada e me perguntou onde poderia adquiri-lo. Eu
lhe disse que em breve lhe levaria um exemplar.
Quando fui ao seu Cartório lhe entregar o livro, ela falou
que gostaria de enviar um exemplar ao seu irmão Elisabeto, que era um leitor
voraz. Fiz chegar a suas mãos um outro volume, que ela lhe enviou. Poucos dias
depois, recebi um amável e-mail, que trazia essa carta, digna dos maiores
missivistas, que tem todos os ingredientes e condimentos de uma crônica de
perfeito lavor literário.
No grupo da Amalpi postei o seguinte comentário, abaixo da
carta: “Acho que o médico Elisabeto talvez seja o último grande missivista, no
verdadeiro sentido da palavra. Estilo, conteúdo e correção gramatical, com
frases bem construídas e bem ritmadas. Creio que o Dr. Elisabeto derramou nessa
carta não apenas tinta, mas principalmente muita emoção e talvez até lágrimas,
ainda que furtivas”. Sem necessidade de mais explicações, suponho, segue a
carta na íntegra:
CARTA-LOUVAÇÃO A NOTURNO DE OEIRAS E OUTRAS EVOCAÇÕES (*)
Elisabeto Ribeiro Gonçalves
Prezado poeta ELMAR CARVALHO,
Acabei de ler o seu livro, “Noturno de Oeiras e outras
evocações”, que você, a pedido de minha querida irmã Anatália, gentilmente me
enviou.
Li-o de uma tacada, como se diz, pois não faz mais de uma
semana que o recebi.
Li mais rápido que de costume, não para me desincumbir do
compromisso de dar alguma satisfação ao autor, mas o li assim, vorazmente,
porque o livro, por seus vários méritos, me aguçou o interesse.
Logo no início da leitura, lembrei-me do ensinamento da
escritora americana, Susan Sontag, em seu Questão de Ênfase. Ensaios: não há
livro digno de ser lido se não for digno de ser lido várias vezes. Não tive nenhuma dúvida de que ”Noturno...”
devia ser lido, merecia ser lido, não uma, mas várias vezes. E é o que está
sendo feito, poeta.
Além das virtudes próprias do livro, que são tantas, ele me
dá, de lambujem, mais uma satisfação e um encantamento: rememorar Oeiras,
retornar a Oeiras, reviver Oeiras.
O livro é Oeiras encadernada, viva, palpitante. Ele me levou
a Oeiras, de onde saí ainda bem jovem em busca do conhecimento que ela não
poderia mais me dar. Mas não sei, não sei...
Fico pensando, poeta, se Oeiras, hoje uma insofrida saudade,
não teria me ensinado o pouco que hoje sei (ou penso saber) da vida e do mundo. Oeiras teria sido a minha universidade não
oficial, pois ela, abrigando tantos professores titulares de vida, de
experiência e plenos de generosidade, poderia, sem dúvida, ter ensinado muito e
muito mais ao menino que fui e ao homem que seria.
Se, como dizem, o menino é o pai do homem, este menino de
Oeiras, se por lá tivesse ficado, hoje teria muito mais para dar e transmitir a
este adulto que agora lhe escreve. Mas,
infelizmente, vi-me obrigado a cabular as aulas oficiadas pela mestra Oeiras,
mas a ela sempre volto, pouco fisicamente, mas a todo tempo em que o tempo da
memória e do afeto me permite.
Seu livro trouxe Oeiras a Belo Horizonte, trouxe-a a mim, com
sua rotina modorrenta, suas tradições, seus odores, os meus amigos de infância,
a escola e seus Mestres, suas lendas e ajudou-me a me recompor, a fazer uma
remontagem emocional da nossa Oeiras. E
logo me vejo em Oeiras, menino, quem sabe de calças curtas, na Vila do Mocha,
assustado com os fantasmas que perambulavam ( e ainda perambulam) pelo Sobrado
Velho (sobrado dos Ferraz?), pelos becos
e pelos Cemitérios, velhos os
dois.
Você, poeta, com sua arte e inteligência, recriou-me Oeiras,
inteirinha. Tão animado fiquei que, por
conta própria, tomei a liberdade de inserir, na sua moldura oeirense, os doidos
de minha infância, os doidos de Oeiras: Antônio Bocão (seu Tonho), Ana Ruça,
Dorête, Zé Doidim, Claro, e Sabino. Os alfenins de que você fala, levou-me a
Sancha, vizinha nossa, que sabia fazê-los como ninguém, brancos, gostosos,
macios, exatamente como você aponta no Noturno de Oeiras.
“Noturno de Oeiras”...
Como comentá-lo? Tudo já foi dito sobre o poema e eu estaria tão só chovendo no
molhado. Mas não resisto em comentar o verso “onde músicos falecidos acordam
sons delicados”. Acordar (tecer acordes) e acordar (sair do sono). Magistral
essa ambiguidade poética. Porque os músicos de Oeiras eram famosos por sua
sensibilidade e destreza em compor e tecer pautas de rara beleza.
Mas esses músicos também, com o pretexto de seus versos,
acordaram em minha memória e lá estou eu assistindo-os, embevecido, no coreto
da antiga Praça da Bandeira, a praça mais bonita de quantas pude ver. Lá estão
eles: Osíris (no trombone de vara), Levi (no pistom), seu Lico (no tambor), Tabaqueiro
(nos pratos), Doca (na tuba). Esses e tantos outros, afora a atividade
individual, reuniam-se na noite de toda quinta-feira para um espetáculo de
musicalidade e talento com uma das bandas (eram duas) de que Oeiras dispunha.
Possidônio Queiroz é um capítulo à parte. Dono de raro talento para a música (tocava
flauta) e as letras, possuía um conhecimento enciclopédico e uma capacidade
invulgar de ser gentil e obsequioso. De todos os oeirenses, do mais letrado ao
mais simples, exalava admiração e respeito pelo homem e pelo artista
Possidônio.
Pois bem, o seu “Noturno...” é arte de fina e rebuscada
engenharia literária e poética, é um régio presente às letras piauienses e à
história e à memória de Oeiras. O
progresso, poeta, tem o defeito de compartimentar a história, confinando-a nos
limites de uma nesga de tempo vivida por determinada geração. Digo de outra
forma: em termos de memória, as gerações só têm compromissos com o seu
tempo. É necessário, de uma forma ou de
outra, resgatar o tempo passado, tecer um liame vivo entre o ontem e o hoje,
ensinar aos homens de agora a importância do exemplo e dos valores das gerações
passadas.
Seu livro, poeta, é essa linha luminosa trafegando entre
Oeiras atual, moderna (ou modernizada) e Oeiras dos sobradões, dos seixos nas
ruas, dos Passos, da Casa da Pólvora, da Cadeia Velha, da Casa do Visconde, do
Pé de Deus e do Diabo, das Igrejas, do relógio da Matriz (“com o mostrador
roído pela pátina”), do Grupo Escolar Costa Alvarenga e do Ginásio Municipal
Oeirense (nos quais estudei), das quintas (ainda se dizia “quintas”!) do Cel.
Orlando (meu avô), de “seu” Tibério Siqueira e Morena (grandes amigos), do meu
tio João Ribeiro (Santa Rita), dos umbus do Condado e de dona Clarice, do Poço
dos Cavalos (onde quase me afoguei), do Morro do Leme, dos Urubus, da
Sociedade...
Tempo em que os comerciantes fechavam suas lojas às 11h e só
retornavam ao trabalho às 14, depois de uma tranquila e reconfortante sesta.
Naquele tempo todos sesteavam, só o velho relógio da Matriz insistia em
manter-se acordado, repetindo suas “badaladas punhaladas” de susto e
compromisso.
Tempo de homens e mulheres imperecíveis, cartilhas vivas nas
quais, menino, aprendi um pouco (ou muito) do bê-a-bá da vida. É preciso,
poeta, que as gerações atuais não se esqueçam das que se foram e o seu livro é
um chamado a esse não-esquecimento, a essa reverência ao passado tão rico de
homens e mulheres e das lições escritas e repetidas por eles.
É preciso que não nos esqueçamos de Joel Campos, Bembém, Xé,
Edul, João Burane, Zé Sá, Raimundinho Sá, Pedro Ferrer, Pedro Sá, Luiz Rego e
Odete, Gerson Campos e sua saudável irreverência, Orlando Carvalho e Anatália
(meus avós maternos), Yaiá (minha avó paterna), Paulo de Tarso e Iolanda (meus
pais), Mário Freitas e dona Conceição, Mãe Tonha, dona Sinhá e Iara (dos
queimados), Antônio Gentil (da “casa das doze janelas doze donzelas”), de
Galeno e Julieta, dos Tabaqueiros, de “seu” Natu e dona Darinha, de Zé Lopes,
do Cônego Cardoso, do Mons. Leopoldo, de Tiborão e dona Cocota, minha mestra,
vivíssima, graças a Deus.
Pedro Ferrer Mendes de Freitas, Pedro Ferrer do seu livro,
jornalista e escritor dos bons, Ferrezinho para a família, Farroz para a
molecada da nossa infância e meninice. Neto de um outro Pedro Ferrer, um dos
homens mais elegantes, finos e gentis de minha época, um dos grandes amigos de
minha família e, em especial, do meu
pai.
Mas já escrevi muito, poeta, muito além do que devia. É que
seu livro e seu acendrado amor por Oeiras transformaram você num amigo de longa
data, aquele que nos dá total liberdade pra conversar, sem limites de tempo.
Muito obrigado pelo livro, vou relê-lo várias vezes, sempre
em busca do prazer, do enriquecimento e conforto que sua leitura me dá.
Abraços afetuosos do amigo e admirador,
Elisabeto Ribeiro Gonçalves
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