segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

REVELAÇÕES DA ANTIGA FAZENDA DE ESCRAVOS, OS ECOS DA ESCRAVIDÃO E O ALTIVO DESCENDENTE DOS EX-CATIVOS

 

Foto meramente ilustrativa. Fonte: Google


REVELAÇÕES DA ANTIGA FAZENDA DE ESCRAVOS, OS ECOS DA ESCRAVIDÃO E O ALTIVO DESCENDENTE DOS EX-CATIVOS


Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)

 

Esta pequena jornada começou, quando descobri, por curiosidade e através de laudo genealógico, mas sem a pretensão de busca por nobreza sanguínea de linhagem, antigos ramos de ascendência familiar.

Um dos quais, levaram-me às velhas fazendas coloniais, outrora escravistas dos estados do Piauí e Minas Gerais, sobretudo, - como muitas outras famílias com ascendência portuguesa-.

Assim, era uma ensolarada manhã de sábado, eu, meu filho e alguns familiares fomos de carro a uma destas fazendas muito antigas, numa excursão histórica e familiar.

Percorremos cerca de 16 km de Esperantina (PI), na estrada que leva a São João do Arraial (PI) em busca da Fazenda Olho d` Água dos Negros.

O suspense, para os desbravadores de final de semana aumentou, porque, na ocasião, não havia placa indicativa para nos guiar à antiga entrada da fazenda, que é hoje chamada Fazenda Olho d` Água dos Negros, encravada numa comunidade quilombola com o mesmo nome.

Em seguida, apesar desta excitação inicial e, depois do pequeno percurso entre a estrada bruta ou “de chão batido” e o asfalto, chegamos a uma velha entrada em ruínas, com o que aparentava um velho portão carcomido.

 E, logo após, havia uma descida um tanto íngreme, com grandes pedras soltas, o que nos leva a ver, no fim da ladeira, a copa de um grande mangal centenário, buritis, velhas oliveiras e um telhado de um casarão baixo e grande.

Depois de passarmos pelas ruínas deste velho pórtico, lá no final da ladeira, como estivesse incrustada em um vão ou vale perdido, escondido por um morro e entre às frondosas e belas árvores em torno, como mangueiras, buritis, oliveiras e outras, chega-se à casa sede da antiga fazenda.

E, brindando-nos, ainda, escutamos os pássaros - como sabiás, corrupiões, pipiras, curicas - em regozijo frenético devido às azeitonas maduras e os frutos dos muitos buritis da região.

De logo, senti uma sensação estranha de que o local era familiar, sem jamais ter ido antes. Apesar disso, segui em frente com os companheiros, na aventura exploratória.

Ao chegarmos em frente à construção, ficamos um tanto como fossemos os primeiros desbravadores do local, já que, na ocasião, não havia um guia e às portas da velha fazenda estavam fechadas, por medida de segurança. O que aumentou mais ainda a curiosidade por novas descobertas. Enfim, livres para imaginar.

Observamos que na parte frontal da velha sede havia um extenso muro feito por pedras brutas cheias de um lodo verdoso, sem uniformidade, daqueles parecidos com às formações dos castelos medievais, com cerca de três ou quatro palmos de largura com um metro e pouco de altura. Pedras estas com cerca de quatro ou mais quilos de peso. Brutas mesmo. In natura.

Ao tocar o velho muro de pedras, tive um arrepio daqueles que iam até a espinha. E a sensação intrigante de que já estive ali ressurgiu.

O incrível é que, na verdade, não toquei somente em pedras, mas no passado latente e vivo, inda mais quando a mente dá asas à imaginação. E, com isso, idealizei o suor, sangue e dor dos cativos depositários das marcas indeléveis no muro de pedra.

Outra sensação estranha ocasionada por este estado mental é um certo remorso por não ter podido fazer nada a respeito, mas um pouco exagerada, admito.

Por sorte, ao escrever sobre o local, tento resgatar o nosso passado ainda recente que ecoa no presente e futuro, para que o trauma deixado não se repita.

Assim, depois de horas perambulando ao redor do local, avistamos, de longe, saindo de uma vereda da densa mata ao redor da casa, aquele senhor baixo e franzino, aparentando idade avançada, trajando roupas muito simples e de pele sofrida pelo causticante sol do Piauí, com uma cabaça e enxada no ombro, mas com os seus passos firmes e ritmados. Um típico sertanejo nordestino.

Pedimos informações. E, ele, sem titubear, disse sim. Com isso, o pequeno grupo de exploradores arregimentou um guia informal. O que gostamos.

Conversa vai, conversa vem, fomos papeando:

- O senhor mora na região? O que pode contar a respeito da Fazenda? E os escravos?

Aí, este, acendeu um velho cachimbo que estava no bolso e, como se um baú muito antigo de preciosos tesouros e informações se abrisse, deu início a conversa:

- Sou um bisneto dos antigos escravos desta que era uma grande fazenda, meu falecido pai, escutou de seus antepassados muitas histórias. Disse o senhor, em nítido tom de satisfação.

-O muro de pedra e a estrutura ao redor era maior e foi construído manualmente por meus antepassados.  Ao que dizem, de grandes pedras vindas destes morros próximos e defronte aí da casa, como vocês estão vendo. Continuou.

-E foram transportadas através de rústicas esteiras feitas de palha e madeira, a duros sacrifícios. Mas, não em lombo de animais, como imaginam, e, sim, nos braços dos escravos. Finalizou.

Depois disto, passou a descrever vários detalhes e lendas da casa grande da fazenda, como um suposto e antigo porão com armas, botica de ouro enterrada, o real tamanho original da grande propriedade (enorme), um poço mágico no quintal, dentre outras coisas incríveis que mereciam muitas e muitas entrevistas.

No entanto, à medida que falava, se aprofundava em questões mais antigas e densas do local.

Em seguida, espontaneamente, falou:

-  Mas, sinhô, o fato que tenho de dizer é que, uma vez, tive discussão com uma pessoa. Disse o velho descendente dos antigos escravos.

- Esta falava com certa rispidez em relação aos negros e escravos, o que me incomodava. E, já tinha uma certa fama a respeito destas opiniões. Disse o senhorzinho.

- No entanto, certo dia, numa conversa franca, disse-lhe uma coisa que estava há muito presa no coração e na memória...

- E o que foi? Dessa vez, perguntei.

- Certa vez, de tanto escutar tais absurdos, calmamente, disse-lhe que não podia falar mal dos escravos, pois um antigo dono de escravos engravidou escrava negra cativa da senzala que, por vez, teve uma criança pertencente e acolhida pela família dos amos. Ponderou o altivo descendente de escravos.

Para espanto de todos os pesquisadores amadores presentes, o senhorzinho revelou um episódio, até então, enterrado na história: - Ou seja, a despeito da escravidão, como sistema cruel e sectário, pelo nascimento de uma criança em comum, houve o entrançamento e união da linhagem de antigos donos da fazenda e uma escrava negra.

Por isso, a seu modo, encarou com altivez os ecos da escravidão, quem sabe, no seu processo particular de cura.

Despediu-se, com muita educação, e disse que estaria à disposição para outras perguntas, seguindo, apesar do peso da idade, de fronte erguida e passos firmes, ladeira acima...

 

(*) Advogado e escritor.   

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