REVELAÇÕES DA ANTIGA FAZENDA DE
ESCRAVOS, OS ECOS DA ESCRAVIDÃO E O ALTIVO DESCENDENTE DOS EX-CATIVOS
Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)
Esta pequena jornada começou,
quando descobri, por curiosidade e através de laudo genealógico, mas sem a
pretensão de busca por nobreza sanguínea de linhagem, antigos ramos de
ascendência familiar.
Um dos quais, levaram-me às
velhas fazendas coloniais, outrora escravistas dos estados do Piauí e Minas
Gerais, sobretudo, - como muitas outras famílias com ascendência portuguesa-.
Assim, era uma ensolarada manhã
de sábado, eu, meu filho e alguns familiares fomos de carro a uma destas
fazendas muito antigas, numa excursão histórica e familiar.
Percorremos cerca de 16 km de
Esperantina (PI), na estrada que leva a São João do Arraial (PI) em busca da
Fazenda Olho d` Água dos Negros.
O suspense, para os desbravadores
de final de semana aumentou, porque, na ocasião, não havia placa indicativa
para nos guiar à antiga entrada da fazenda, que é hoje chamada Fazenda Olho d`
Água dos Negros, encravada numa comunidade quilombola com o mesmo nome.
Em seguida, apesar desta
excitação inicial e, depois do pequeno percurso entre a estrada bruta ou “de
chão batido” e o asfalto, chegamos a uma velha entrada em ruínas, com o que
aparentava um velho portão carcomido.
E, logo após, havia uma descida um tanto
íngreme, com grandes pedras soltas, o que nos leva a ver, no fim da ladeira, a
copa de um grande mangal centenário, buritis, velhas oliveiras e um telhado de
um casarão baixo e grande.
Depois de passarmos pelas ruínas
deste velho pórtico, lá no final da ladeira, como estivesse incrustada em um
vão ou vale perdido, escondido por um morro e entre às frondosas e belas
árvores em torno, como mangueiras, buritis, oliveiras e outras, chega-se à casa
sede da antiga fazenda.
E, brindando-nos, ainda,
escutamos os pássaros - como sabiás, corrupiões, pipiras, curicas - em regozijo
frenético devido às azeitonas maduras e os frutos dos muitos buritis da região.
De logo, senti uma sensação
estranha de que o local era familiar, sem jamais ter ido antes. Apesar disso,
segui em frente com os companheiros, na aventura exploratória.
Ao chegarmos em frente à
construção, ficamos um tanto como fossemos os primeiros desbravadores do local,
já que, na ocasião, não havia um guia e às portas da velha fazenda estavam
fechadas, por medida de segurança. O que aumentou mais ainda a curiosidade por
novas descobertas. Enfim, livres para imaginar.
Observamos que na parte frontal
da velha sede havia um extenso muro feito por pedras brutas cheias de um lodo
verdoso, sem uniformidade, daqueles parecidos com às formações dos castelos
medievais, com cerca de três ou quatro palmos de largura com um metro e pouco
de altura. Pedras estas com cerca de quatro ou mais quilos de peso. Brutas
mesmo. In natura.
Ao tocar o velho muro de pedras,
tive um arrepio daqueles que iam até a espinha. E a sensação intrigante de que
já estive ali ressurgiu.
O incrível é que, na verdade, não
toquei somente em pedras, mas no passado latente e vivo, inda mais quando a
mente dá asas à imaginação. E, com isso, idealizei o suor, sangue e dor dos
cativos depositários das marcas indeléveis no muro de pedra.
Outra sensação estranha
ocasionada por este estado mental é um certo remorso por não ter podido fazer
nada a respeito, mas um pouco exagerada, admito.
Por sorte, ao escrever sobre o
local, tento resgatar o nosso passado ainda recente que ecoa no presente e
futuro, para que o trauma deixado não se repita.
Assim, depois de horas
perambulando ao redor do local, avistamos, de longe, saindo de uma vereda da
densa mata ao redor da casa, aquele senhor baixo e franzino, aparentando idade
avançada, trajando roupas muito simples e de pele sofrida pelo causticante sol
do Piauí, com uma cabaça e enxada no ombro, mas com os seus passos firmes e
ritmados. Um típico sertanejo nordestino.
Pedimos informações. E, ele, sem
titubear, disse sim. Com isso, o pequeno grupo de exploradores arregimentou um
guia informal. O que gostamos.
Conversa vai, conversa vem, fomos
papeando:
- O senhor mora na região? O que
pode contar a respeito da Fazenda? E os escravos?
Aí, este, acendeu um velho
cachimbo que estava no bolso e, como se um baú muito antigo de preciosos
tesouros e informações se abrisse, deu início a conversa:
- Sou um bisneto dos antigos
escravos desta que era uma grande fazenda, meu falecido pai, escutou de seus
antepassados muitas histórias. Disse o senhor, em nítido tom de satisfação.
-O muro de pedra e a estrutura ao
redor era maior e foi construído manualmente por meus antepassados. Ao que dizem, de grandes pedras vindas destes
morros próximos e defronte aí da casa, como vocês estão vendo. Continuou.
-E foram transportadas através de
rústicas esteiras feitas de palha e madeira, a duros sacrifícios. Mas, não em
lombo de animais, como imaginam, e, sim, nos braços dos escravos. Finalizou.
Depois disto, passou a descrever
vários detalhes e lendas da casa grande da fazenda, como um suposto e antigo
porão com armas, botica de ouro enterrada, o real tamanho original da grande
propriedade (enorme), um poço mágico no quintal, dentre outras coisas incríveis
que mereciam muitas e muitas entrevistas.
No entanto, à medida que falava,
se aprofundava em questões mais antigas e densas do local.
Em seguida, espontaneamente,
falou:
-
Mas, sinhô, o fato que tenho de dizer é que, uma vez, tive discussão com
uma pessoa. Disse o velho descendente dos antigos escravos.
- Esta falava com certa rispidez
em relação aos negros e escravos, o que me incomodava. E, já tinha uma certa
fama a respeito destas opiniões. Disse o senhorzinho.
- No entanto, certo dia, numa
conversa franca, disse-lhe uma coisa que estava há muito presa no coração e na
memória...
- E o que foi? Dessa vez,
perguntei.
- Certa vez, de tanto escutar
tais absurdos, calmamente, disse-lhe que não podia falar mal dos escravos, pois
um antigo dono de escravos engravidou escrava negra cativa da senzala que, por
vez, teve uma criança pertencente e acolhida pela família dos amos. Ponderou o
altivo descendente de escravos.
Para espanto de todos os
pesquisadores amadores presentes, o senhorzinho revelou um episódio, até então,
enterrado na história: - Ou seja, a despeito da escravidão, como sistema cruel
e sectário, pelo nascimento de uma criança em comum, houve o entrançamento e
união da linhagem de antigos donos da fazenda e uma escrava negra.
Por isso, a seu modo, encarou com
altivez os ecos da escravidão, quem sabe, no seu processo particular de cura.
Despediu-se, com muita educação,
e disse que estaria à disposição para outras perguntas, seguindo, apesar do
peso da idade, de fronte erguida e passos firmes, ladeira acima...
(*) Advogado e escritor.
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