Meu pai e minha mãe, em tela do pintor Rogério Albino |
RETRATO
DE MINHA MÃE
Elmar
Carvalho
Neste Dias das Mães, em que se completaram 10 anos do falecimento de minha saudosa mãe (26/04/2013), resolvi republicar este texto em sua homenagem.
Fernando
Pessoa, em versos, disse que após sua morte, se quisessem escrever sua
biografia, não haveria nada mais simples, porquanto tinha apenas duas datas: a
de sua nascença e a de sua morte. Minha mãe nasceu no dia 20/11/1933 e faleceu
na sexta-feira passada, 26/04/2013. Era de poucas letras, embora tivesse enorme
sabedoria de vida, e tinha o que hoje chamam de inteligência emocional. Com
efeito, em sua modéstia e simplicidade, era uma mulher muito inteligente e perspicaz.
Se eu quisesse resumir este perfil, que tento fazer de minha mãe, diria que o
texto insuperável de Don Ramon Angel Jara, bispo de La Serena – Chile, a ela se
aplica com exatidão, como se aplica a todas as verdadeiras mães.
Não
exerceu cargos e nem funções públicas. E nunca os almejou. Cristo disse que
quem desejasse ser o maior, deveria ser o que mais servisse. Portanto, deveria
ser o maior e o melhor dos servos. Mamãe (quase) renunciou a si mesma, para
servir aos outros. Sua missão, à qual se dedicou de forma obstinada e contínua,
sem tréguas, sem férias, sem feriado, sem queixas e sem lamentações ou mágoas,
foi cuidar do seu marido e dos seus oito filhos. E como soube cuidar... Nisso
foi inexcedível.
Desde
o amanhecer até o momento em que ia dormir, não sabia ficar quieta. Sempre
tinha algo a fazer. Nisso se incluíam todos os misteres domésticos. Cuidava do
marido e dos filhos; limpava a casa; lavava as roupas e as louças; fazia as
refeições e chegou ao ponto, durante vários anos, de confeccionar as roupas dos
filhos, mormente numa época em que não era costume comprar-se roupas feitas.
Nossas
roupas eram bem-feitas, tanto no corte, como na costura, e bem se ajustavam ao
nosso porte. Em determinada época, apenas por passatempo, no período em que morava
em Parnaíba, passou a confeccionar animais e bonecas de pano ou plástico, para
presentear os filhos e alguns amigos, e também ornar sua casa. Eram trabalhos
feitos com esmero, com observância de detalhes, enfeites e adereços, que lhe
revelaram a sua faceta artística, a que não deu continuidade, porquanto sua
vocação ou devoção era, efetivamente, ser esposa, mãe e exímia dona de casa.
Mesmo
quando passou a ter colaboradora, jamais deixou de exercitar esses trabalhos.
Nunca lhe ouvimos lamúrias por causa de sua dura labuta doméstica. Sentia-se
realizada em ser dona de casa e mãe de família. Parecia encarar esse labor
extenuante e repetitivo como uma missão sagrada, que lhe dava íntima satisfação
e à qual não desejava e nem poderia fugir, ainda que apenas aos domingos.
Das
várias mensagens que os netos divulgaram através da internet (facebook) e que
publiquei em meu blog, pinço trecho de duas. Este, de meu filho João Miguel,
cadete da Polícia Militar do Amazonas, e que, por isso mesmo, não pôde
comparecer ao enterro de sua avó: “Hoje o céu está mais alegre. Os anjos
cantam. Chega mais uma estrela para brilhar no paraíso. Passa agora um filme na
minha cabeça dos momentos que passamos juntos, da alegria que cativava todos,
da cumplicidade com a família, da sinceridade que transparecia em seu rosto”. E
este outro, escrito por Raquel Guedelha: “Certa vez, vovó comentou com meu
irmão, que a imagem da felicidade dela era olhar para o passado e lembrar a
época em que o meu avô chegava do trabalho em Campo Maior, e todos os filhos
dela, que brincavam na frente da casa, saíam correndo ao encontro do pai para
trazê-lo para casa”.
Tinha
mamãe o espírito forte e uma grande energia vital. Mantinha sempre o ânimo
alegre, sem mágoa, sem ira e sem temores. Não tinha inveja de nada e nunca se
maldizia. Não gostava de fuxicos, futricas e fofocas, e, portanto, não se
comprazia em falar da vida alheia. Embora não fosse de visitar amiúde as casas
alheias, mesmo porque não tinha tempo para isso, tinha a amizade e a estima dos
vizinhos, aos quais tinha o mesmo apreço, amizade e consideração. Creio que a
sua força e vitalidade provinham de uma Fé singela, mas inabalável em Deus, que
ela não alardeava, pois a conservava em seu íntimo, em recanto secreto.
Essa
Fé a fez ser sempre uma mulher forte, decidida, embora de trato suave, e mesmo
delicado. Cultivava discreta alegria, sem ostentação e espalhafato. Ao
trabalhar, em sua faina diária e contínua, cantarolava algumas músicas de sua
predileção. Não obstante essa sua postura, soube disciplinar os filhos, com a
palavra, com o castigo e com os corretivos, para que fôssemos pessoas do bem e
buscássemos a virtude. Nessa seara tivemos, também, o seu exemplo e o de nosso
pai, que lhe sobrevive. Contudo, não fomos criados presos, amarrados à barra de
seu vestido. Fomos livres e brincamos a valer.
Conquanto
tivesse mamãe uma personalidade forte, e tenha enfrentado com galhardia as
dificuldades e vicissitudes da vida, que se abatem sobre todas as famílias,
sejam percalços financeiros ou doenças, sem nunca esmorecer ou perder a
Esperança e a Fé, entretanto, quando a tragédia, pela primeira e única vez,
atingiu a nossa família, eu pude imaginar o quanto ela nos amava. Foi quando
minha irmã Josélia, aos quinze anos de idade, no auge de sua beleza, carisma e
simpatia contagiante, linda e odorífera flor que mal desabrochara, foi colhida
brutal e inesperadamente pela morte, vítima de acidente automobilístico.
Minha
mãe passou vários dias imersa em imensa tristeza, prostrada em sua alcova, a
derramar profusas e sentidas lágrimas; chorou sua filha, como Raquel chorou
seus filhos, “sem aceitar consolação por eles, porque já não existem”. A duras
penas, sabe Deus com que esforço, conseguiu sair de sua profunda prostração,
para cuidar do seu marido e de seus filhos, que dela ainda muito precisavam.
Aos poucos, retomou a sua rotina e voltou a tomar posse de si mesma, do modo
como sempre fora.
Tinha
senso de humor, embora o usasse de forma moderada, e jamais para diminuir ou
ridicularizar quem quer que fosse. Certa feita, o meu saudoso cunhado Zé
Henrique disse que, quando morresse, gostaria de ser um urubu. Um pouco por
influência minha, creio, ele passara a admirar essas negras aves, a sua saúde,
a sua missão de limpar o mundo, a sua magnífica coreografia aérea, e até mesmo
o seu gingado caminhar de malandro carioca. Minha mãe, sorridente, retrucou-lhe
que preferia ser um bem-te-vi, pela sua beleza e alegria. Na tarde de sua
morte, ouvi o canto alegre desse passarinho, que já não ouvia há algum tempo, e
tive o lampejo de que seu espírito partia para o infinito.
Décadas
atrás, minha mãe ganhou um casal de papagaios. Criou-os com muito zelo, carinho
e estima. Não lhes ensinou palavrões e nem cantigas indecorosas, como as que
hoje nos agridem os tímpanos e a alma em quase todo lugar. Ensinou-lhes belas e
alegres canções, inclusive religiosas, conquanto não fosse carola, avessa que
era a hipocrisias e falsidades farisaicas.
Graças
à sua obstinada determinação nesse mister, o Louro e a Rosa aprenderam um vasto
repertório de palavras, frases e cantigas. Era muito engraçado ouvir-se a
algazarra festiva dos papagaios, quando eles estavam de bom-humor, pois essas
aves, como os humanos, cuja voz eles imitam, parecem ter os seus caprichos, em
que alternam momentos de alegre expansão com momentos de sisuda introspecção,
ou mesmo de certa melancolia.
Deus
concedeu a minha mãe que ela nos preparasse para a sua morte. Ela sempre disse
não ter medo de morrer. Quando teve de encarar duas ou três cirurgias, resolveu
enfrentá-las de imediato, sem desânimo e sem receio. Os sentimentos negativos,
que deve ter tido, em sua condição de humana, guardou-os para si; parecia não
desejar contaminar os outros com queixas, medos, mágoas ou desesperanças. Em
virtude de sua hepatopatia, um ano atrás, começou a definhar e a apresentar
alguns problemas de saúde, ela que sempre fora tão saudável e incansável.
Esses
problemas começaram a amiudar, e culminaram com a necessidade de ser internada
em hospital de Teresina. Poucos dias depois, com a alteração de suas taxas,
como a de potássio, que se elevou muito, e a de sódio, que caiu demasiadamente,
seu coração, que era forte e vigoroso, sofreu uma fibrilação atrial, tendo ela
que ir para a Unidade de Tratamento Intensivo.
Disso
lhe adveio outras complicações, como uma embolia, numa das pernas, tendo ela
que ser submetida a pequena cirurgia para retirada do coágulo sanguíneo.
Finalmente, ocorreu o seu falecimento, aos 79 anos de idade, na tarde do dia
26, às 15:45 horas. Esse lento e gradativo declínio de sua saúde, contribuiu
para que meu pai, minhas duas irmãs, meus quatro irmãos e eu suportássemos a
sua morte sem desespero, e com resignação. Os choros foram contidos,
silenciosos, ou apenas internamente, sem convulsivos soluços e clamores.
Minha
mãe, como já falei, dizia não temer a morte. Dizia isso de forma humilde, sem
empáfia e sem ostentação; apenas como quem, de há muito, entendeu-a como parte
integrante da vida, ou mesmo como um portal para a continuação da existência,
em novo estágio ou nova dimensão do espaço-tempo. Por essa razão, numa das
vezes em que a visitei na UTI, disse-lhe para ser forte, rezar e confiar em
Deus. Ela, com um fio de voz, dada a sua fraqueza física, porém com firmeza e
serenidade, reafirmou-me não temer a morte.
O
meu irmão César Carvalho (Neném), quando contei esse diálogo, disse-me,
aludindo à circunstância de ser eu poeta:
–
Você é doido mesmo... Todo poeta é um pouco doido. Você foi puxar um assunto
desse!?
Sou,
talvez, mas quem não é? Dizem que todo mundo tem um pouco de poeta e de louco.
Além do mais, quiçá, tenha contribuído para reavivar a sua coragem e Fé.
Quando
se aproximava a sua viagem a Teresina, para consulta e tratamento, se fosse o
caso, minha mãe deu alguns de seus vasos de plantas a uma vizinha, Lindalva, esposa
do comerciante Zé Francisco, amigo nosso. Ambos são pessoas boníssimas, e Deus
os está abençoando em seus filhos, que estão a concluir os cursos de Radiologia
e de Medicina. Recomendou, ainda, que os seus queridos papagaios fossem
entregues a um dos filhos. Provavelmente, antevia que meu pai fosse sofrer
muito com a visão e as cantigas deles, a lhe provocar lancinantes evocações e
saudade, o que já está acontecendo.
Tempos
atrás, ela firmou contrato com a funerária Pax União, naturalmente antevendo que
o termo de seus dias já se aproximava. Também preveniu a familiares que
desejava ser sepultada em Campo Maior, no cemitério do bairro Cidade Nova, ao
lado do sepulcro de seu irmão Antônio Horácio de Melo, que fica perto do túmulo
de sua irmã Maria dos Remédios e de seu cunhado Zeca Quaresma. Ela,
pessoalmente, foi escolher o local, e pediu a sua reserva e marcação. Disso
podemos inferir que ela tinha a premonição de que sua hora final já se
avizinhava.
Josélia,
filha de minha irmã Maria José (Mazé), contou que, na tarde em que minha mãe
partiu para a eternidade, sonhara que ela retornava a sua casa em Campo Maior,
entrando pelo quintal, cheio das árvores que ela plantou e dos arbustos
ornamentais e flores que ela cultivava. Minha sobrinha, admirada de ela haver
saído do hospital, lhe perguntou:
–
Vovó, a senhora está bem?
Minha
mãe, então, lhe respondeu:
–
Agora, estou.
Quando
Josélia acordou desse sono/sonho ouviu o telefone tocar. Era o meu irmão César
Carvalho que ligara para lhe dar a notícia de que mamãe acabara de falecer.
Certamente está bem, no lugar de beatitude que o Pai lhe deve ter destinado.
Na
manhã do dia em que mamãe morreu, os papagaios começaram a cantar uma das
cantigas que ela lhes ensinou. Como uma espécie de premonição, o Louro e a Rosa
cantaram o seguinte trecho de hino religioso: “Mãezinha do céu, eu não sei
rezar / Eu só sei dizer quero te amar”. O Solimar, um de nossos vizinhos,
acrescentou que, após o cântico católico, uma das aves teria pedido: “Vovô
Miguel, traz o café”, tendo a outra acrescentado que o queria com leite. Que
avezinha mais exigente!...
Pouco
antes da chegada do corpo de mamãe, fato ocorrido à noite, os papagaios
novamente cantaram o refrão acima transcrito, e também o seguinte trecho de
melancólica marchinha carnavalesca: “Oh! jardineira por que estás tão triste /
Mas o que foi que te aconteceu? / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois
suspiros e depois morreu”. Há quinze dias que meus pais já se encontravam
ausentes, ficando eles aos cuidados da Alba, que também os ouviu cantar os
versos iniciais do hino religioso. Os animais, que muitos dizem não ter
raciocínio, parecem ter os seus mistérios e segredos.
Somos
agradecidos a todos os parentes e amigos que nos deram a sua solidariedade,
pessoalmente, por telefone ou pela internet, tanto nas visitas ao hospital,
como no comparecimento ao velório e ao sepultamento. Na longa noite em que
mamãe foi velada, muitos ficaram até o raiar do dia, rezando e nos
reconfortando com sua presença. No quintal da casa, os xarás Zé Francisco, o
professor e o nosso vizinho, ficaram a noite toda conversando comigo, por mais
que eu lhes tenha dito que deveriam ir repousar, pois ambos têm as suas
ocupações profissionais.
Muitos
choraram copiosamente, embora de forma sóbria. Outros contiveram as lágrimas.
Meu pai, minhas irmãs e alguns irmãos derramaram seus prantos, em alguns
momentos, mas sem lamentações e sem desespero, porque sabiam que a vida de
minha mãe continua em alguma das casas do Senhor da Eternidade – “na casa de
meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito”,
garantiu-nos o Cristo (João, 14.2). Ao tombar do dia, mas ainda com sol,
entregamos o corpo de mamãe aos cuidados da mãe terra. Sua alma, esta se
encontra numa das moradas celestiais, ou “na mão de Deus, na sua mão direita”,
como nos versos sublimes de Antero de Quental.
Encerrando
redação sobre as mães, que valeria como prova da disciplina Educação Moral e
Cívica, no antigo Ginásio Estadual, da qual era professor o impoluto juiz de
Direito Dr. Hilson Bona, em que obtive nota máxima, disse, em pleno adolescer:
“E agora direi, como disse Paulo Setúbal: 'Minha mãe, Deus lhe pague!'” Repito,
agora, finalizando este singelo retrato, em plena maturidade: Minha mãe, Deus
lhe pague.
…............................................
Sobrevivem a minha mãe, o marido, Miguel Arcângelo de Deus Carvalho, e os filhos José Elmar, João José, Antônio José, Maria José, Paulo José, Joserita e Francisco José Nonato César (César), todos com o sobrenome “de Mélo Carvalho”. Minha irmã Josélia faleceu em 02/07/1978, aos 15 anos de idade. Meu pai veio a falecer em 05.11.2017.
Bonita e tocante, a história de sua mãe, inexcedível no cuidado e proteção da família!
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
ExcluirReli e chorei (acho que novamente). Belo texto! Vovó cumpriu sua missão de forma esplêndida!
ResponderExcluirUm poema-em-prosa, que li de um fôlego só. Viajei no tempo e no espaço, em uma procissão telúrica e cheia de lirismo, os anjos dizendo "Amém!". Marcelino Barroso
ResponderExcluirEstimado professor Marcelino,
ResponderExcluirSuas palavras me comoveram, porque realmente pretendi escrever uma elegia em prosa, em memória de minha mãe, ser excepcional em sua dedicação à família - marido e filhos.
Elmar Carvalho
Belo texto inspirado na passagem de uma heroína. A linguagem trouxe um colorido diferente a grande homenageada. Minha vó, como sua mãe eram heroínas e estão num lugarzinho especial do céu. Muito parecidas na postura diante da vida. Parabéns 👏👏👏
ResponderExcluirMuito obrigado a todos os estimados amigos que se manifestaram sobre minha saudosa mãe.
ExcluirBela e sensível homenagem à uma amada mãe.
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