O Cassino Esperantino
*Fabrício Carvalho Amorim Leite
O Cassino Esperantino, instalado
no Retiro da Boa Esperança, era de uma graça peculiar. O edifício barroco, de
um tom violeta vibrante, era opulento. Com suas largas portas de cedro que se
abriam para um piso de pau-d’arco acetinado. Colunas internas em forma de arcos
davam a impressão de sua luxuosidade. Do alto, via-se as sacadas belas e
panorâmicas para a igreja.
No centro da cidade, a igreja e o
cassino ficavam lado a lado, simbolizando o dualismo entre a fé cristã e o
impulso hedonista que caracterizava o Retiro da Boa Esperança.
Dentro do Esperantino, era comum
escutar os ruídos das moedas caindo sobre as mesas murmurantes, a música doce
misturada com o baralhar das cartas, e o cheiro dominante de cigarro, Scotch e
da fragrância francesa. Apesar do cenário mundial carregado pela guerra, a
indulgência pela diversão reinava.
E os mais ricos divertiam-se no
templo pagão após receberem a benção do septuagenário Padre AmaDeus, um
contrário ao cassino e falso moralista. Discretamente, contava-se que o velho
padre possuía inclinação para flertes, dentre outros desvios ao direito
canônico.
- É um monumento à perversão. –
Pregava o clérigo em suas ladainhas, sob o olhar desconfiado do prefeito, do
juiz, o sacristão e os outros fregueses do Esperantino.
Apesar disso, Antônio Severino, o
garçom, com seu paletó social branco e corpo franzino, tinha orgulho de seu
trabalho no local. Enquanto recebia o salário e gorjetas em cruzeiros, os
“homens encourados” da zona rural eram pagos “por ‘sorte’, ou seja, de quatro
bezerros ou crias nascidas de caprinos, bovinos ou suínos, um pertencia ao
vaqueiro. ”
O Retiro era uma cidade de pouco
menos de dez mil habitantes. Com ruas de calçamento rústico e outras de terra
batida.
Severino morava com a esposa
Joana e seus nove filhos na empoeirada Rua da Seriguela, em um casebre de
pau-a-pique à margem do Rio Longá, que banhava a cidade, e o utilizavam para
pescaria e complemento do sustento.
A Seriguela coalhava-se de
casebres com seus proletários. Sem saneamento básico, crianças e doenças
multiplicando-se a cada dia, num compasso tão apressado como os peixes do rio,
esses engordados pelo esgoto da cidade.
Severino, habitualmente feliz,
soube em uma noite de trabalho, através de um cliente que também era empregado
do governo, que o cassino iria fechar:
- O Presidente deseja acabar com
o jogo de azar, disse-lhe.
- Tem certeza, ou é só rumor de
beata invejosa, - Perguntou o garçom, com as mãos já frias e trêmulas.
- Então, irei falar pessoalmente
com o Prefeito Pitombeira. Ele é o meu antigo cliente e vai esclarecer esse
mal-entendido – disse Antônio, com confiança.
Antônio, com a habilidade obtida
por várias décadas servindo os doutores da cidade, aproximou-se com elegância
da mesa do Prefeito e perguntou-lhe sobre o encerramento do cassino.
- Sim, é verdade. A notícia saiu
no Pasquim e chegou um telegrama da União. Está acima do meu posto. – Falou,
com desengano.
- Como? - Questionou Severino ao
arregalar os olhos.
- Em seguida, o Prefeito, sempre
a arriscar-se agradar a todos por uns votos, jurou ao garçom que os seus
direitos seriam preservados...
Descrente da própria sorte,
Severino se senta na melhor cadeira do cassino e, imitando os ricos clientes,
pede uma garrafa de whisky. Com os olhos já emocionados, percorre o teto do
edifício, as cadeiras ao estilo Luís XV, e o amplo balcão de mogno, onde serviu
várias doses, e, finalmente, fala:
- Não há problema, vou voltar
para o Sertão, diz, ecoando a frase até a última gota do escocês.
Em casa, bêbado pela primeira
vez, não teve forças para dar a grave notícia a Joana. Ela era uma morena de
forte presença em sua vida, com o tempero das duras lições, que apenas o
observava.
De repente, Joana levantou-se do
banquinho onde estava, com seus braços modelados pelo trabalho doméstico, e o
abraçou com fervor. Continuaram em silêncio, olhando os seus filhos pela
janela, ainda pequenos, mas já tão ligados ao rio.
A indignação da cidade, pelo
fechamento do cassino, tomou todas as feições e vontades. As bíblias, em mãos,
tornaram-se as velhas trincheiras dos ditos homens sérios. E, decerto aos
outros o estigma de pagãos.
O Padre AmaDeus continuava a
pregar, mas agora com um tom de vingança na sua voz. Certo, para ele, de que
tinha razão na sua cruzada.
Passados alguns anos da saída do
retirante, o furor em fazer-se em pedaços o velho imóvel causava seus ruídos: o
atrito das pás e picaretas sobre as paredes largas construídas por escravos, às
ordens dos mestres de obras, o cheiro de poeira misturada com barro seco criava
um cenário de desolação e ruínas.
Do cassino, salvaram-se, na beira
da calçada da igreja, a roleta e o balcão, tornando-se um amargo lembrete e um
último sulco de desafio contra o pároco que celebrou a queda do culto
pagão.
Ao meio dia, estaciona um
carro-pipa d`agua no novo lar agreste de Severino. Em seguida, o indiferente
motorista buzina com pressa e entorna o líquido raro nos galões juntos na
entrada.
Severino, da varanda, ao ver a
cena, cabisbaixo e inerte, finge um sorriso, enquanto olha para a pequena
imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança na sala de visitas e transporta-se de
volta a igreja da cidadezinha.
Joana deita a cabeça fatigada
pelo calor no mourão da cerca que rodeia a casa, e mira firme o horizonte
árido, rubro e cinza, com os filhos a brincar nos rastros da poeira sem
fim.
(*) cronista e contista.
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