sexta-feira, 2 de junho de 2023

O Cassino Esperantino




O Cassino Esperantino


 *Fabrício Carvalho Amorim Leite

 

O Cassino Esperantino, instalado no Retiro da Boa Esperança, era de uma graça peculiar. O edifício barroco, de um tom violeta vibrante, era opulento. Com suas largas portas de cedro que se abriam para um piso de pau-d’arco acetinado. Colunas internas em forma de arcos davam a impressão de sua luxuosidade. Do alto, via-se as sacadas belas e panorâmicas para a igreja.

 

No centro da cidade, a igreja e o cassino ficavam lado a lado, simbolizando o dualismo entre a fé cristã e o impulso hedonista que caracterizava o Retiro da Boa Esperança.

 

Dentro do Esperantino, era comum escutar os ruídos das moedas caindo sobre as mesas murmurantes, a música doce misturada com o baralhar das cartas, e o cheiro dominante de cigarro, Scotch e da fragrância francesa. Apesar do cenário mundial carregado pela guerra, a indulgência pela diversão reinava.

 

E os mais ricos divertiam-se no templo pagão após receberem a benção do septuagenário Padre AmaDeus, um contrário ao cassino e falso moralista. Discretamente, contava-se que o velho padre possuía inclinação para flertes, dentre outros desvios ao direito canônico.

 

- É um monumento à perversão. – Pregava o clérigo em suas ladainhas, sob o olhar desconfiado do prefeito, do juiz, o sacristão e os outros fregueses do Esperantino.

 

Apesar disso, Antônio Severino, o garçom, com seu paletó social branco e corpo franzino, tinha orgulho de seu trabalho no local. Enquanto recebia o salário e gorjetas em cruzeiros, os “homens encourados” da zona rural eram pagos “por ‘sorte’, ou seja, de quatro bezerros ou crias nascidas de caprinos, bovinos ou suínos, um pertencia ao vaqueiro. ”

 

O Retiro era uma cidade de pouco menos de dez mil habitantes. Com ruas de calçamento rústico e outras de terra batida.

 

Severino morava com a esposa Joana e seus nove filhos na empoeirada Rua da Seriguela, em um casebre de pau-a-pique à margem do Rio Longá, que banhava a cidade, e o utilizavam para pescaria e complemento do sustento.

 

A Seriguela coalhava-se de casebres com seus proletários. Sem saneamento básico, crianças e doenças multiplicando-se a cada dia, num compasso tão apressado como os peixes do rio, esses engordados pelo esgoto da cidade.

 

Severino, habitualmente feliz, soube em uma noite de trabalho, através de um cliente que também era empregado do governo, que o cassino iria fechar:

 

- O Presidente deseja acabar com o jogo de azar, disse-lhe.

 

- Tem certeza, ou é só rumor de beata invejosa, - Perguntou o garçom, com as mãos já frias e trêmulas.

 

- Então, irei falar pessoalmente com o Prefeito Pitombeira. Ele é o meu antigo cliente e vai esclarecer esse mal-entendido – disse Antônio, com confiança.

 

Antônio, com a habilidade obtida por várias décadas servindo os doutores da cidade, aproximou-se com elegância da mesa do Prefeito e perguntou-lhe sobre o encerramento do cassino.

 

- Sim, é verdade. A notícia saiu no Pasquim e chegou um telegrama da União. Está acima do meu posto. – Falou, com desengano.

 

- Como? - Questionou Severino ao arregalar os olhos.

 

- Em seguida, o Prefeito, sempre a arriscar-se agradar a todos por uns votos, jurou ao garçom que os seus direitos seriam preservados...

 

Descrente da própria sorte, Severino se senta na melhor cadeira do cassino e, imitando os ricos clientes, pede uma garrafa de whisky. Com os olhos já emocionados, percorre o teto do edifício, as cadeiras ao estilo Luís XV, e o amplo balcão de mogno, onde serviu várias doses, e, finalmente, fala:

 

- Não há problema, vou voltar para o Sertão, diz, ecoando a frase até a última gota do escocês.

 

Em casa, bêbado pela primeira vez, não teve forças para dar a grave notícia a Joana. Ela era uma morena de forte presença em sua vida, com o tempero das duras lições, que apenas o observava.

 

De repente, Joana levantou-se do banquinho onde estava, com seus braços modelados pelo trabalho doméstico, e o abraçou com fervor. Continuaram em silêncio, olhando os seus filhos pela janela, ainda pequenos, mas já tão ligados ao rio.

 

A indignação da cidade, pelo fechamento do cassino, tomou todas as feições e vontades. As bíblias, em mãos, tornaram-se as velhas trincheiras dos ditos homens sérios. E, decerto aos outros o estigma de pagãos.

 

O Padre AmaDeus continuava a pregar, mas agora com um tom de vingança na sua voz. Certo, para ele, de que tinha razão na sua cruzada. 

 

Passados alguns anos da saída do retirante, o furor em fazer-se em pedaços o velho imóvel causava seus ruídos: o atrito das pás e picaretas sobre as paredes largas construídas por escravos, às ordens dos mestres de obras, o cheiro de poeira misturada com barro seco criava um cenário de desolação e ruínas.

 

Do cassino, salvaram-se, na beira da calçada da igreja, a roleta e o balcão, tornando-se um amargo lembrete e um último sulco de desafio contra o pároco que celebrou a queda do culto pagão.  

 

Ao meio dia, estaciona um carro-pipa d`agua no novo lar agreste de Severino. Em seguida, o indiferente motorista buzina com pressa e entorna o líquido raro nos galões juntos na entrada.

 

Severino, da varanda, ao ver a cena, cabisbaixo e inerte, finge um sorriso, enquanto olha para a pequena imagem de Nossa Senhora da Boa Esperança na sala de visitas e transporta-se de volta a igreja da cidadezinha.

 

Joana deita a cabeça fatigada pelo calor no mourão da cerca que rodeia a casa, e mira firme o horizonte árido, rubro e cinza, com os filhos a brincar nos rastros da poeira sem fim. 

(*) cronista e contista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário