Passeio evocativo ao poeta
Jamerson Lemos
Elmar Carvalho
Às oito da manhã do sábado
retrasado, conforme combinado dias antes, o médico Jamerson Lemos Jr., um dos
melhores ortopedistas de Teresina, chegou à porta de minha casa. Quando cheguei
a seu carro, vi que lá já estavam duas pessoas que eu não conhecia, cujos nomes
eram Helder Higino, que exerceu importantes funções no Banco do Brasil, e
Alessandro Andrade Spíndola, zeloso e dinâmico Defensor Público, como depois
fiquei sabendo. Fomos buscar o delegado de Polícia Civil, Roberto Carlos Sales
Silva, atual Corregedor Geral. Em seguida, fomos comer cachorro-quente na
região do Mafuá, mais precisamente na tradicional Lanchonete Estudantil.
O motivo principal de minha
presença nessa expedição à região de Santana do Gameleira, no município de
Timon, era para que eu revisse o sítio do saudoso poeta Jamerson Lemos, onde
estive tantas vezes, mais de 25 anos atrás, para degustar umas doses do velho
Ron Montilla ou de uma gim tônica. O bardo invariavelmente preferia o velho
pirata caolho e seu papagaio.
Não entrarei aqui em certos
detalhes e em certas conversas ao longo do percurso, já bastante modificado,
por causa da construção de várias casas e sítios à beira da estrada que segue
para Matões. Por volta das 10 horas, chegamos ao nosso destino, ou seja, ao
sítio, hoje administrado pelo Jamerson Jr., que melhorou a casa, construiu um
campo de futebol, uma ampla piscina, uma capela, e a área de lazer e
degustação, onde ficamos, que fica perto da escadaria que desce para o riacho
Gameleira.
Desde o início das tratativas
desse passeio, combinamos que ele seria evocativo ao poeta Jamerson. Assim,
avisei ao Júnior, que leria três poemas, por mim selecionados do livro Sábado
Árido, e faria um discurso. Logo no início das libações, preveni que pronunciaria
meu discurso em plena lucidez, para que nada pudesse macular a memória afetiva
e literária que eu tinha de seu pai.
Acordamos, então, que após a
quarta ou quinta cerveja, tomaríamos uma boa talagada do Ron Montilla deixado
pelo nosso poeta, falecido em 2008, em forma de cubra libre, ou seja, com
Coca-Cola e limão. Cumprido esse ritual, falei que começaria recitando três
poemas de sua autoria, com que me aqueceria para proferir o meu improviso. Após
desligado o som, com o necessário silêncio dos amigos, iniciei a minha fala,
cuja síntese segue abaixo. Espero não tenha sido uma enfadonha arenga.
Recordei que nesse sítio, então
simples, diria mesmo rústico, no melhor sentido da palavra, estivera várias
vezes, na segunda metade dos anos 80, mas sobretudo na primeira metade da
década seguinte, com minha mulher e nossos filhos, então meninos. Olhando a
floresta ao redor, observei que se mantinha bela, verdejante e muito bem
conservada; que as margens do Gameleira estavam bem definidas, sem sinais de
assoreamento, e que esse riacho, para minha exultação, ainda corria de forma
saudável e perene, sem interrupções de sua corrente ao longo de todo ano.
Evocando o poeta e amigo, lembrei
que muitas vezes estive com ele, não só em seu belo sítio, mas em locais e
eventos culturais diversos em Teresina. Não pude deixar de fazer referência ao
conhecido “bar do repórter”, de propriedade do saudoso Mauri Mauá de Queiroz,
cuja sepultura fica ao lado do jazigo que comprei, no Cemitério da
Ressurreição, de sorte que seremos vizinhos pela eternidade.
Nessas ocasiões, vi, algumas
vezes, o Jamerson pegar um guardanapo de papel e escrever um belo e impecável
poema, pode-se dizer que ao sabor do improviso ou repente. Eram poemas
bem-feitos, poemas feitos por um mestre, muitas vezes rimados e metrificados,
de alta sonoridade e ritmo, com esmeradas metáforas e outras figuras de estilo.
Em algumas oportunidades, quando
surgia o ensejo, o poeta, com a sua voz de timbres e entonações peculiares e o
seu característico sotaque pernambucano, declamava um de seus antológicos
poemas, fosse o que relatava a fúria do arimã selvagem, fosse o que falava das
botinas pesadas de areia, da areia de areais infindos, desérticos, fosse ainda
o que externava a angústia e o desespero dos afogados, não sei se dos Afogados
da Ingazeira da velha Recife de sua juventude, que também conheci em tempos
idos e vividos e malferidos.
Lamentei a morte precoce do
poeta, mas em qualquer idade que ele se fosse para mim seria sempre demasiado
cedo, pois ele muito ainda teria a dizer, alegrando o mundo com a força
encantatória de sua poesia.
Certa vez, no sítio Bom Jesus da
Lapa, que também poderia se chamar Bom Jesus do Gameleira, uma faísca arisca e
traquina atingiu a pequena palhoça, que cobria a churrasqueira. Em lugar de se
chatear, o poeta, ao olhar as chamas vorazes nas palhas, parecia admirar a
beleza das línguas ígneas. Esse incidente/acidente até me fez lembrar o
sanguinário Nero, que tinha veleidade de poeta, a contemplar a Roma imperial em
chamas, na intenção frustrada, dizem, de compor um poema épico, em que
pretendia, talvez, se ombrear a Homero. Só que Nero era apenas um perverso e um
poeta abaixo da mediocridade, enquanto o Jamerson era um condor a pairar sobre
os Andes da grande poesia. Tomado de emoção disse ainda outras coisas, que já
não consigo reconstituir com precisão.
Incontinenti, fez um emocionante
depoimento o Jamerson Jr., que nos contagiou. Relatou que certa feita pediu
perdão ao pai, “pelas vezes que me envergonhei de você”, ao que o vate
respondera:
“Deixa eu te
falar uma coisa. Quando eu era muito pequeno e até logo antes da adolescência o
meu pai era pra mim meu herói! Fazia coisas que eu não conseguia! Trocava uma
lâmpada, nadava em um rio, ia no fundo da piscina, me levantava nos braços e
por aí vai. Depois, me tornei um adolescente e meu pai, seu avô, virou pra mim
um obsoleto, atrasado; enfim, um cara fora de moda, talvez até mesmo um babaca,
com as suas lições sem sentido. Quando envelheci é que passei a entender os
segredos da vida e analisei toda a história de meu pai, os altos e baixos , e
tudo o que ele sofreu pra me criar juntamente com meus irmãos; só então percebi
que ele sempre foi aquele herói e eu é que, por um determinado tempo, havia me
tornado um grande babaca!”
Jamerson Júnior, de forma
arrebatada, arrematou o seu discurso, nos confessando que, então, dissera a seu
pai: “Obrigado, pai, por me perdoar e também por me chamar de babaca com tanta
delicadeza!” Não seria necessário dizer que o Júnior nos comoveu de forma
“covarde” e contundente.
Em seguida, surgiu no espaço de lazer uma
borboleta, que começou a esvoaçar sobre nós, em círculos ou de um lado para
outro. Numa de suas evoluções pude notar que a parte de cima de suas asas era
azul turquesa escuro, e tinha uma ilustração semelhante à de certas pinturas
abstratas. Após várias voltas, revoltas e reviravoltas, ela posou sobre minha
cabeça, mas de forma tão suave, que praticamente não lhe senti o toque, como se
ela fosse imaterial ou não tivesse peso.
Logo a seguir, ficou durante
alguns segundos pousada no copo térmico do Júnior, quando ele não se encontrava
presente. Perguntei se no local já aparecera algo semelhante, tendo a resposta
sido negativa. Ousei levantar a hipótese de que o espírito do poeta obtivera
permissão para nos aparecer na forma daquela esplêndida e brincalhona
borboleta, tendo todos concordado com isso, principalmente o Júnior.
Como último tributo ao poeta,
descemos a escadaria, longa e um tanto íngreme, em busca das frias águas do
Gameleira. Passadas mais de duas décadas sem rever esse local de banho, notei
que a paisagem estava um tanto mudada. Uma árvore que se debruçava sobre o
riacho, já lá não se encontrava. E uma minúscula coroa, que eu chamava de Ilha
da Utopia, como uma nova Atlântida, havia também desaparecido.
Contudo, para meu contentamento,
ainda havia muitas e grandes árvores frondosas e muitas palmeiras, sobretudo os
imponentes buritis, tanto na margem como na várzea defronte. De um lado havia
uma ribanceira alta, acentuada, daí a necessidade da escadaria a que me referi,
e do outro lado se descortinava a várzea, quase plana. Muitas vezes, nesse
local, vi o velho vate mergulhar e remexer nas pedras e na terra e trazer, em
suas mãos garimpeiras, belas conchas, que lhe despertavam genuíno prazer, em
simplesmente contemplá-las. Foi um banho refrescante, prazeroso, revigorante...
Algum tempo depois, finalizamos o
passeio e lazer, tomando um gostoso banho na bela piscina do sítio. Retornamos
a Teresina por outro percurso. Porém, antes de deixarmos a vivenda dos Lemos, o
Júnior parou o automóvel na frente da capela, onde dona Das Dores, sua mãe,
costuma fazer suas orações, e me pediu para elevar uma prece no interior da
ermida. Como demorei um pouco, me julguei no dever de dar a seguinte
explicação:
–
Já que tive de rezar, rezei direito.
ALGUNS POEMAS DE JAMERSON LEMOS
ARMADILHA
a música escorre pela noite
como estreito regato.
Igualmente minha mente
escorre pela noite.
isso ou aquilo, antes, depois,
uma rua tortuosa,
pequena cidade a ferver
distante.
quanto tempo fui tolo?
a música escorre pela noite,
pulsa como um coração.
DO MOVIMENTO À 'NOUTE'
O mistério da espuma do mar
é não haver mistério algum.
Fundo longilíneo
maravilhoso o mar não se sabe um
convite à morte ao amor à
vida. Há mistério, há?
A espuma do mar longe de ser algo
incógnito, transcendental, flora
estrelinhas nas algas, águas,
sargaços e areia, namora
da luz às conchas, à lua minguante
e permanente se renova.
Do mar o mistério da espuma
inexiste – bolhitas ou escumas –
existe o mistério à bruma
de noite à noute uma a uma
a onda virada serpente
engole a solidão da gente.
NAS RUAS
não mais voltarei aqui
seguirei as curvas do vento
tentar não tendo
assim eu me perdi
nada do que vi vi
nisso me acalento
foi bom todo momento
vivi
subida descida
noite amanhecida
espuma do Mar
tempo sem bruma
lua me luma
ar
SONETO DA TERÇA
quando você se entristece
uma coisa qualquer se me entrista.
um gole de rum a mais que eu insista
é coisa pouca e você não esquece.
quando, porém, se nada teça
vida minha e pobre de artista
você me toca e me diz: desista
meu bom amor, amo-te na terça.
muito bem, tento-te de novo
alma de pombo, espírito de corvo,
sobras-te-me na estação.
volvo-me a ti amor em praia,
soluço de sol, sal de caia –
da casa, só a luz e verão.
UM SONETO
vou fazer pra você um soneto
rimado, consoante o seu olhar
de avenca e musgo do pomar —
mestiço escuro noturno preto.
um soneto solto, lírico no ar,
pétala-ninfa, luz no alto-mar,
lâmpada azul a clarear do teto
à cama — lâmpada-luz-objeto.
Pra você e esses seus cabelos.
belos.
Pra você.
um soneto rimado de sorrisos,
pequenina barca — S.O.S.
Estou nu, Vê?
Nenhum comentário:
Postar um comentário