Elmar Carvalho
Em virtude de estar respondendo
pela Comarca de Arraial, durante as férias da titular, juíza Nazildes Santos
Lobo, fui ontem a essa cidade. Preferi ir por dentro da Chapada Grande e
retornar por Francisco Ayres e Amarante. Logo ao sair desta cidade de Regeneração,
começou uma chuva, que, ora mais forte, ora simples chuvisco, durou toda a
viagem. Em certos trechos, quando apenas serenava, aproveitei para tirar umas
fotografias, que ficaram um tanto prejudicadas por causa da baixa luminosidade.
As folhagens estavam bem verdes,
lustrosas, e os córregos já começavam a correr. Em certo ponto, pude escutar a
estridência alegre de uma cigarra cantadeira, em dueto com um passarinho, que
parecia louvar a chuva mansa que caía. Algumas “passagens molhadas” estavam
realmente molhadas, com os riachos a passar sobre o concreto da construção. Os
morros, colinas e chapadões verdejavam à distância. Redobrei o cuidado, temendo
a picape escorregar sobre as ladeiras úmidas. Felizmente, não houve nenhum
perigo e nenhuma derrapagem.
Essa viagem me fez lembar uma
anterior, feita três anos atrás, em que fiz o mesmo périplo. Fui em companhia
do soldado Pereira, hoje reformado, que na época estava à disposição da
Justiça. Quando assumi a Comarca de Regeneração, ele era chamado apenas de
Raimundinho; brincando, disse que ia promovê-lo a Pereira, seu apelido de
família, porque esse nome impunha mais respeito, mormente em se tratando de um
militar.
Após despachar os processos mais
urgentes da Justiça estadual, fui até a serventia eleitoral. Lá, ao saber que
eu iria voltar por Francisco Ayres e Amarante, o chefe do cartório, por duas ou
três vezes, me recomendou que não passasse por cima de uma ponte de madeira,
que estava danificada; que eu seguisse por um atalho que havia, e passasse pelo
vau do rio. Fiquei um tanto preocupado, pois o “inverno” estava rigoroso na
época. Em seguida, fui com o Pereira almoçar num dos restaurantes de Arraial.
Comemos um peixe delicioso. Pedi
a conta à dona do estabelecimento. Ela deu o preço. Quando eu ia puxar a
carteira de cédulas, ela refez o cálculo, dizendo que havia esquecido de
incluir uma Coca-Cola; quando, novamente, eu me preparava para sacar o dinheiro,
ela voltou a alterar a conta, alegando que não incluíra uma cerveja; na
terceira vez, não vacilei, e lhe coloquei o dinheiro na mão, antes que ela
alterasse o preço, como sempre para um valor mais elevado.
Quando ela processava os dados
mentalmente, levantava os olhos para cima, revirava-os, como se em busca de
inspiração. Mas foi um preço justo, porquanto a comida estava realmente
saborosa. No restaurante, voltei a encontrar o chefe do Cartório Eleitoral, que
nele fazia as refeições. Novamente, ele me advertiu que, em hipótese nenhuma,
passasse sobre a ponte.
Imediatamente, seguimos em
direção a Francisco Ayres. Imprimi uma velocidade razoável, mas tendo em vista
que a estrada era cheia de curvas e ladeiras, e recoberto o seu leito com a traiçoeira piçarra,
propícia a derrapagens. Quando menos esperei, vi a famigerada ponte à minha
frente. Não tive dúvida, pisei no freio. A picape quase fazia um “cavalo de
pau”. Manobrei em direção ao atalho. Para minha decepção, a correnteza do rio
estava violenta, e não havia a menor condição de atravessá-la. Quando eu já me preparava
para retornar, e fazer o percurso pela Chapada Grande, o que me causaria um
considerável prejuízo de tempo e combustível, enxerguei um rapaz numa
motocicleta, que vinha em sentido contrário.
Esperei que ele chegasse até nós.
Com firmeza, ele me garantiu que eu poderia passar por cima da ponte, pois na
manhã daquele dia um caminhão do tipo ¾ passara sobre ela. Agradeci ao
motociclista, e me preparei para enfrentar o desafio. As vigas trepidaram,
estalaram, gemeram e rangeram como a moenda do poema de Da Costa e Silva,
balançaram, mas não caíram. Exultante, ultrapassei aquela geringonça
desengonçada e capenga, em que a ponte, verdadeira arapuca, havia se
convertido.
Quando atravessei a cidade de
Francisco Ayres, novo desafio me esperava. O rio Canindé, naquela forte estação
chuvosa de três anos atrás, estava cheio, com as águas correndo fortemente
sobre o paredão da barragem, como se este fosse o sangradouro. Era por ali que
eu deveria passar. Não vou mentir, fiquei com medo. Perto da barragem existia o
esqueleto de uma ponte inacabada. Do local se viam as vigas e pilastras de
concreto do que deveria ser uma ponte. Lamentei tanto descaso, tanto
desperdício de dinheiro público, já que aquele monstrengo de cimento para nada
servia.
Ante o inelutável, perguntei a um
pescador se dava para passar sobre o paredão da barragem. Respondeu-me que sim.
Indaguei-lhe, em tom de brincadeira, se ele garantia; retrucou-me que não, mas
que há poucos minutos um automóvel passara sobre a barragem. Aduziu que eu
deveria me nortear pelo “caculo” da água, na borda esquerda do paredão.
Manobrei o carro em direção à barragem, sem enxergar o piso por onde passaria,
e sem ter noção da profundidade da lâmina d' água que o recobria. Quando estava
no meio do percurso, olhei, de esguelha, o bravo Pereira, com a água a
turbilhonar na borda esquerda da barragem e a despencar no abismo do lado
oposto.
Sua pele da cor do ébano tomara
uma cor que se aproximava da tonalidade das garças. É claro que estou brincando. Afinal, o
soldado Pereira faz jus ao nome que ostenta. Como dizia o senhor Augusto
Pereira, pereira é pau amargoso, é madeira de lei, é cacete de dar em doido.
Que os doidos e os politicamente corretos, mais reais do que os reis, não me
leiam.
Graças a Deus, escapei são e
salvo desse verdadeiro rali improvisado pelas ladeiras, montes, chapadões,
abismos, veredas e pinguelas dessa Chapada Grande de tanta beleza e
encantamento.
14 de dezembro de 2010
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