terça-feira, 28 de agosto de 2012

A tristeza do meu pai


Poeta Da Costa e Silva
Jornalista e escritor Cunha e Silva


Cunha e Silva Filho


Fala-se que o brasileiro é um povo alegre, brincalhão, solidário e possuidor de outras qualidades que o tornam acolhedor aos olhos dos estrangeiros. Talvez, seja isso uma verdade se considerada no seu sentido absoluto, geral, coletivo. Entretanto, no plano pessoal, íntimo, acredito que existam muitíssimas exceções. Conheço pelo menos duas, a do poeta piauiense Da Costa e Silva (1885-1950), cuja tristeza é comparada à tristeza do próprio rio Parnaíba, tristeza que, aliás, se associa ao sentimento da saudade, se revela muito forte na sua poesia: “Eu sou tal qual o Parnaíba: existe/Dentro em meu ser uma tristeza inata,/Igual, talvez, à que no rio assiste/Ao refletir as árvores, na mata...” (Pandora, seção “Sob outros céus”, soneto IV, p. 242, in: SILVA, Da Costa e. Poesias completas. 2. ed., revista e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Editora Cátedra/ INL/MEC/MEC, 1976).

Segundo Ronald de Carvalho (1893-1935), poeta, ensaísta primoroso e historiador literário,  falecido precocemente em acidente de automóvel, “A alma brasileira nasceu de três melancolias”: da saudade portuguesa, da “inquietação do terror do índio e da “queixa imensa da sua humilhação..” (CARVALHO, Ronald. Estudos brasileiros (Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A/INL?MEC., p. 75, 1976).

Ora, se a saudade e se manifesta como uma feição da melancolia, a saudade será um traço romântico muito denso, muito próprio a esse estado de desejo ardente de alguma coisa, de se voltar o sentimento para a perda, a ausência, a falta, a carência. Típico do sentimento romântico a tristeza inunda a alma do poeta do século 19, sobretudo , mas invade também os séculos posteriores ou anteriores ao grande movimento que tem seu foco central e seu argumento máximo no dedilhar de estados d’alma, como o spleen, o “mal do século,” e principalmente, como costumava afirmar, com voz e gestos carismáticos, que encantavam seus alunos, o meu professor de literatura luso-brasileira no Liceu Piauiense, o A.Tito Filho (1924-1992) a “exaltação da subjetividade.”

A segunda exceção desse sentimento de tristeza eu me foi manifestado por meu pai, Cunha e Silva (1905-1990) mais de uma vez, nos momentos em que, ele e eu conversávamos sobre o mundo dos sentimentos no ser humano. Lá me vem ele com esta confissão: “Sinto meu filho, às vezes o aguilhão de uma tristeza enorme que me toma o corpo e o espírito a um só tempo”. O pior é que não sei explicá-lo com palavras, localizá-lo em alguma ponto da vida, saber o motivo de sua origem, conseguir uma resposta que me satisfaça a fim de amenizá-la um pouco”.

Não lhe dava eu nenhuma resposta a essas indagações. Deixava que ele desabafasse. Entretanto, é possível arriscar algumas hipóteses tanto para o caso de Da Costa e Silva quanto para o de meu pai. Num e noutro vejo uma das explicações por um lado basicamente de viés autobiográfico.

Por mais que eu queira resistir a não aceitá-la como premissa, na poesia dacostiana, a saudade tem não só um fundo romântico, já referido no meu ensaio Da Costa e Silva: uma leitura da saudade.(Teresina: Academia Piauiense de Letras/Universidade Federal do Piauí, 1996) - contingente derivado tanto da assimilação de sua expressão lírica, quanto dos elementos individualistas que poderiam conduzir a um extravasamento inócuo do seu estro. O poeta da saudade soube conter-se artisticamente pelo distanciamento equilibrado da sua arquitetura formal, i.e., dos seus meios retóricos e estratégias de construção estilística a fim de não cair no vezo superado de poesia “dor de cotovelo” tão execrada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade(1912-1987) e outros poetas ditos líricos mas não contaminados do puro pieguismo comum aos poetas de menor estatura estética, recordando-se, para tanto, que Da Costa e Silva poetava numa frase de transição da poesia brasileira que se aproveitou do romantismo, parnasianismo e simbolismo, sem mesmo descartar direções mais progressistas  para  formas mais livres de fatura poética, segundo demonstrei no meu ensaio, talvez pouco conhecido dos meu leitores, “Da Costa e Silva: do cânone ao Modernismo,” in Geografias literárias – confrontos : o local e o nacional.(org. Francisco Venceslau dos Santos, com a colaboração de Raimunda Celestina Mendes da Silva). Rio de Janeiro: Editora Caetés, p.103-122, 2003.

Outra hipótese surpreenderia no fato de que geralmente poetas e escritores que deixam a sua terra natal e conhecem outras regiões ou mesmo países, voltando ou não às origens locais, não deixam de experimentar o sentimento provocado pela distância, entendida esta como espaço físico, sobretudo representado pela Natureza que lhes era cara ao temperamento artístico, às condições mesológicas do seu rincão natal, aos laços afetivos muito sólidos, ao meio cultural, à perda do convívio materno, relações familiares, ou de amizades perdidas no tempo. Isso se deu com Da Costa e Silva,  Junqueira Freire (1832-1855), Gonçalves Dias(1823-1864), Casimiro de Abreu (1839-1860).

O primeira, por razões de atividades profissionais, residiu em várias cidades brasileiras e terminou fixando-se no Rio de Janeiro; os três últimos também tiveram o seu tempo de “exílio” em longes terras por motivos diversos e, finalmente, meu pai, que também teve seu momento de poeta, adolescente deixou Amarante e foi estudar no Rio de Janeiro destinado pela família a ser padre, o que não aconteceu. Mas, ele da mesma forma sentiu a dor do afastamento familiar, do desenraizamento como os demais citados.

Esse afastamento lhe foi doloroso mas lhe trouxe também alegrias. Ficou dividido entre o amor que sentia pelo Rio de Janeiro e o amor da terra natal, Amarante. Terminou estabelecendo-se em Teresina, para onde foi dar continuidade à sua vida de professor e jornalista.. Em todos esses exemplos, em síntese houve as consequências do deslocamento, no tempo e no espaço. Em todos eles, seguramente o componente saudosista se lhes fincou profundamente na alma. Aqui entra a Arte, expressa em modalidades diversas, sobretudo na poesia. No exemplo de meu pai, começou a escrever poemas, na maioria sonetos, a partir dos sessenta anos, atitude artística que, segundo ele, se deveu “as amarguras da vida”.

É certo que em todas estas personalidades literárias há um traço comum que os une : o sentimento da tristeza, daquela melancolia inerente à alma humana que, por um motivo ou outro, foi despojada de um bem subjetivo tão necessário à inteireza e ao equilíbrio do comportamento do indivíduo.

Vou me demorar mais no meu pai e procurar levantar outras razões para explicar a sua tristeza profunda quando no isolamento talvez do seu lar., ou , quem sabe, até em meio às alegrias efêmeras do contato social.

O espírito humano nunca se nos aparece na sua completude moral, social, afetiva, religiosa ou de outra ordem natural ou metafísica. No entanto, é possível desentranhar dele alguns pontos de subjetividade oculta, os quais, estariam, a meu ver, situados na sua formação cultural, na sua atividade profissional, nos diversos acontecimentos históricos que se foram somando paulatinamente no decorrer de sua existência. Por outro lado, há um ponto crucial que muito pode afirmar sobre a origem de sua tristeza: é no plano dos valores estéticos e de sua visão filosófica, do seu pensamento sobre a vida social, os homens, a política, a aceitação na sociedade, o descontentamento com o comportamento do ser social. Estes fatores apontam para uma direção, que para mim se inscreve no descontentamento entre o idealismo da subjetividade em luta contra a injustiça social, ou melhor ainda, contra a hipocrisia que caracteriza a vida em sociedade. Quando meu pai declara em tom de amargura que “não troca a sua dignidade humilde pelos brasões de enfatuados da nossa sociedade”, aí está assumindo uma postura a geradora da insatisfação, do sentimento de rebeldia contra outras individualidades que lhe foram prejudiciais e indignas do seu valor e do merecimento.

Na realidade, há uma somatório de fatores determinantes da eclosão tão dolorosa à alma de uma personalidade forte como foi a dele. A tristeza não é dialética, te mais a ver com a interioridade ferida e malferida pelo outro, que não soube compreendê-la ou por ela sentia indiferença, ou inveja, ou ressentimento, ou qualquer espécie de sentimento subalterno. A Arte, seja em nível elevado ou em menor escala de valores, é um ersatz à tristeza, não uma solução, não uma compensação, não uma maneira de recuperar o equilíbrio da alma alegre, pura, e inocente tão própria às fases da nossa infância , da juventude e da mocidade.

Outras hipóteses poderia ainda levantar para o deslinde desse sentimento que, de quando em quando, assaltava a alma , o coração e o corpo de meu pai, Cunha e Silva. Quem sabe, algum dia possa retomar este tema com mais amplitude e complexidade.

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