José Maria Vasconcelos
Anualmente,
passadinha nos festejos de São Raimundo. O evento me traz
recordações da infância. Finalzinho da década 1950. Eu não
perdia uma noite de animação: barracas de palha, guloseimas ou
servindo de coroinha ao vigário Frei Eliézer, além de botar disco
de cera de 72 rotações na radiola do alto falante. Não existia o
templo atual. À direita, só tosca capelinha coberta de telha, onde
mal cabiam umas cem pessoas.
Teresina
de 150 mil habitantes corria para os festejos de São Raimundo.
Piçarra, muita piçarra, lama, poeira. Cabarés famosos de belas
mulheres, deleites de marmanjos ricos. A única ponte(de madeira,
onde hoje se ergue a Ponte Wall Ferraz) sobre o Rio Poti, foi
arrastada por enchente, obrigando a construção de outra, a
Juscelino Kubitschek, no final da Avenida Frei Serafim. Avenida
Miguel Rosa, estreita, esburacada, poeirenta, terminava na Piçarra,
na entrada da Avenida S. Raimundo.
Para
os padrões urbanísticos atuais, a Piçarra não passava de favela.
Pior, o mínimo de energia elétrica, nenhum calçamento,
abastecimento de água através de chafariz público ou cacimbões.
Água encanada só no centro da cidade, sem tratamento e amarelada.
Tifo e verminoses matavam crianças e adultos, no Brasil, em
assustadoras proporções da miserável Bangladesh.
Na
capelinha, eu me sentava no pedestal do altar, durante a missa, ouvia
o capuchinho Frei Eliézer, longas barbas aloiradas, olhos verdes,
anunciar o projeto de construção do novo templo e um prédio para
serviços sociais. Amigo de meus pais, Martinho e Dedé, Frei Eliézer
frequentava minha casa, levava-me na garupa de sua moto,
incentivando-me ao culto religioso, o que me despertou, mais tarde,
vocação pro seminário.
Temperatura
agradável à noite, devido à farta floresta na baixada do Poti e
arredores, eu regressava para casa, na Rua Odilon Araújo, tilintando
de frio. Meus pais nos educavam(seis filhos) com modestos ganhos da
bodega, mais tarde Farmácia São José. Gozavam de enorme
popularidade, pelas milagrosas receitas e generosidade com os pobres
da paróquia.
Frei
Eliézer juntava multidão de fieis em procissão, nas tardes de
domingo, descíamos a Rua Sta. Luzia, a pé, até o rio Poti e
regressávamos com sacos de areia nas costas para a construção do
templo. O frade enchia o capuz da batina com o produto. Durante a
semana, metia-se entre pedreiros, amassava barro, subia andaimes,
pegava duro na colher, descia estafado, batina imunda, molhada de
suor. À noite, exibia filmes com entrada paga, para custear a obra.
Nas cenas de beijos na boca, ele tapava o zoom ótico. Eu e a
garotada assoviávamos protestando.
Frei
Eliézer recebeu ordens superiores para missão definitiva no Pará.
A notícia debilitou-o, acamou-se durante dias. Visitei-o no Convento
de São Benedito, chorei. Foi-se meu amigo, deixando a construção
do templo no ponto de cobertura. Frei Heliodoro, superior do convento
de São Benedito, continuou a tarefa. O templo foi inaugurado, início
dos anos 60. A placa comemorativa de metal, chumbada na parede de
entrada da igreja, dizia que a construção se devia aos esforços de
Frei Heliodoro, engabelando Frei Eliézer, que nem convite recebera
para o foguetório. Nem pude assistir à cerimônia, já internado,
aos doze anos, no seminário. Li a placa, casualmente, em 1995, e me
aporrinhei com a tapeação.
Em
1967, a paróquia de São Raimundo Nonato passou para a administração
de outra ordem religiosa, os franciscanos, que continuam até hoje.
Sabe o que fizeram? Outra engabelação à história da paróquia e
do verdadeiro fundador: retiraram o lacre da inauguração do templo,
crime de engabelação à história da Piça. Quer mais? Os atuais
franciscanos celebraram, neste ano de 2012, "45 anos da fundação
do templo de São Raimundo Nonato", outra engabelação, mais
pesada que sacos de areia extraídos do Poti. Enganem São Raimundo
Nonato e a História. Menos a mim.
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