Belinha |
Anita e Belinha |
Belinha, em dança solo |
Belinha, observando o trabalho de Anita |
4 de julho Diário Incontínuo
MEMORIAL DA CACHORRA BELINHA
Elmar Carvalho
Aproximadamente
nove anos atrás, uma vizinha perguntou a Fátima se ela não
gostaria de ficar com a sua cadelinha, uma vez que não tinha
condições de levá-la a clínica veterinária, para consulta e
tratamento. Já criávamos a Anita, há alguns anos, desde recém
nascida. Essa vizinha não maltratava a cadelinha, mas não cuidava
bem dela; não lhe comprava ração adequada, não a levava para
banho e tosa, e muito menos, periodicamente, a médico veterinário.
Minha
mulher aceitou a oferta, mais por pena do animal, do que por desejo,
já que a Anita nos era suficiente e nos alegrava com a sua presença
e eventuais travessuras caninas. Seu nome era Belinha. A Anita não
foi acolhedora, e se revelou muito ciumenta, ciosa de seu território
doméstico, e se mostrou um tanto egoísta, se é que os cães têm
esse sentimento tipicamente humano. Embora menor, escorraçava a nova
inquilina com os seus latidos e rosnados. Chegava mesmo a inticar com
a Belinha, mal esta se aproximava.
Contudo,
a nova cadela parecia possuir inteligência emocional, e cultivava a
política da boa-vizinhança. Não discutia, ou seja, não rosnava e
não latia; se afastava, e procurava ocultar-se debaixo de algum
móvel, ou em algum recôndito recanto. Entretanto, num dia em que a
Anita abusou dos seus direitos e privilégios de prima donna, e quis
mordê-la sem nenhum motivo aparente, a Belinha revidou e a mordeu
com muita bravura, demonstrando que tinha coragem e não a temia, mas
que apenas não queria confusão, ainda mais na qualidade de novata.
Continuou,
com os seus modos tímidos e discretos, a aceitar a liderança e as
pirraças da Anita, mas com o episódio acima narrado foi como se lhe
tivesse dito: “Olhe, não tenho medo de você. Apenas a respeito, e
quero ter o direito de viver em paz, sem brigas e sem discussões”.
Com o passar do tempo, as duas passaram a ter uma convivência, não
digo afetuosa, mas ao menos pacífica. Com a sua sabedoria de vida,
com a sua diplomacia instintiva, sabedora de que a Anita tinha a
preferência dos donos da casa, a Belinha lhe cedia passagem e
espaço, e mantinha sempre respeitosa distância, cedendo-lhe sempre
a primazia, mormente nos dias de “banquete”, que era quando, uma
vez por semana, a ração era misturada com carne, que as duas
adoravam.
Sempre
tive a impressão de que a Belinha parecia possuir os bons
sentimentos humanos, quase como se fosse um pouco humana. Um dia, a
Anita teve uma hérnia estourada. Parte de uma víscera ficou
exposta, o que a fez ganir por causa das dores, que deveriam ser
dilacerantes. A Belinha alarmou nossa casa, a subir e a descer a
escada várias vezes, com fortes latidos, chamando a atenção da
Fátima para o problema de sua semelhante e rival, em admirável
solidariedade, esquecida de tudo o que a outra lhe fizera, por mero
ciúme.
Quando
Belinha veio viver conosco, em pleno vigor físico, procurou nos
cativar, quase como se fosse uma artista circense. Usando apenas as
patas traseiras, fazia rodopios, movendo-se para os lados e para
trás, com as patinhas dianteiras estendidas para nós. Parecia uma
bailarina, a executar caprichosa dança. Até parecia capaz de
executar um paso doble; creio que só não o fazia porque era modesta
e não desejava despertar a ira da rival e voluntariosa prima donna.
Era a sua maneira de nos conquistar, de atrair a nossa atenção e
afeto. Sem dúvida, isso parecia provocar certo ciúme na Anita, que
não sabia fazer esses requintados malabarismos.
Para
que Anita não fique mal na “fita” desta crônica, devo dizer que
ela não admitia que alguém ralhasse com a Belinha; latia
vigorosamente contra quem quem quer que falasse alto com ela.
Acrescento que quando Belinha foi acometida da doença de que veio a
falecer, ela ficou muito triste, e não mais cometeu qualquer
insolência contra ela. Ainda hoje continua triste, como se estivesse
saudosa da companheira, que não mais verá. Parece ter em sua alma
animal a intuição de que Belinha não mais existe nesta dimensão
de que fazemos parte.
Logo
no início, percebemos que Belinha demonstrava inexplicável medo de
voz de homem, e procurava esconder-se debaixo dos móveis da casa, ou
ficava retraída nos cantos mais esconsos. Tivemos, pouco depois, a
explicação: antes de ela passar ao poder de nossa vizinha, fora
criada em outra casa, em que o dono a tratava com brutalidade.
Certamente, fora maltratada pelos seus primeiros donos, e guardou, ao
que parece, traumas disso pelo resto de sua vida.
Todavia,
aos poucos, perdeu o medo de minha voz e da voz de meu filho,
porquanto nunca foi “castigada” por ninguém de nossa casa.
Conservou, contudo, a sua humildade e timidez pelo resto de sua vida.
Parecia ter acanhamento de sua simples presença, quase como se
estivesse a pedir desculpas pelo fato de apenas existir. Chegava
discretamente, como se estivesse tomando chegada, com receio de
incomodar. Deixava sempre que a Anita escolhesse primeiro o lugar em
que desejava ficar, para só então acomodar-se em posto de espera ou
repouso, conforme o caso.
Tinha,
porém, o defeito de ser “espiã”, se é que podemos aplicar esse
conceito aos animais. No momento em que íamos fazer as refeições
ou merendar, vinha plantar-se perto de nós, embora procurando não
incomodar e sem fazer exigências, com latidos ou rosnados. Apenas
esperava as migalhas caírem, ou que eu deixava cair, como se não
fosse de propósito. Comia de tudo, inclusive frutas e bombons. Minha
mulher reclamava, para que eu não atirasse pedaços de comida, a fim
de que ela não ficasse mal-educada ou mal-acostumada. Se eu tivesse
previsto que ela já estava perto do termo de seus dias, talvez
tivesse simulado deixar escapar mais vezes essas migalhas de que a
cadelinha tanto gostava.
De
poucos meses a esta parte, notamos que Belinha vinha perdendo de
forma acentuada a sua força vital. Envelhecia de maneira muita
rápida. Perdia suas habilidades e capacidade motora. Também
começava a perder a visão. Já não subia a escada da casa com a
rapidez e a habilidade de antes. Subia cada degrau lentamente, em
passos curtos, como se estivesse fazendo um grande esforço; muitas
vezes precisava descansar por alguns momentos, quando antes executava
essa subida em vertiginosa velocidade e sem o menor indício de
cansaço. O médico veterinário, diante do resultado dos exames,
disse que, além de outras doenças, ela estava acometida de
reumatismo e artrose. Contudo, mesmo ante as atrozes dores que
deveria sentir, não gemia e nem se inquietava; deitava-se no
cantinho que escolhia, tudo suportando com absoluta resignação,
talvez também no intuito de não incomodar ninguém.
Quando
notamos que a sua situação começava a se tornar grave, pois ela,
em certos momentos, sequer conseguia andar, a internamos em uma
clínica. No domingo pela manhã fomos visitá-la. Como ela quase não
demonstrasse alegria com a nossa chegada, eu disse para a Fátima que
o seu estado de saúde deveria ser muito grave, pois quando íamos
buscá-la, nas vezes em que a levávamos para tomar banho ou fazer
tosagem, ela ficava muito feliz e animada com a nossa presença,
porquanto era um sinal de que não fora abandonada e de que voltaria
a seu território e lar.
Nessa
visita constatei um fato digno de registro, e que muito me emocionou.
Uma senhora, de aspecto humilde, tanto pelo porte físico como pelo
vestuário, e que não ostentava o menor aspecto de matrona, visitava
um vira-lata, que não mais conseguia caminhar. Ela o encontrara na
rua, abandonado, desvalido, sem a menor capacidade de locomoção;
com a ajuda do marido, o colocou em seu carro, e o levou para fazer
tratamento nessa clínica, à sua custa. Além de visitar o cão
doente, ainda colocava comida em sua boca, na tentativa de salvá-lo
de uma morte que parecia iminente. Infelizmente, não lhe indaguei o
nome; apenas guardei em meu coração o seu gesto solidário,
humanitário, de profunda generosidade.
Uma
hora após chegarmos a nossa casa, o telefone tocou. Foi-nos dada a
notícia de que Belinha acabara de morrer. Imediatamente, tomei a
decisão de cumprir uma promessa que eu já anunciara; iria enterrar
nossa cadelinha perto de um memorial, à margem da BR 343, um
quilômetro após a ferrovia que passa na periferia da cidade de
Altos. Esse pequeno monumento, com a sua branca cruz estilizada de
ferro, foi erguido por meu irmão César Carvalho (Neném) em memória
de nosso cunhado e amigo José Henrique Andrade Paz, que ali sofrera
um acidente, do qual veio a falecer. Ao passar pelo local, recordarei
o meu amigo e recordarei a minha cachorrinha, e terei o sentimento de
que ambos estarão em boa companhia, onde quer que estejam, talvez
numa das dimensões de que nos fala a mecânica quântica.
Pessoalmente,
por volta das 17 horas, cavei a sua pequena cova, com a ajuda do
casal César Pinho e Simone, sobrinha da Fátima, e nela depositei o
seu corpo, com todo respeito e cuidado, como se fosse um tesouro, ao
pé da cruz do memorial do Zé Henrique. E isto me faz lembrar os
imortais versos de Guerra Junqueiro, que, com pequena adaptação,
que deixo a cargo do leitor, vêm a calhar: “Toc, toc, toc, como se
espaneja, / Lindo o jumentinho pela estrada chã! / Tão ingênuo e
humilde, dá-me, salvo seja, / Dá-me até vontade de o levar à
igreja, / Batizar-lhe a alma pra a fazer cristã!” Sem dúvida, com
a sua humildade, com a sua generosidade e a sua capacidade de
resignação diante do sofrimento, tinha virtudes que devem ornar o
espírito de um verdadeiro cristão.
Hoje,
quando vou fazer as minhas refeições, tenho a sensação de que
vejo o vulto discreto e sutil de Belinha aproximar-se de mim, agora
ainda mais sutil e modesto, e quase lamento não lhe ter “deixado
cair” mais generosas migalhas de guloseimas e quitutes, mesmo sob a
reprovação bem-intencionada de minha mulher. Para sempre sentirei
saudade dessa tímida, discreta e meiga cadelinha, que sobretudo me
deixou o exemplo de resignação diante do sofrimento e das
limitações que suportou com bravura, sem queixas e sem gemidos, sem
rosnados e sem grunhidos.
Eu tenho um cachorrinho pincher de aproximadamente uns 14 anos, já não tem a mesma mobilidade, muito companheiro, ciumento, arisco, mas o bichinho não tá bem de saúde, só estou imaginando quando ele partir, agora mesmo tá aqui me dando um beijo na perna. Um casamento pode se desfazer em pouco tempo, já a relação entre um humano e seu bicho de estimação, quase sempre, cumpre o "até que a morte os separe"
ResponderExcluir"Podemos julgar o coração de um homem pela forma como ele trata os animais" (Immanuel Kant)
hl/sp
Lindo texto. Muitas saudades de Belinha. Com certeza ela era menos chata que Anitinha.
ResponderExcluirPai, essa primeira foto não é a Belinha, é a Anita...emocionante o texto!
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