Jacob
Fortes
Dentre
as reminiscências da infância adesivadas ao meu cangote, subsiste
aquela relativa ao chambre.
Mal
o sol desfalecia as galinhas, com o desassossego de quem pede
repouso, alçavam-se ao poleiro. Sequentemente, a meninada, de corpos
fatigados por um longo dia de excitação de ânimo, também se
empoleirava nas suas redes. Antes de entregar-se à rede, era preciso
vestir o chambre, providencia inescusável na forma do
disciplinamento severo de dona Luiza (Lulu). Esses chambres, mais das
vezes encardidos, permaneciam encafuados nas respectivas maqueiras,
suspensas, até que os seus ocupantes chegassem. Ocupantes que
preferiam permanecer entre os adultos, tentavam resistir ao sono, mas
este, indômito, tomava-os de assalto, maiormente os miúdos. Era a
rotina do dia após dia.
Ainda
que nem todos apreciem a unanimidade, parece inequívoco dizer-se que
há três conjuntos de seres unânimes no concernente ao horário de
dormir: galinhas, meninos e idosos. A propósito, lembro que, naquele
tempo, num lugar recôndito chamado “Serra do Veludo”, habitava
um casal de idosos, seu João Pele e dona Zezé Pote, adotivos de uma
menina de nome Cincinata, que atendia pelo apelido de bombom, tamanho
sua devoção por balinhas, desde o seio. Diariamente, no turvar do
vespertino, seu João, vista estiolada, perguntava: “Bombom, espie
se as galinhas estão subindo”.
Finda
aquela noite — feita tanto para o sono quanto para arrebatar a paz
e o sossego —, recomeçava a inquietação da meninada ao estilo de
folha seca ao vento. O primeiro alvoroço, em júbilo, irrompia lá
fora, na fronde do arvoredo, sob a batuta dos chicos-pretos.
Preferiam as partes altas, os paus-d’arco, porém, existiam
figueiras ramalhudas, jurema-branca, um cardeiro vetusto, imponente,
além de outros vegetais infantes.
Se,
de um lado, a meninada travessa vivia sob o desfavor do banco do
atraso, de outro, era agraciada com uma universidade de favores:
brincadeiras intérminas; despensa assinalada por abastos copiosos:
sacas de arroz, de feijão, de milho, varal de carne seca, gamelas
repletas de toucinho, tina de barro abarrotada de coalhada e
aprovisionamentos outros, típicos de quem, respirando a cultura do
couro, vive imerso na lida do gado, ovelha e bode.
Os
chambres, que ultrapassavam os joelhos, indo até o meio da canela,
eram confeccionados de maneira rudimentar: em morim branco, para os
meninos; em chita ramada, para as meninas. Nem diga ao leitor, por
ser motivo de constrangimento, o quanto os chambres, sobretudo dos
miúdos, exalavam um cheiro forte, fazendo lembrar aquele líquido
próprio de quem, sob a letargia do sono profundo, perde a capacidade
de exercer o controle das necessidades expulsórias do corpo.
Mas
as mutações, imposição do progresso tecnológico e social,
abreviaram a existência dos chambres: vigeram apenas enquanto durou
o calendário da infância.
Insepultos
na memória, os chambres exprimem a mostra das usanças de outros
tempos, hoje ignoradas. Na necrópole da desusança vê-se o jazigo
do chambre, do carro de boio, do cavalo, das ferramentas rudimentares
e tantos outros. Vê-se, também, logo adiante, uma campa cujo
epitáfio, indistinto, não permite afirmação categórica, mas faz
crer tratar-se da virtude. Aquela aludida por Rui em tom pesaroso:
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver
agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser
honesto”.
Água
e sabão limpam as vestes apossadas de sujeira, inclusive o chambre,
mas não a sujidade e a má fama dos desapossados de honra.
Excelente post!
ResponderExcluirSensacional!
ResponderExcluirExcelente post!
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