sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A INFÂNCIA E O CHAMBRE


Jacob Fortes

Dentre as reminiscências da infância adesivadas ao meu cangote, subsiste aquela relativa ao chambre.

Mal o sol desfalecia as galinhas, com o desassossego de quem pede repouso, alçavam-se ao poleiro. Sequentemente, a meninada, de corpos fatigados por um longo dia de excitação de ânimo, também se empoleirava nas suas redes. Antes de entregar-se à rede, era preciso vestir o chambre, providencia inescusável na forma do disciplinamento severo de dona Luiza (Lulu). Esses chambres, mais das vezes encardidos, permaneciam encafuados nas respectivas maqueiras, suspensas, até que os seus ocupantes chegassem. Ocupantes que preferiam permanecer entre os adultos, tentavam resistir ao sono, mas este, indômito, tomava-os de assalto, maiormente os miúdos. Era a rotina do dia após dia.

Ainda que nem todos apreciem a unanimidade, parece inequívoco dizer-se que há três conjuntos de seres unânimes no concernente ao horário de dormir: galinhas, meninos e idosos. A propósito, lembro que, naquele tempo, num lugar recôndito chamado “Serra do Veludo”, habitava um casal de idosos, seu João Pele e dona Zezé Pote, adotivos de uma menina de nome Cincinata, que atendia pelo apelido de bombom, tamanho sua devoção por balinhas, desde o seio. Diariamente, no turvar do vespertino, seu João, vista estiolada, perguntava: “Bombom, espie se as galinhas estão subindo”.

Finda aquela noite — feita tanto para o sono quanto para arrebatar a paz e o sossego —, recomeçava a inquietação da meninada ao estilo de folha seca ao vento. O primeiro alvoroço, em júbilo, irrompia lá fora, na fronde do arvoredo, sob a batuta dos chicos-pretos. Preferiam as partes altas, os paus-d’arco, porém, existiam figueiras ramalhudas, jurema-branca, um cardeiro vetusto, imponente, além de outros vegetais infantes.

Se, de um lado, a meninada travessa vivia sob o desfavor do banco do atraso, de outro, era agraciada com uma universidade de favores: brincadeiras intérminas; despensa assinalada por abastos copiosos: sacas de arroz, de feijão, de milho, varal de carne seca, gamelas repletas de toucinho, tina de barro abarrotada de coalhada e aprovisionamentos outros, típicos de quem, respirando a cultura do couro, vive imerso na lida do gado, ovelha e bode.

Os chambres, que ultrapassavam os joelhos, indo até o meio da canela, eram confeccionados de maneira rudimentar: em morim branco, para os meninos; em chita ramada, para as meninas. Nem diga ao leitor, por ser motivo de constrangimento, o quanto os chambres, sobretudo dos miúdos, exalavam um cheiro forte, fazendo lembrar aquele líquido próprio de quem, sob a letargia do sono profundo, perde a capacidade de exercer o controle das necessidades expulsórias do corpo.

Mas as mutações, imposição do progresso tecnológico e social, abreviaram a existência dos chambres: vigeram apenas enquanto durou o calendário da infância.

Insepultos na memória, os chambres exprimem a mostra das usanças de outros tempos, hoje ignoradas. Na necrópole da desusança vê-se o jazigo do chambre, do carro de boio, do cavalo, das ferramentas rudimentares e tantos outros. Vê-se, também, logo adiante, uma campa cujo epitáfio, indistinto, não permite afirmação categórica, mas faz crer tratar-se da virtude. Aquela aludida por Rui em tom pesaroso: “De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Água e sabão limpam as vestes apossadas de sujeira, inclusive o chambre, mas não a sujidade e a má fama dos desapossados de honra.      

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