Foto antiga de Barras, terra natal de David Caldas |
DAVID CALDAS - O Profeta de República
Chico Acoram Araújo (*)
Recentemente, escrevi uma crônica com título Barras do
Marataoan: o Retorno que generosamente foi publicada, para minha enorme
satisfação, no blog “Folhas Avulsas” do ilustre escritor José Pedro Araújo
Filho, e também postada no prestigiado Blog Poeta Elmar Carvalho. Nesse
escrito, descrevo uma viagem que realizei ao meu torrão natal, que tem como
destaque principal o elenco dos ilustres barrenses que fizeram com que Barras
fosse conhecida pelo epíteto de “Terras dos Governadores e dos Poetas”. Nessa
crônica, além de relacionar os principais vultos da minha terra querida,
apresentei um resumo da história da cidade, além de relembrar alguns fatos
ocorridos quando da minha infância em Barras.
Dentre as biografias sobre os notáveis barrenses mencionados
na referida crônica, a de David Caldas - o “Profeta da República” - foi a que
mais despertou a minha atenção. Talvez por curiosidade ao seu cognome. Embora
sendo eu de Barras, quase nada sabia a respeito desse famoso conterrâneo;
apenas conhecia uma rua no centro de Teresina e outra na cidade de Barras com o
seu nome, além de um povoado localizado no município União, que teve como
origem um antigo Núcleo Colonial Agrícola, criado Governo Federal. O destaque
que ora faço desse grande barrense, não significa dizer que seja ele mais
importante do que seus conterrâneos intelectuais Celso Pinheiro, João Pinheiro,
Matias Olímpio de Melo, Arimathéa Tito Filho, Wilson Carvalho Gonçalves e
tantos outros filhos ilustres de Barras do Marataoan; todos, indistintamente,
estão na galeria dos grandes escritores e poetas do Piauí. Escolhi este porque
muito me atraiu a sua vida de lutas, mas, e também, pela ética, coragem,
integridade, honestidade e idealismo com que se houve durante toda a sua vida.
De acordo com os apontamentos biográficos de Monsenhor
Chaves, insigne historiador Piauiense, David Moreira Caldas nasceu em 22 de
maio do ano de 1836, em uma fazenda conhecida como Morrinho, nas imediações da
antiga Capela das Barras. Era filho do Capitão Manuel Joaquim da Costa Caldas e
de Manuela Francisca Caldas. Na época do nascimento do menino, a propriedade da
família já não era tão rentável; o patrimônio do Capitão, com o passar do
tempo, diminuía cada vez mais o seu valor, mormente pelo agravamento das secas
de 1823 e 1826, bem como pelas consequências dos conflitos dos Balaios
ocorridos na região, em 1839.
Era desejo do pai que o jovem David tomasse conta de suas
terras, tornando-as novamente produtiva. No entanto, a vida do campo não
despertava muito a atenção daquele rapaz. O que desejava mesmo era entrar no
mundo das letras. Para tanto teve uma importante ajuda do Dr. Francisco Xavier
de Cerqueira, Juiz de Direito da comarca, que lhe ensinou português, latim,
francês e aritmética. Aos dezenove anos, David Caldas tornou-se promotor
público de Campo Maior, cargo que abdicou por conta de uma depressão nervosa
que lhe acometeu.
Vendo que David era um jovem prodígio nos estudos, o pai o
enviou para Recife a fim de terminar os preparatórios para ingressar na
Faculdade de Direito de Olinda. O Capitão Manuel, embora passando por uma
situação financeira difícil, não mediu sacrifícios. E o jovem partiu para a
Veneza brasileira em 27 de janeiro de 1860. No entanto, segundo Monsenhor
Chaves, no dia treze de agosto daquele mesmo ano, uma infeliz notícia lhe
chegou ao seu conhecimento. Seu pai tinha falecido dias antes, mais exatamente
no dia 1 de agosto, após dias de padecimentos. Decidido, no dia seguinte,
retornou para Barras, para ajudar sua mãe e sua irmã naquele momento tão difícil.
Diante dessa fatalidade, David Caldas sacrificou todos seus sonhos, aspirações
e esperanças. Sua vida mudou radicalmente. Ele agora era o chefe da família;
tomou para si a responsabilidade pela administração da fazenda, o que o impediu
de se dedicar à cultura ou às atividades jornalísticas. Cabe aqui salientar
que, conforme nos informa o historiador Wilson Carvalho Gonçalves, no seu
Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, David Caldas iniciou sua vida
profissional na imprensa, no jornal Arrebol, por ele fundado em 1859.
Em que pese a boa vontade do jovem David Caldas,
positivamente ele não fora amoldado para a vida dura do interior, descreve
Monsenhor Chaves em sua importante obra. Optou por um emprego de professor de
letras que conseguiu em Barras, e casou-se, a 12 de dezembro de 1862, com
Benvinda de Queiroz, filha de importante fazendeiro de União. No ano seguinte,
o emérito historiador vai encontrar David Caldas em Teresina trabalhando como
redator, ao lado de Deolindo Moura, em um periódico liberal progressista
chamado “Liga e Progresso”. Diz também Monsenhor Chaves que o ano de 1863 foi
marcante para a vida de David Caldas, iniciando ali uma brilhante carreira
burocrática. Em 1864 passou a oficial da Secretaria da Presidência da
Província, além de ministrar aulas na antiga Escola Normal. E, continuando a
sua ascensão no serviço público, em 1867 obteve, por merecimento, promoção a
Oficial-Maior da Secretaria do Governo. Ainda naquele mesmo ano, o talentoso
David Caldas passou em um concurso público para professor vitalício em uma
Cadeira no Liceu Piauiense. Paralelo a isso, David Caldas participa, entre 1965
e 1968, da redação do jornal “A Imprensa”, um semanário oficial do Partido
Liberal, de propriedade também do mencionado Deolindo Moura.
No ano de 1867, David Caldas já era bastante popular devido a
sua ascendente carreira burocrática, bem como pelas suas atividades de
jornalista e professor. Por ser bem conceituado na sociedade, decide concorrer
às eleições para a Assembleia Provincial. Obteve uma expressiva votação,
ficando em primeiro lugar entre os deputados eleitos para o período de 1965 a
1968.
Daí em diante, começa a derrocada do nosso ilustre barrense.
A política partidária lhe foi cruel. Monsenhor Chaves ressalta que devido a
atuação de David Caldas na Câmara, defendendo os interesses do povo mais
humilde de Teresina, desperta uma enorme “antipatia de certos grupos sociais
que se sentem ameaçados com sua pregação populista”. Na época, a maioria da
população morava em miseráveis casas de palha que ficavam na beira do rio
Parnaíba e na periferia ou até mesmo em alguma parte do centro da cidade. Por
essa razão, o deputado David Caldas apresentou, dente outros, um audacioso
projeto para beneficiar os pobres que residiam nesse tipo casa. Seu projeto
consistia em instituir o “imposto da décima urbana, que seria aplicado na
construção de casas populares de telha, que seriam entregues ao povo mediante
contribuições módicas”. Sua estratégia era evitar a construção de palhoças em
Teresina. Disso, pode-se concluir que David Caldas era um homem de visão; um
homem à frente do seu tempo. Caso fosse aprovado esse projeto, certamente teria
se evitado os misteriosos incêndios ocorridos em meados do século XX na cidade
de Teresina.
Cada dia que passava, o ódio de seus opositores recrudescia
cada vez mais; não desejavam as mudanças propostas por David Caldas. O próprio
Partido Liberal, ao qual era filiado, não o apoiou. Por conta disso,
desligou-se dessa agremiação partidária e também da redação da “A Imprensa”. Em
1968 funda seu próprio jornal com o nome de “O Amigo do Povo”. Este jornal,
segundo a Doutora Ana Regina Rêgo, em seu artigo OITENTA E NOVE, Monitor
Republicano do Piauhy, “já nasceu republicano embora não o reconhecesse como
tal”. Contudo, afirma a emérita professora da UFPI, que os textos do referido
jornal são de combate à monarquia, seus vícios e práticas de corrupção. A
partir da criação do “Amigo do Povo, David Caldas se transformou em um contumaz
crítico do governo de D. Pedro II, mormente quanto as suas constantes mudanças
de opinião. De fato, referido jornal tornou-se o baluarte dos ideais do valente
David Caldas. Em 14 de janeiro do ano de 1872, o “Amigo do Povo” já aparece, no
seu cabeçalho, com o subtítulo de Órgão do Partido Republicano da Província do
Piauí. Pelos seus textos publicados nesse periódico, via-se que o combativo
jornalista tinha embasamento político para argumentar sobre os variados temas,
sobretudo com relação ao Império Brasileiro. Na realidade, David Caldas
tornou-se um dos maiores propagandistas republicanos na Província do Piauí.
Monsenhor Chaves ressalta que as ideias republicanas de David Caldas já vinham
desde o ano de 1849, quando tinha apenas 13 anos de idade.
A partir de 1872, quando David Caldas publicamente se declara
republicano, seus inimigos o perseguiram implacavelmente, chegando a perder
todos os empregos que obtivera por seus próprios méritos, excetuando-se o cargo
de professor vitalício da cadeira do Liceu Piauiense, uma vez que tinha sido
admitido através de concurso público. Mesmo assim, ele pediu demissão daquele
cargo, afirmando que não devia receber salários provenientes de um Governo que
ele combatia. Conforme registro de Monsenhor Chaves, o valoroso jornalista,
para sobreviver, passou a dar aulas particulares, haja vista que o “O Amigo do
Povo” não lhe proporcionava rendas suficientes para o sustento da sua família.
Em 1873, David Caldas muda o nome do seu jornal para “Oitenta e Nove”, em
alusão ao último exemplar, o nº 89, do periódico até então em circulação. Este
periódico teve 31 edições em circulação. O jornal, por falta de recursos
financeiros e da grande inadimplência no pagamento das assinaturas, não pode
mais ser impresso.
O historiador Wilson Gonçalves nos relata que, na edição do
primeiro número do jornal “Oitenta e Nove”, David Caldas escreve um artigo
manifesto contra as instituições imperiais, ao tempo em que conclama à
Proclamação da República Federativa do Brasil para, exatamente, o ano em que o
movimento aconteceu, ou seja, em 1989. Alguns estudiosos dizem que David Caldas
profetizou o advento da República em 1989: atribuiu ao seu jornal o dístico
Oitenta e Nove. E como se sabe, o primeiro número do novo periódico tem data de
1º de janeiro de 1873, quer dizer, quase uma década e meia antes da Proclamação
da República. Sobre essa profecia, Monsenhor Chaves está de acordo, mesmo no
sentido de conjectura. Outros, como Abdias Neves, não comungam dessa ideia de
profecia, pois se “cingem obstinadamente ao sentido religioso da palavra”, o que
também concorda o Monsenhor Chaves. Em que pese os argumentos de Abdias Neves e
outros discordantes, David Caldas passou a ser conhecido como o Profeta da
República, de forma lendária e histórica, como afirma o notório escritor Wilson
Carvalho Gonçalves.
Para corroborar com a tese da profecia de David Caldas sobre
a Proclamação da República em 1989, Chaves transcreve dois tópicos do
emblemático artigo escrito por David Caldas no primeiro número do combatente
jornal “Oitenta e Nove”:
“... (os patriotas mineiros) acabaram por ser outros tantos
mártires da liberdade, outras tantas vítimas imoladas ante o altar druídico, em
forma de trono, onde se achava exposta à veneração dos fiéis a mentecapta
Maria, digna bisavó do atual imperador do Brasil, a quem Deus guarde, quando
muito, até 1889...”.
“... seja-nos permitido ter a fé robusta de ver a República
Federativa estabelecida no Brasil, pelo menos daqui a 17 anos, ou em 1989,
tempo assaz suficiente, segundo pensamos, para a educação livre de uma geração,
para a qual ousamos apelar, cheios da maior confiança”.
Em seu mencionado artigo, a ilustríssima professora Ana
Regina Rêgo enfatiza que David Caldas, além de não ter condições para continuar
com o seu jornal, também não teve forças para criar o Partido Republicano na
Província do Piauí, mesmo porque a grande maioria dos importantes cidadãos do
Estado estavam a favor do sistema monárquico vigente. Por conta disso, ele
retornou, a convite expresso do Partido Liberal, para o jornal “A Imprensa”,
onde atuou de forma moderada, mas sempre com os ideais republicanos e crítico à
Monarquia, completa a professora. Antes disso, em 1874, David Caldas funda o
jornal de nome “O Papiro”, que teve duração efêmera. Em 1887, também cria outro
jornal conhecido como “O Ferro em Brasa”, também de curta duração. Há registros
históricos de que ele fundou um outro jornal – “O Bom Menino”. Como se nota,
David Caldas teve uma vida bastante atuante na imprensa de Teresina nas décadas
de 60 e 70 do século XIX.
No seu Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, Wilson
Gonçalves evidencia que David Caldas, além da sua extraordinária atividade
jornalística, elaborou e escreveu importantes trabalhos de ordem científica,
pedagógica e literária, entre os quais destacam-se: “Relatório de Viagem Feita
de Teresina à Cidade de Parnaíba” (no ano de 1867, pelo rio de mesmo nome); um
trabalho de “retificação de uma planta de Teresina” (1867); a “Planta
Topográfica do Rio Parnaíba” (1867); e o “Dicionário Histórico e Geográfico do
Piauí”. Escreveu também inéditas poesias tais como “Tímidos Acentos” e “A Musa
Triforme”. Lamentavelmente, não se tem conhecimento do paradeiro dessas
obras. David Caldas é Patrono da Cadeira
nº 4 da Academia Piauiense de Letras e da nº 8 da Academia Vale do Longá.
Segundo Monsenhor Chaves, David Caldas era um homem
desprendido. Em que pese sua situação financeira bastante precária, em 1974,
levou para morar em sua casa a irmã, e mais quatro filhas, em razão do
falecimento do cunhado.
Diz ainda Wilson Gonçalves que, ante às perseguições e
injustiças pungidas pelos seus ferrenhos inimigos, o seu estado de pobreza o
levou, em fins de 1877, a uma profunda depressão nervosa, perdendo o contato
com a realidade, e passando a viver de abstrações. Um exemplo disso: lançou os
princípios de uma nova ciência, a Coincidenciologia, onde se declarava em
formação de trindade humana com Gonçalves Dias e Deolindo Moura, o que tentou
provar através de cálculos coincidenciológicos, conforme reforça a professora
Ana Regina Rêgo.
Em Teresina a 03 de janeiro de 1879, paupérrimo, morre David
Caldas, o maior dos republicanos na Província do Piauí.
Para finalizar, Monsenhor Joaquim Chaves anota que o poeta
“Licurgo de Paiva, que lhe assistiu nos últimos instantes, diz que ele morreu
balbuciando os versos do hino litúrgico – ‘Glória in excelsisDeo’. Poucas horas
antes exclamava: “É chegado o dia de vos dar minhas contas ... Sabaoth ...
Sabaoth ... Sabaoth ... Três vezes sábio... Três vezes santo...” A igreja
católica, contudo, lhe negou sepultamento cristão. Essa negação, de fato, é confirmada
pelo grande escritor e poeta, Celso Pinheiro, em seu livro “História da
Imprensa”. Ali, Pinheiro enfatiza os continuados atos discriminatórios contra
David Caldas:
“Mas nem a morte fez arrefecer a vingança dos áulicos
imperiais contra o grande republicano. Como a Igreja Católica era ligada ao
Estado, David, apesar de grande crente em Deus, e membro da Irmandade do
Santíssimo Sacramento, era oficialmente considerado ateu e, como tal, não teve
o direito de ser enterrado no cemitério. Cavaram-lhe um túmulo em frente ao
portão principal do cemitério São José, debaixo de um velho jatobazeiro ali
existente, túmulo que alma caridosa mandou cercar com grade de ferro. Só na
década de 1930, quando do calçamento da rua, foram exumados seus ossos e
transladados para dentro do cemitério, assim como outros túmulos de
protestantes junto ao seu existente”.
(*) Chico Acoram Araújo é funcionário público federal,
contista, cronista, poeta e futebolista aposentado.
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