5 de novembro Diário Incontínuo
DIA DE FINADOS
E A MORTE NA POESIA
Elmar Carvalho
Como de hábito,
neste Dia de Finados não fui a nenhum cemitério. No entanto, pensei em meus
mortos, parentes e amigos. Respeito os que têm o costume de visitar a cova dos
seus, mas não considero que os meus ali estejam. Ali estão apenas os seus
restos mortais. Eles estão em minha saudade e em minha lembrança constante. Na
verdade, meus amigos mortos me acompanham, cada vez mais vivos. E talvez
estejam pairando sobre os montes, os rios, as florestas e os lagos, e sobre
outras belezas infinitas de uma outra desconhecida dimensão. Quando eu me for,
por vontade própria jamais estarei em um cemitério. Com certeza há outros
lugares mais aprazíveis em que gostaria de estar, se tal me for concedido.
Todavia, já
estive em campo santo algumas vezes, sobretudo no sepultamento de pessoas
amigas. No início de minha adolescência, em José de Freitas, estive algumas
vezes no pequeno cemitério velho (também conhecido, algo ironicamente, como dos
ricos), ao pé do Morro do Livramento. Nele, por simples curiosidade de garoto,
fazia uma espécie de pesquisa histórica, e lá me deparei com os mausoléus do
patriarca José de Almendra Freitas, de Antônio Freitas e o de Cândida Cunha.
Esta morreu solteira e legou parte de seu rico patrimônio para a paróquia de N.
S. do Livramento, além de haver construído a bela igreja de São Francisco.
Nessa mesma
época, voltando a morar em Campo Maior, residi, por curto período, numa casa
que ficava a dois quarteirões do velho cemitério dessa cidade. Da calçada, eu
lhe avistava o portão, os cravos de defunto e o muro branco. Já ele se
encontrava inativo. Ali estão sepultados, além de outros parentes, minha avó
paterna e meu avô materno. Certa vez, ao contemplar vários de seus túmulos,
alguns verdadeiros mausoléus, deparei-me com o do poeta Moisés Eulálio. Escrevi
uma crônica, em que lhe prestei comovida homenagem, depois publicada no jornal A
Luta, quando eu tinha dezesseis anos.
Aos dezesseis
ou dezessete anos de idade, em companhia de meu amigo Otaviano Furtado do Vale,
o Tavico, falecido em dezembro de 2013, mesmo ano em que minha mãe morreu, fiz
uma viagem a Regeneração. O ônibus passava perto de um campo santo campestre,
cheio de matagal. Nele havia túmulos em ruína e cruzes mutiladas. Isso foi a
origem mais remota de alguns de meus poemas, entre os quais o Noturno do
cemitério velho de Oeiras. No retorno escrevi um poema que falava nesses
túmulos abandonados e num “agre e agressivo agreste”. Perdi esse texto ou as
traças o devoraram, prestando com isso um inestimável serviço à literatura. Do
meu referido Noturno transcrevo: “Cemitério / de uma morte / absoluta e sem fim / como uma
música / sublime de bandolim / tangido por dedos mágicos / de Arcanjo ou
Serafim ...”
Num desses
cemitérios que visitei, havia um túmulo sem reboco, com os tijolos expostos e
desaprumados, o que me fazia lembrar os escombros de uma tapera. De imediato me
lembrei de um soneto inserto em Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, do qual
transcrevo estes versos: “nada participava da quietude / absoluta, absoluta,
eternamente / absoluta daquela pedra de / tumba, compacta, lisa, desprezada”. É
recomendável que o leitor leia o poema completo.
Não posso dizer
que a morte seja uma coisa bela, exceto transfigurada sob a forma de arte.
Talvez uma exceção seja a de Sócrates, que considero bela em si mesma e no
excelente texto de Platão, que a descreve. Quando fui juiz de Direito em
Curimatá, o senhor Mundinho Mascarenhas me narrou a morte de Joaquim Lustosa
Nogueira, que também rotulei como tendo beleza. Sobre este final de vida
escrevi a crônica Uma bela morte, que publiquei no meu livro Lira dos
Cinqüentanos.
Contudo, como disse, a literatura, mormente a poesia simbolista,
conseguiu transformar a morte em algo revestido de encanto e solenidade. Ali
estão belas, louras e jovens virgens, com mortalhas brancas, com as níveas mãos
cruzadas sobre intocados seios, adornadas por rosas e lírios. Essas angelicais
virgens foram pranteadas em melodiosos versos por magníficos poetas, entre os
quais Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e o piauiense Celso Pinheiro.
De o solitário de Mariana hão de ficar ressoando pela eternidade
os versos: “Hão de chorar por ela os cinamomos, / Murchando as flores ao tombar
do dia. / Dos laranjais hão de cair os pomos, / Lembrando-se daquela que os
colhia.” Dentro dessa linha de poesia, do cancioneiro português ficarão estes
versos de Antônio Feijó: “– Lírio que murcha ao despontar do dia, / Foi
descansar no derradeiro leito, / As mãos de neve erguidas sobre o peito, /
Pálida e loira, muito loura e fria...”
Augusto dos Anjos, poeta original, que cantou a morte, a podridão,
as ossadas, o horrendo, os vícios e a degradação da carne, em versos repletos
de termos cientificistas, inoculados de virulento pessimismo e morbidez, teve
seus instantes de sublimidade e esperança, e em suave elegia desta forma pranteou
a morte de seu pai: “Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas, / Como Elias,
num carro azul de glórias, / Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!”
Dos livros Os Literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino
Cunha e as tiranias do tempo, de Teresinha Queiroz, e Literatura Piauiense:
horizontes de leitura & crítica literária recolhi a informação de que no
início do século passado morreram Mocinha Araújo, Iaiá Pearce e Santa Martins,
“jovens, belas, namoradas, noivas” da sociedade teresinense, que mereceram as
mais sentidas elegias dos mais festejados poetas de então.
Sobre o falecimento de Santa Martins disse Celso Pinheiro, um dos
maiores bardos do Piauí: “Quando ela morreu, a comoção foi tão funda, o golpe
tão violento, os poetas choraram tanto, que a própria sociedade sentiu se lhe
arrepiarem os nervos, atordoada por tão forte sentimentalismo. // Dias
inteiros, semanas sucessivas, ecoou, pelo ambiente dos salões, a música magoada
da nostalgia das rimas. Eram sonetos tristes, baladas lânguidas, loas
sentidíssimas ressoando enternecidamente, aos nossos ouvidos, numa plangência
adorável.”
Sobre o
perecimento dessas belas jovens, como um simples aperitivo, para que o leitor
busque os poemas na íntegra, vejamos os seguintes versos de Celso Pinheiro:
“Quando Santa morreu a Terra toda / Se cobriu de tristeza à noite, pelas /
Horas mortas, porque não ia à boda / De Santa, no Palácio das Estrelas!...” E
estes outros de Antônio Chaves, extraídos do soneto Yaiá Pearce: “Eras a minha
fé soberba, indefinida, / Eras a minha crença, ó lírio imaculado, / Tu, que trazias
n’alma inocente e querida / A ária do nosso amor e do nosso noivado.”
Tísico, magro, celibatário e feio, inclusive tendo passado por
tratamento em sanatório suíço, tudo parecia conspirar para que o excelso poeta
Manuel Bandeira morresse jovem. Mas contra todos os maus augúrios, teve uma
vida longa. Seu pai desejava que ele se tornasse arquiteto, porém ele preferiu
ser poeta maior (e não menor, como ele se classificou num de seus poemas). No
Itinerário de Pasárgada, o poeta confessa que enquanto seu pai era vivo nada
lhe causava preocupação, porque pondo a sua na mão de seu pai, “nada haveria
que eu não tivesse a coragem de enfrentar”. Talvez por isso tenha escrito, em
Poema de finados: “Leva três
rosas bem bonitas. / Ajoelha e reza uma oração. / Não pelo pai, mas pelo filho:
/ O filho tem mais precisão.”
Certa feita, indo ao Cemitério da
Ressurreição, onde tenho jazigo há duas décadas, espiei várias lápides. Muitas
eram de pessoas jovens. Por motivos que não desejo abordar agora, hoje morrem
muitas pessoas no verdor dos anos. Conheci alguns dos mortos. Lembrei-me do que
dizia o impoluto juiz Hilson Bona, que considero um paradigma da magistratura
piauiense, de quem tive a honra de ser aluno no antigo ginásio.
Dizia ele que, quando notava que
poderia estar sendo acometido de vaidade ou orgulho, ia passear no cemitério de
sua comarca. Talvez visitasse as covas dos que se julgaram imprescindíveis e
insubstituíveis. Nesse aspecto o nome do velho campo santo de Parnaíba é
exemplar, e serve de legítima advertência: Cemitério da Igualdade.
Poeta, por crer na vida após a morte, nunca fui muito ligado às coisas relacionadas com a "indesejada das gentes", aos cemitérios, ao tema em si. por estes dias estive convivendo com algo muito próximo dela, e isso tem mudado um pouco a minha forma de encarar a "bicha ruim". Entretanto, diante de tão sentida e bem conduzida crônica, louvo mais uma vez à vida por me permitir desfrutar de tão belo tributo aos que se foram desta vida e nos deixaram saudade. Parabéns, meu Mestre, pois até mesmo das coisas tristes, o poeta capta raios vivos, fulgurantes... e belos.
ResponderExcluirCaro JP,
ResponderExcluirTanto não mereço, mesmo assim agradeço.
A amizade é capaz desses rasgos de generosidade, mormente quando vinda de uma pessoa de boa formação moral, que sabe reconhecer o mérito alheio.