A vingança de Nabucodonosor
José Pedro Araújo
Nabucodonosor não era uma ave
igual às outras, seu dono pôde verificar isso desde o início quando ele chegou
por ali, adquirido em uma feira da capital. Pequeno ainda – e plumagem tingida
de azul para agradar à meninada - já se mostrava cheio daqueles costumes
somente vistos nos seres superiores, inigualáveis, naqueles que vieram
predeterminados a não se comportar como o grosso dos da sua espécie. E ele
procedia sempre assim, empinado, orgulhoso, pescoço em riste, desconfiado com o
ser humano que adentrava no seu espaço para trazer-lhe comida ou agrados.
“Esse bicho é diferente dos
outros”, pensou o homem logo que o viu assim, com aquele jeito afetado,
mantendo-se à distância e comportando-se como um nobre, munido daquela pose
altiva. Foi adquirido mesmo assim. Não para fazer às vezes de brinquedo para crianças.
Foi adquirido porque era diferente.
Ganhou logo o nome do Rei da
Babilônia, Nabucodonosor. Entre os doze de sua espécie que vieram habitar o
quintal da casa, era um dos três machos. As outras nove fêmeas, à medida que o
tempo ia passando, cercavam-no de cuidados cada vez maiores o que não tardou a
despertar ciúmes nos outros dois companheiros de sexo. Esse sentimento foi
passando de um simples desconforto inicial, para uma grande aversão, culminando
com uma disputa tão acirrada por espaço que chegou ao extremo da violência
física. E nesses momentos, ele mostrou que era realmente diferente, batendo, em
sequência, seus dois contendores. Surrou-lhes tanto que ganhou da parte deles
uma reverência total, inconteste. Passaram estes da qualidade de opositores,
para a de fieis escudeiros.
Mas o destino das aves emplumadas
da sua espécie é sempre fazer parte de algum banquete, na qualidade de repasto
para os presentes, não na de convidado. E assim acontecia sempre que o dono do
galinheiro encontrava alguma razão para mudar um pouco o cardápio. E esse
destino negro fez com que, paulatinamente, seus pares fossem sendo eliminados
um a um, quando chegaram à fase adulta. Só sobrou ele.
Nesse período, já era uma ave de
porte avantajado, belíssimo na sua vestimenta de penas brancas, e mais
compenetrando ainda. Não se deixou abater pela perda de seus vassalos.
Contrariamente, mostrava-se cada vez mais arredio, arrogante, avesso a qualquer
aproximação com o pessoal da casa. O chefe da família, que o observava desde o
início, e o admirava, apesar da esnobação de Nabucodonosor, era o seu grande
defensor, e não permitia que ele tivesse o mesmo fim de seus companheiros.
- O quê esse galo tem de tão
importante que você não permite que o levemos à panela, homem!? – indagava a
mulher cada vez que era impedida de lançar mão no bicho, transformando-o em uma
gostosa iguaria.
- Então você não está vendo,
mulher! Ele é o nosso grande Nabucodonosor, o rei desses quintais – respondia
orgulhoso.
- E para que nós precisamos de um
rei no nosso quintal? – irritava-se a mulher.
- Para alegrar as nossas
madrugadas com o seu canto eterno. Lembra-me minha infância na roça, quando eu
acordava à noite para ouvir o canto desses bichos. Era uma festa. Um cantava
perto, outro respondia mais distante, outro mais distante ainda, até não se
ouvir mais nada. E ai o primeiro começava tudo novamente! Esse aí traz o sertão
para dentro da minha casa aqui na cidade. – Respondia orgulhoso e saudoso o
homem.
A conversa terminava sempre assim,
e Nabucodonosor ia sempre escapando de ter o seu pescoço decapitado.
Não se sabe se por
desconhecimento desse assédio cada vez maior, ou se por conta da sua herança
nobiliárquica, o certo é que o bicho mostrava-se cada vez mais compenetrado e
refratário à aproximação com o pessoal da casa. Nem mesmo o seu grande defensor
era tratado de maneira diferente, e isso só fazia aumentar o número dos que
lutavam pela causa da sua extinção pura e simples; queriam vê-lo
convenientemente servido em postas no almoço de Domingo.
Mas, estranhamente, seu defensor
arguia com ardor sempre maior, lutando pela sua salvação. Uma coisa que não
conseguiu, contudo, foi livrá-lo do cativeiro atroz. Passou o seu “rei” a viver
aprisionado, amarrado pelos pés para evitar que atacasse as pessoas que por
ventura adentrasse ao quintal. Território Nabucodonosor já considerava como seu
reino indevassável.
Não se sabe se pelo fato de ter
sido mantido em cativeiro, o certo é que o bicho passou a se mostrar um pouco
mais dócil. Não sabiam que isso era fruto do amadurecimento dele, da sua
esperteza. O fato é que Nabucodonosor ganhou mais liberdade, recebeu permissão
para se deslocar pelo quintal livremente, e seu canto melhorou sensivelmente,
voltando ao nível melódico de quando estava ainda com o seu séquito intacto.
Nos últimos tempos, sua ode lhe saía triste, tremido, e sem força, quase não
ultrapassava os limites do próprio quintal. Agora não, soltava seus solfejos
pelos ares qual um menestrel medieval, numa tentativa de agradar a sua amada
enclausurada nas alturas da torre de um castelo fictício.
E seu território foi se
expandindo, se expandindo, já podia até andar pelo gramado da frente da casa. E
nesses momentos, espiava interessadamente para a rua, observando o vai-e-vem
das pessoas e dos automóveis que se movimentavam livremente.
Certo dia arriscou uma subida na
mureta baixa que protegia a casa da rua propriamente dita. Gostou de ficar ali
em cima, em um ponto de observação acima do nível do solo, mas sempre voltava
para dentro, para o seu quintal. Até mesmo a dona da casa passou da
desconfiança estremada a um estágio de tolerância sob vigilância. O preço de
uma bicada que o galo aplicara na sua caçula, estava lhe custando muito caro
ainda, precisaria de muito tempo para que fosse esquecida.
Mas Nabucodonosor possuía o
sangue quente dos guerreiros conquistadores, e não tolerava quem o confrontasse
com brincadeiras fora de hora ou mesmo com gracinhas que considerava carregadas
de pejoração. Essa assertiva foi confirmada pelo menino Bruno, um vizinho que
morava em uma casa próxima ao território de Nabucodonosor. Garoto brincalhão, o
garoto estava ai pelos seis anos de idade, no auge da sua curiosidade, e por
isso mesmo explorava as cercanias de sua residência, sempre sob os olhos
cuidadosos da mãe. Nesse dia, estava Nabucodonosor empoleirado em seu ponto
preferido de observação, sobre o muro, quando Bruno se aproximou acompanhado
por Andrey, um garoto um pouco mais novo, mas extremamente curioso também.
Vinham subindo a rua, brincando, espantando os besouros e borboletas que
pousavam sobre as flores dos imensos jardins que enfeitavam as largas calçadas.
Um pouco mais abaixo, conversavam
com o dono do galo à sombra de um frondoso ficus, seu pai, o pai do menino
Andrey e o avô deles dois, pois eram primos. Por isso, de onde se encontravam,
os homens procuravam não perder as duas crianças de vista.
Quando já estavam próximos do
lugar aonde o galo se encontrava no seu ponto de observação, cerca de uns
cinqüenta metros de distância da sua casa, Bruno chamou a atenção do primo.
- Olha ali, Andrey. Que galo
bonito!
A ave não se mexeu. Continuou lá,
altivo, sem demonstrar o mínimo interesse pelos observadores que se aproximavam
solícitos dele. Depois de admirá-lo por um bom tempo, Bruno resolveu mexer com
o galináceo e começou a jogar-lhe alguns seixos que trazia nas mãos, no que foi
acompanhado por Andrey. Os meninos
arremessavam as pedrinhas e riam gostosamente com a reação que o galo tinha
agora. Nabucodonosor, para não ser atingido, pulava de um lado para o outro,
abrindo as poderosas asas para se equilibrar sobre o muro. E isso serviu de
estimulo aos dois garotos que se aproximaram mais para conseguir acertá-lo em
cheio.
O que era brincadeira para os
meninos, passou a ser encarada pelo galo como um acinte, uma agressão
despropositada contra seus direitos à tranqüilidade. E ele, que não admitia
nenhum desrespeito à sua condição de nobre na sua espécie, começou a
indignar-se e a perder o autocontrole. E foi então que, abrindo as asas até ao
limite, lançou-se no espaço em direção aos garotos.
Foi um vôo curto, mas parecia um
Condor que se lançava do alto de um penhasco para o espaço infinito. As garras
afiadas, e os esporões amoladíssimos estavam prontos para atingir dolorosamente
a quem o estava molestando naquele momento.
Quando os meninos viram o salto
majestoso de Nabucodonosor em direção a eles, partiram em desabalada carreira
rua abaixo. Tentavam chegar até ao local em que estravam seus parentes. E
Nabucodonosor, cada vez mais furioso, corria atrás deles com velocidade
crescente. As asas agora abertas lhe davam um aspecto de uma aeronave que
tentava levantar vôo sem, contudo, conseguir sair do solo. Saltitava, na
verdade, na tentativa de voar, pois acabava voltando ao solo. Mas se não
conseguia voar, empreendia uma velocidade grande, incerta, é verdade, mas
crescentemente perigosa para os dois guris.
Bruno olhou para trás, e o que
viu o deixou apavorado, razão pela qual soltou um grito de terror que ecoou
pela rua inteira. Andrey, um pouco menor que o primo, estava ficando para trás
na longa carreira que empreendiam, ficando à mercê do galo. Também já vinha
gritando a plenos pulmões, completamente aterrorizado com o que adivinhava está
prestes a acontecer.
Mas o galo, cheio de ódio e com
gana de atacar dolorosamente a quem ele achava que o tinha destratado,
emparelhou com Andrey e, sem nem ao menos olhar para ele, o ultrapassou na
corrida. As asas que não conseguiam fazer com que aquela ave pesada alçasse
voo, elevavam-no do solo por pequeníssimos instantes, e depois depositavam-no
novamente sobre a calçada, mostrando, na verdade, que ele se deslocava aos
pulos. Tal fato conferia ao bicho um aspecto aterrorizante, e ele já se
encontrava próximo ao menino que considerava o seu verdadeiro inimigo.
De onde estavam os homens ouviram
os gritos dos meninos e, ao observarem para saber a razão de tamanho alarido,
ficaram preocupados com a cena dantesca que avistaram, e com a iminente
agressão que se prenunciava. Nabucodonosor já estava quase alcançando o menino
Bruno que, já sem forças, corria desequilibrado, quase flutuando, mantendo-se a
muito custo de pé, sem cair ao chão. Os braços abertos do guri, tal qual as
asas de Nabucodonosor, era o que o mantinha ainda em posição vertical, de pé.
Mais rápido que os demais, o pai
de Andrey correu em socorro dos meninos e ainda teve tempo de amparar Bruno nos
braços antes que ele caísse desfalecido e fosse atacado pelo feroz bípede.
Nabucodonosor não se intimidou,
contudo. Estava já tomado por um furor animal que o fez atacar o garoto, e
também quem o amparava. Os outros homens, vendo que a situação estava passando
de crítica, atacaram o galo a pesadas tentando afastá-lo de sua pretensa presa.
A muito custo fizeram com que ele refluísse do seu intento e voltasse para o
seu território.
Passado o susto, com o garoto
Andrey já devidamente sob os cuidados dos parentes, os salvadores caíram em
estrepitosa gargalhada. Quanto aos garotos, continuavam em estado de terror
absoluto, com os olhos quase a saltar das órbitas.
Os homens riram por um bom
período até não conseguirem suportar o incômodo na barriga. Um pouco aliviados,
e outro tanto admirados com a valentia daquele animal que não demonstrara, em
momento algum, receio pela presença deles, recolheram os dois meninos à segurança
do lar.
Todavia, esse incidente quase
teve resultados catastróficos para o nobre Nabucodonosor. Preocupados em manter
a política da boa vizinhança, e com receio de que o reizinho viesse a atacar
outras crianças, decidiram sacrificar o belo galo.
Mais uma vez seu protetor entrou
em ação para salvá-lo do banquete do qual ele não tinha o menor interesse de
participar. E, em nome da diplomacia e da boa política, decidiu agir. Na noite
que antecedeu ao previsto banquete, o galo foi sorrateiramente retirado de lá,
e levado, às escondidas, para o sítio de um amigo que possuía um mini zoológico
com várias espécies de animais e aves, muitas da mesma espécie de
Nabucodonosor. Lá o fugitivo se encontrou com belas companheiras originadas de
muitos países, como a inglesa Bianca Leghorn, as americanas Mimi Rhode Island Red, Angel New Hampshire e Desirée Plymouth Rock Barradas, entre outras,
todas logo incorporadas ao seu novo séquito real. Para isto, não encontrou
muitas dificuldades, pois os espécimes masculinos que antes reinavam no
terreiro, foram vencidos um a um e passaram a fazer parte da sua corte,
servindo-o e adotando-o como novo e verdadeiro líder. Chegara novo rei ao
pedaço.
Até que Nabucodonosor gostava de
suas novas pretendentes. Eram belas e educadas, de fina estirpe e o tratavam
com carinho e devoção. Mas, apaixonar-se mesmo, só aconteceu com uma: a bela
Gail White América, de andar gingado e orgulho nas alturas. Portadora essa
índole também real, fazia questão de não acompanhar as outras amigas quando o
assunto era bajular o recém-chegado rei do pedaço. E esta talvez tenha sido a
razão para ela ter sido escolhida para rainha. A mais bela e inteligente rainha
que se conheceu por aquelas terras em uma centena de anos. Quanto a
Nabucodonosor, viveu feliz por muitos e longos anos e deixou numerosa prole que
hoje se espalha por vários reinados onde ocupam os mais importantes cargos na
realeza.
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