Os Meninos Gibizeiros da Praça
Pedro II (2ª Parte)
José Pedro Araújo
Romancista, cronista e
historiador
Tempos atrás redigi uma crônica
sobre um hábito que só encontrei em Teresina, quando para esta cidade eu vim
com o intuito de continuar os meus estudos: a leitura de gibis nos cinemas
antes do início das sessões. Falei ainda que as revistas eram objeto de troca
ou simples aquisição em bancas improvisadas sobre caixotes de madeira e
postadas em frente aos cinemas. Somente para refrescar a memória dos que já
leram o texto ou para informar aos que não o fizeram: o indivíduo chegava para
assistir a um determinado filme já trazendo a sua revista em quadrinhos debaixo
do braço para a troca por outra não lida com os gibizeiros. E depois de alguma
negociação, deixava com o dono da banca um troco, a torna, além do seu gibi, e
adentrava ao cinema para aguardar o início da projeção do filme. E, enquanto
isto, na companhia de inúmeros outros cinéfilos, passava a ler a sua revista.
Era um hábito, fazia parte do programa.
Pois bem. Ontem de manhã fui ao
centro da cidade para resolver alguns negócios e, terminada a minha obrigação,
resolvi dar uma passadinha na banca de revistas usadas do Dentinho para um dedo
de prosa, mas também para garimpar alguma novidade. Saí depois com algumas
revistas do Tex, que reservo para ler naqueles momentos de total descontração,
quando até mesmo lê um bom livro é tarefa oficial. Esses momentos pedem algo
mais leve, menos sério, então saco um gibi da prateleira, que pode ser um
Almanaque Disney, um Chico Bento, ou um cowboy estrelado pelo Tex Willer e seu
pards. Nos últimos tempos tenho procurado os sebos para adquirir revistas
usadas, tanto pelo seu valor, quanto pela sua ausência nas bancas de revistas
novas, ou até mesmo por estarem fora de publicação.
Dentinho, de acordo com o que me
informou, é um dos últimos remanescentes de um grupo de cerca de 20 meninos que
iniciou aquele negócio de vender revistas usadas na porta dos cinemas 4 de
Setembro ou do Rex. O outro remanescente é o Joel, dono de várias bancas de
revistas espalhadas pela cidade. Só que o Joel, desde muito tempo, migrou para
a atividade das revistas novas, ficando apenas o Dentinho como o último
remanescente daquela turma, ao lado de alguns outros que se iniciaram depois no
mister. Dentinho é um sujeito alegre, boa prosa, que acompanhou o
desenvolvimento da cidade de um ponto de observação muito bem localizado, pois
situou a sua banca quase defronte ao palácio do governo, o Palácio de Karnak. E
nesses últimos 50 anos, acompanhou as transformações pelas quais a cidade
passou, inclusive, a migração da maioria das famílias que residiam no centro,
para a zona leste.
Espremendo a memória, Dentinho,
sessentão, cabelos quase completamente brancos, relacionou-me o nome de
quatorze daqueles garotos que começaram a negociar revistas usadas, lá pelos
idos de 1964: Pitica, Gobá, Magrelo, Magrão, Preto, Preto Prudêncio, Macaco,
Pelé, Magrinho, Crente, Bode, Pixico, Joel, e ele próprio.
Uma curiosidade: ninguém ali era
conhecido pelo nome de batismo. Todos eram chamados pelo apelido, de forma que
ninguém lhes sabia os nomes próprios. Isso, até hoje em dia. Destes, como
falei, apenas ele continua a operar no ramo de revistas usadas ali em volta da
praça. Outros garotos e adolescentes
também operavam algum tipo de atividade no local. Dois desses grupos eram formados
pelos vendedores de maçãs, naquele tempo totalmente importadas da Argentina,
pois o país ainda não as produzia em escala comercial, e os flanelinhas. Mas o
grupo mais coeso, que trabalhava junto, e se divertia também em sociedade, era
o dos meninos gibizeiros. Como também já afirmei na crônica anterior, as bancas
eram improvidas sobre caixotes de maçãs argentinas, as “Manzanas Argentinas”. E
Sobre eles estendiam-se o papel arroxeado que acondicionava os frutos, como se
fora uma toalha. Era assim que as revistas eram expostas e apresentadas para o
público.
Afirmou-me também o jornaleiro
que muitos daqueles meninos vieram do interior para Teresina, e se
estabeleceram na praça por falta de outra ocupação. Foi este o caso dos três
irmãos, Gobá, Magrelo e Magrão, originários de uma cidade do médio Parnaíba,
talvez Água Branca, e que, anos depois, voltaram para lá. Aliás, daquele grupo,
muitos foram embora, passaram a desenvolver outras atividades, como o garoto
conhecido como Macaco. Sobre este, Dentinho me contou uma história triste, que
repasso a frente. Macaco, já rapaz, foi acusado de ter participado de um
arrombamento ocorrido na Lanchonete Americana, situada em uma das esquinas da
praça, e também ponto de encontro da juventude daquela época. Mantido
encarcerado por alguns dias, o rapaz foi solto por falta de provas, e resolveu
adotar uma postura diferente para a sua vida. Ao ser libertado, entrou na loja
Juçara, conhecida por vender roupas de boa qualidade, comprou algumas peças e,
devidamente bem vestido, procurou Dentinho para lhe vender todo seu estoque de
revistas usadas. Surpreso com o gesto, Dentinho lhe perguntou sobre o porquê
daquele gesto. E recebeu como resposta: vou mimbora daqui!
Mostrando que ainda carregava o
peso daquela injustiça praticada contra o amigo de tantas passagens, Dentinho
me afirmou, com voz entristecida e saudosa, nunca ter visto, durante este tempo
todo, alguém tão correto e de palavra quanto o amigo Macaco. E arrematou:
“disse-me ele naquela ocasião: Dentinho, se a minha alma tiver vergonha, ela
nunca mais botará os pés nesta cidade quando eu morrer”. E, de fato, ele nunca
mais voltou a Teresina. Sabe-se que foi visto algum tempo atrás chefiando o
departamento de crédito de uma grande loja em São Paulo. Continuava no ramo do
comercio, mas Teresina nunca mais o viu.
Joel, como já falei, é um
comerciante bem posto em Teresina, e Dentinho, o único a permanecer no ramo de
revistas usadas, também leva uma vida de relativo conforto, residindo em um
sítio que ele montou para passar os últimos anos da sua vida em contato com a
natureza. Mas, todos os dias, desembarca nas imediações da Praça Pedro II para
exercer o seu ofício de vendedor de revistas e livros usados. É um gibizeiro
convicto.
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