Baurélio Mangabeira
Reginaldo Miranda (*)
Benedito Aurélio de Freitas,
por alcunha Baurélio Mangabeira, nasceu às dezoito horas do dia 18 de julho de
1884, na fazenda “Pau d’arco”, Município de Piripiri, filho de Aureliano de
Freitas e Silva e Izabel de Freitas e Silva. Era seu avô paterno o notável
padre Domingos de Freitas e Silva, o principal fundador da cidade de Piripiri e
dona Jesuína de Freitas e Silva; e materno Porfírio de Freitas e Silva e dona
Joana de Freitas e Silva (Na declaração de seu nascimento, por ele feita,
informa que nasceu em 19 de junho de 1890, na cidade de Piripiri).
Órfão de mãe desde o nascimento,
vez que a genitora morrera no parto, e de pai desde os cinco anos de idade, foi
criado sob os cuidados da tia e madrasta Carolina Rosa da Silva, tendo em vista
seu pai depois de viúvo ter convolado novas núpcias com uma cunhada, como a
anterior sua sobrinha, com quem teve mais três filhos. Sem pai e sem mãe,
transcorreu sua meninice sem muito regramento, desde cedo correndo solto nos
arredores de Piripiri, banhando em riachos, subindo em árvores, armando
arapucas para apanhar aves e fazendo outras estripulias típicas de menino de
fazenda. É quando foi aberta pelo professor Nelson Francisco de Carvalho, uma
escola de primeiras letras para alfabetizar as crianças de Piripiri, que até
então não existia. O menino Benedito Aurélio foi mandado imediatamente para
essa escola, surpreendendo o mestre pelos rasgos de inteligência. Concluída
essa etapa, aos 12 anos de idade, foi enviado pelo avô Porfírio de Freitas e
Silva para a cidade de Barras, onde concluiu os estudos primários, os únicos
cursados em escola regular, prosseguindo como autodidata.
Completada a maioridade, muda-se
para a cidade de União, “onde começou a trabalhar em misteres humildes e depois
como balconista na farmácia Guerreiro, daquela cidade. Daí passou para a
farmácia do Sr. Tersandro Paz, em Floriano e Teresina. Nessa última, que então
era o melhor estabelecimento no gênero, neste Estado Baurélio habilitou-se como
farmacêutico prático e conseguiu juntar um pecúlio regular, com o qual começou
a comprar livros. Em seguida surgiu pela imprensa publicando sonetos líricos
amorosos, mas que chamavam atenção (...) pela cadência, ritmo e beleza de
imaginação”. Em toda a sua vida, foi essa a fase em que esteve mais equilibrado
financeiramente. Por esse tempo se qualificava como farmacêutico licenciado.
Todavia, “à proporção que ia
ingressando no Parnaso e que o estro se desenvolvia calorosamente com aspectos
panorâmicos de belezas transcendentais, ia o poeta afrouxando a dedicação ao
trabalho quotidiano”, entediando-se até abandoná-lo completamente e entregar-se
de vez à boêmia, primeiro em Parnaíba e depois em Teresina e outras
localidades, consumindo todas as suas economias. Entregou-se ao vício do
alcoolismo e tabagismo. Desde então, passou a viver com dificuldades
financeiras.
Na poesia iniciou-se seguindo a
tendência naturalista defendida por Mauricio Le Blande e Émmile Zola. Somente
depois, impressionado com a leitura das poesias satíricas de Bocage, tornou-se
humorístico e causticante. Por esse tempo, publica Sonetos Piauienses(1910),
panfleto de versos humorísticos e agressivos. Nessa ocasião, lembra Alarico
José da Cunha em seu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras,
principal fonte dessas notas e autor das citações entre aspas, que “um dos
atingidos pelas sátiras do poeta, ameaçou-o de um surra em plena rua de Teresina.
Tendo conhecimento da desagradável promessa, Baurélio dirigiu-se ao Chefe de
Polícia, (...), solicitando que este providenciasse no sentido do seu agressor
adiar a surra por uma semana, pelo menos, a fim de poder ele terminar um
serviço que havia começado”. Felizmente, a tal promessa não se concretizou e
nosso poeta pôde continuar circulando livremente pelas ruas de Teresina.
Sobre esse volumeto de versos de
tiragem reduzida, hoje completamente desaparecido, assim registrou o jornalista
Elias Martins, redator-chefe do jornal O Apóstolo:
“Do inteligente moço B. Freitas
que, em nosso meio é conhecido pelo pseudônimo Baurélio Mangabeira, recebemos
um pequeno livro, Sonetos piauhyenses, fineza que agradecemos.
‘Não nos sobra espaço para uma
apreciação cabal do trabalho do sr. B. Freitas; mas da ligeira leitura que
fizemos, vimos que ali há sonetos escritos com inspiração.
‘São versos puramente
piauhyenses, vazados alguns em feio realismo. Não nos soube bem aquele mau
gosto do autor em escolher cenas indignas de reprodução, de preferência a
outras tão belas que não só estimulariam o estro, como salpicariam de graça e
candura as páginas de um livro. Achamos extravagante a predileção do autor que,
pode ser, doutra vez, procure inspirar-se em coisas mais limpas” (O Apóstolo,
10.7.1910).
Esse julgamento severo daquele
órgão de imprensa, certamente deve-se ao caráter satírico da publicação.
Alarico José da Cunha, no
indicado discurso de posse lembra também a engenhosa e interessante versão do
poeta para o seu pseudônimo. Porque sua desditosa mãe houvera feito uma
promessa para São Benedito, santo de sua predileção, mas este os abandonara à
própria sorte, desprezou o nome do taumaturgo, mas em reverência à veneração da
mãe conservou o B inicial e etimológico que, junto com a palavra Aurélio, parte
do nome de seu pai e do grande imperador filósofo Marco Aurélio, deu em
resultado a palavra vibrátil, elegante e sonora Baurélio. E porque o sobrenome
Freitas pouco lhe dizia, substituiu-o por Mangabeira, nome de uma árvore que
por aqueles dias era fonte de riqueza no Piauí, produzindo magnífica borracha.
Para ele, Baurélio Mangabeira, significava poder, sabedoria e riqueza – os três
principais fatores do progresso e da civilização.
Jornalista andarilho, repentista
e tribuno ardoroso, andava com um prelo portátil e em qualquer parte onde
estivesse editava seu jornal A Jornada, periódico ambulante que manteve por
vários anos, sendo ele sozinho e a um tempo, redator, revisor e tipógrafo.
Redigia, compunha, executava clichês de madeira para ilustrar o jornal e,
afinal, o imprimia. Modelava também em zinco e era exímio desenhista, pintor,
xilógrafo e escultor. Colaborou também nas revistas Alvorada(1909),
Litericultura(1912), Via Lucis (1913, pertencente ao Grêmio Literário Abdias
Neves, de Teresina) e nos jornais A Chaleira, O Porvir, O Norte, O Grito, A
Letra e O Periperi. Consagrado na literatura, em 1917 participou da fundação da
Academia Piauiense de Letras, tomando assento na cadeira n.º 6.
Contraiu matrimônio, um tanto
retardado, em 21 de junho de 1927, na fazenda Sentinela, do termo de Alto
Longá, onde exerceu o cargo de juiz distrital, com a senhorita Raimunda de
Oliveira Freitas, filha do capitão Possidônio Otaviano do Nascimento e de sua
esposa Feliciana Oliveira do Nascimento, residentes naquele termo. Do consórcio
deixou os seguintes filhos: Francisco de Assis Freitas, nascido em 1928 e
falecido na cidade de Piripiri, com treze anos de idade, em 21 de dezembro de
1941; Maria de Lourdes Oliveira Freitas, nascida em 23 de julho de 1931, na
cidade de Piripiri; e, José Henrique de Oliveira Freitas, nascido em 15 de maio
de 1933, na casa de residência de seus genitores, situada à Rua Lisandro
Nogueira, cidade de Teresina.
Para Alarico da Cunha, “Baurélio
Mangabeira foi sempre um torturado na sua peregrinação terrena e uma vítima da
indiferença do meio. Mantinha, entretanto, uma verve chistosa e humorística,
com a qual disfarçava gostosamente os seus pesares ou ‘as tormentas da vida’”
(CUNHA, Alarico José da. Discurso de Posse. Revista da APL n.º 17. Teresina:
Imprensa Oficial, 1938).
Faleceu Benedito Aurélio de
Freitas, o popular poeta Baurélio Mangabeira, em sua residência situada na Rua
Clodoaldo Freitas, cidade de Teresina, à uma hora da manhã de 16 de abril de
1937, com quase 53 anos de idade, sendo o corpo sepultado no cemitério São
José. Falando à borda de seu túmulo, na tarde daquele mesmo dia, e em nome da
Academia, disse o consagrado poeta Celso Pinheiro:
“É finda a tua missão!
Desabotoaste em flores de carne e flores de espírito. O sentimento é ainda uma
força eterna, inextinguível. Não foi em vão que sofreste. Dor é imortalidade...
‘Serviste ao coração e à
inteligência. O teu esforço foi coroado com o azul dos céus. Honraste a Deus.
Sê em paz. Com o fósforo do pensamento acenderemos hoje, em tua honra, a vela
de uma lágrima, grande iniciado da religião do Silêncio!...
‘Sê em paz...” (Rev. APL n.º 16 –
Dez./1937. P.183/189).
Em 1914, durante confraternização
de seu aniversário natalício, compôs esse soneto, citado pelo Prof. Mardoqueu
Marques, seu amigo, em panegírico feito na sessão de 24 de maio de 1937:
NA MINHA DATA
Nessa terna ilusão da vida
flórea,
Armaram-me a facão, à foice, à
enxada,
Para limpar os rumos dessa
Estrada,
Que levam a gente sã à Eterna
Glória.
Passo vista aos rebanhos. A
Alvorada
Desata a minha rede e cita a
história
Da gente parva, torpe,
merencória,
Da gente fartamente acanalhada.
Amolo a ferramenta. Sigo o
prumo...
Canaviais desmanchando em níveo
sumo,
Tirando aos parreirais sangue
africano...
Faço na terra impávido mistério!
- Tanto povo a passar p’ro
cemitério,
E eu caladinho faço mais um ano!
Em homenagem à jovem esposa,
publicou este outro soneto:
Naquela tarde lírica e serena,
Cheia de encanto e dúlcida visão
Eu te senti, mirífica falena,
Dentro do meu sensível coração...
Por terras do Longá, paragem
amena,
Eu cavalgava no arenoso chão,
Perante a nívea lua do sol na
arena...
Verdes, espessos matos do sertão
Foi quando ouvindo os pássaros
cantando,
Que meus olhos de bordo foram olhando
O pátio da fazenda Sentinela...
E estavas tu, senhora feiticeira,
No terreiro da casa hospitaleira,
Ó divina mulher! Criatura bela!
(A Jornada, 25.9.1927. IN:
MATOS, J. Miguel. Os fundadores. 2.ª Ed.
Teresina: APL, 2018)
Ainda como mostra de sua produção
literária, seguem alguns poemas:
FAZENDA
Dorme tranquilo o campo
esmeraldino
Logo que a noite cai sobre a
morada;
E o tempo calmo como um bom
destino
Ronda a noturna região sagrada.
Cantam rios de fluido cristalino
Perante humana vida sossegada
Quando em momento lúcido, divino,
Surge da treva fulva madrugada.
As aves chilram despertando a
gente!
O vaqueiro aboiando à luz
nascente,
Desce ao curral de gordas vacas
mansas.
No pátio da fazenda urra o
novilho!
A vaca lambe o pequeno filho
Sobre o vasto sertão cor de
esperanças.
(MATOS,
J. Miguel. Os fundadores. 2.ª Ed.
Teresina: APL, 2018).
REVELAÇÕES
Não julgues que, se a sorte não
maldigo,
Seja porque minha alma não sofreu
Os travos da desgraça – agro
castigo,
Que dizem vir do inferno ou vir
do céu.
Pouco tempo meu pai viveu comigo:
Cinco rápidos anos e morreu.
E minha mãe, com lágrimas te digo,
Dentro de algumas horas faleceu.
Escuta lá: Nos cemitérios vastos
Os ossos de meus pais devem estar
gastos
Pelo tempo que tudo estraga e
rói...
Olha: quem nessa estrada cai,
Sem ter mãe, minha filha, e sem
ter pai,
Há de sentir o quanto a vida
dói...
CANÇÃO
É da luz dos teus olhos, luz que
eu amo,
Que vem todo este amor à alma que
tenho...
Os teus olhos no meu refletem a
flux,
Doce luz!
- Dois rouxinóis cantando num só
ramo:
Doce ideal da vida em que me
empenho.
Do róseo dos teus lábios, cor que
eu amo,
Vem todo este prazer à alma que
tenho...
Unamos, minha flor, teus mornos
lábios
Nos meus lábios...
Dois rouxinóis beijando-se, num
ramo:
Doce ideal no amor que em mim
contenho.
Dos contornos dos seios, seios
que amo,
Vem todo o amor que em mim
contenho.
Unamos o teu peito no meu
peito...
Doce leito!
- Dois rouxinóis unidos, num só
ramo:
Doce símbolo da vida que não
tenho.
Noivo – envolvido em tétrica
tardança...
Louco! Penso que às vezes me
detestas.
Prende-me à rósea detenção do
seio...
Doce enleio!
- Quando virás, ó última
esperança,
Trajando o verde augusto das
florestas!.
(Diário do Piauhy,
Teresina, 10.5.1914).
PALINÓDIA
Aos meus irmãos Totônia,
Chiquinha e Aurélio.
Quando eu morrer, sensíveis
criaturas,
Filhas de Carolina e Aureliano,
Dispenso as vossas lágrimas tão
puras,
E o vosso amor por mim, tão
soberano!
Isolem-me entre estranhas
sepulturas,
Que este é o prazer real de que me
ufano.
Oh, me não chorem ternas criaturas!
Morto não penso e disso me não
engano.
Vossa virtude e a de meus pais
não mancho!
Deixai-me lá no verdadeiro
rancho,
- Palácio sepulcral da
Eternidade.
Deixai-me sossegar! Deixai-me só!
O coração do morto desce ao pó
Como um monstro insensível à
saudade!
(O
Apóstolo, 1.10.1911).
POR QUE FOI?
Por que foi terna luz da minha
vida,
Encanto, sedução, doce ventura,
Que me levaste à dor, à
desventura,
Ao frio, à treva, onde não medra
a vinha?
Por que foi, terna luz que em mim
fulgura,
Encanto, sedução, grandeza minha,
Que me negaste a festival
ventura,
Dando-me triste vida que eu não
tinha?
Por que foi, luminosa luz
celeste,
Encanto, sedução, visão radiosa,
Que eterna dor e pranto à alma me
deste?
Por que foi que eu, sofrendo esse
tormento
Odiar-te não pude, alma de rosa.
Nem também te apagar do
pensamento?!
(A Pacotilha, Maranhão,
19.12.1919).
FOLHA DE MEU DIÁRIO
Amigos – não os achei na vida
minha,
Até triste momento em que hei
vivido,
Pobre sorte a que eu tenho.
Ninguém tinha
Posto reparo assim que eu tenho
tido.
Já tinha eu reparado em minha
vinha,
Que a bondade é rebento mal
nascido,
Que a lhaneza é uma droga que se
vinha,
Que se torna em vinagre mal
curtido.
Neste século repleto de ambição,
Cheio de indesejosos e cretinos
Fechemos o capítulo da razão!
Fechemos o capítulo da Virtude!
Este século presente, meus
meninos,
Inda ilude a vocês mas não me
ilude.
(A Pacotilha, Maranhão,
24.3.1920).
SONETO
Sóis que andam a rondar as
infinitas
Zonas infinitíssimas, astrais,
Castiguem, astros do bem, os
animais
Que andam compondo legiões
malditas.
Ah! Ser humano – és mísero
demais...
Nasces cantando os hinos das
desditas,
Morres sentindo n’alma átras
vinditas
Que Deus concede aos pálidos
mortais.
A lei de Jeová deu p’ra ser lida,
Perturba a humanidade pela dor,
E é mais ou menos isto –infame
sorte!
1º art. – a luz saudando a vida!
2º art. – o mal sagrando o amor!
§ § finais – sombras de morte.
(A Pacotilha,
Maranhão, 2.10.1914).
ESPERANÇAS
Batem à porta rude das Chimeras,
Em breve, as Esperanças
foragidas!
E dos Sonhos sonhados noutras
eras,
Resta o cortejo de ilusões
vencidas.
Hão de findar p’ra sempre as
Primaveras...
E o tempo a evoluir, em
arremetidas,
Há de trazer-nos úmidas
Taperas...
E esperanças revivem noutras
vidas!
Em fuga as ilusões que
alimentamos...
E o nosso Amor em fuga, porque
andamos
Comboiando fatais
desesperanças...
E neste rumo, aos trambolhões e
aos trancos,
Vamos em busca dos cabelos
brancos,
Para esquecer as mortas
Esperanças...
(O Pharol, Cuiabá,
29.5.1909).
(O presente texto foi publicado
inicialmente nos jornais Notícias Acadêmicas, Setembro/2010 e Meio Norte,
29.10.2010. Foi ampliado pelo autor).
______________________
(*) REGINALDO MIRANDA, autor de
diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do
Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina
da OAB-PI. Atual presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do
Piauí Contato: reginaldomiranda2005@ig.com.br
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