Recebi, na sede da Academia Piauiense de Letras, a obra O Arraial de Paris, devidamente autografada por seu autor, Vicente Miranda, meu
amigo e conhecido há duas décadas.
Já lhe havia lido o volumoso livro Três Séculos de Caminhada,
que é um misto muito bem feito e muito bem arrumado de sociologia,
antropologia, história, geografia e genealogia da Serra da Ibiapaba e de parte
do Piauí; ou seja, do território por onde se espalhou grande parte dos entrelaçamentos
familiares do autor. Sobre ele escrevi uma espécie de crônica ensaística que se
encontra publicada na internet.
Arraial de Paris foi o nome dado ao local onde se amontoavam
homens, mulheres, velhos, adolescentes e crianças, os chamados retirantes, na
verdade fugitivos da seca de 1877/1879, que grassou na caatinga cearense e em
boa parte da Ibiapaba. Segundo Vicente Miranda, o nome Arraial de Paris para
designar essa espécie de primeiro campo de concentração foi posto por um
erudito da Vila Viçosa Real. Suponho que o “erudito” fosse na verdade um sarcasta
ou ironista, para com essa denominação, que remete a uma urbe elegante e
refinada, batizar um gueto de sofrimento e humilhação. E Miranda lhe pôs esse
rótulo também por simples ironia.
Vicente Miranda em estilo elegante, fluido, contudo sempre
revestido de clareza, objetividade e concisão, desnuda os sofrimentos e mazelas
que permeavam essa concentração humana, onde, quase sempre, imperavam a fome, o
alcoolismo e mesmo a prostituição, esta como forma de a mulher amealhar algum
dinheiro para se sustentar, bem como a seus familiares – pais, irmãos, filhos e, às
vezes, o próprio marido.
O Arraial foi a forma encontrada para que esse cortejo de
miseráveis não ficassem incomodando as famílias tradicionais e mais bem
aquinhoadas da bela Viçosa, seja através da mendicância ou mesmo de eventuais
furtos. Como a Comissão de Socorro Público da vila não tinha condição de suprir
com eficácia as necessidades dos flagelados da seca, os homens passaram a
derrubar as palmeiras da cercania, em busca sobretudo do palmito e das
amêndoas, para mitigar a fome da família.
Sobre o notável livro de Vicente, disse Sarah Miranda:
“O Arraial de Paris não é mais um
livro sobre seca no Nordeste. É uma reflexão endógena e documental sobre o
comportamento humano, suas potencialidades e suas fraquezas, seus limites e
crueldades, até se desnudar por inteiro e descobrir de que matéria é feito, de
como é possível sofrer e cantar ao mesmo tempo no sertão.
Nessa obra comprometida com a verdade
real, retira-se o véu da ilusão sobre o papel estatal nas Comissões de Socorros
Públicos nos tempos de ‘seca social’ e ‘Justiça’ diante de conflitos em tempos
em que o retirante, se não morre de fome, encontra a morte na intolerância
entre as famílias rivais.”
Para escrever esse livro, o autor, sempre comprometido com a
verdade, que deve ser o desiderato maior de qualquer historiador, além de ter
entrevistado parentes idosos, que conheciam a crônica oral e familiar dessa
terrível seca, tendo tido acesso a alguns apontamentos escritos, consultou
inúmeros documentos, fazendo, sem dúvida, o necessário cotejo e
contextualização, inclusive com o que se encontra nos livros e jornais da
época.
Fez um verdadeiro painel ou mural dessa tragédia climática,
que ciclicamente ainda castiga o sertão do Ceará, embora hoje haja novas
maneiras de se conviver ou de se mitigar o problema, através de novos manejos
de solo, de equipamentos e insumos modernos, com a construção de açudes,
barragens e aguadas, e também com a engenharia genética, na tentativa de se
produzir plantas mais adequadas às caatingas e chapadões. Não se podendo mudar
o clima, tenta-se transformar a convivência e a cultura, mediante o emprego de
novos conhecimentos e tecnologias.
Para tornar mais atraente e melhor condimentada a saga e a via
crúcis dos míseros retirantes, que pretendiam ter em Viçosa apenas o ponto de
apoio para o descanso e a recuperação de suas forças para a continuação de seu
percurso ao destino final, que era o Maranhão ou uma das cidades piauienses à
beira do Parnaíba, entre elas União, Miranda relatou as vicissitudes de uma
adoção e a chamada Tragédia da Tabatinga.
Sem almejar fazer um spoiler, traço uma apertada síntese da
adoção. Uma família, depois de sofrer todas as misérias que a fome pode
acarretar, até mesmo a prostituição, cedeu um menino para ser criado por uma
família próspera, até que tivesse condição financeira para vir buscá-lo. Na
luta de uma das irmãs para reaver o garoto “adotado” pelo fazendeiro Albino da
Costa Portella, o autor do livro constatou a correção do juiz do feito,
ajuizado em Barras. O magistrado se chamava Estêvão Lopes Castelo Branco, que
já naquela época, quando a necessidade de fundamentação não era muito observada
e exigida, pelo menos com o devido rigor, justificava bem as suas decisões.
Pela coincidência de nome, pelas datas e pelo tipo e local da
função exercida, eu o identifico como sendo Estêvão Lopes Castelo Branco
Sobrinho, nascido na célebre Fazenda Ininga, em José de Freitas, formado em
Direito no Recife, e irmão do patriota e benemérito Pacífico Castelo Branco,
herói da Guerra do Paraguai e comandante por três anos dos Voluntários da
Pátria oriundos do Piauí. Estêvão foi um dos fundadores e primeiro presidente
da Sociedade Abolicionista e Libertadora Barrense, que teve o primeiro hino
composto em terras piauienses.
Também o livro, como anunciado acima, narra a Tragédia da
Tabatinga, com muito colorido, movimento e detalhes, quase como se fora um
romance, mas baseado em documentos e na verdade histórica, que a tradição não
esqueceu, conquanto lhe possa ter dado algumas pinceladas de quase lenda. Busca
os antecedentes e a causa da inimizade antiga entre o major Inácio José
Correia, o Macaxeira, e o índio/mameluco Francisco Gonçalves da Costa, o
Juriti.
Com a sua reconhecida imparcialidade e rigor histórico,
Vicente Miranda compulsou com vagar e atenção todo o processo investigativo e
judicial em que os fatos foram apurados e levados a julgamento. O certo é que,
em resumo, Juriti e seus familiares indígenas trucidaram quase toda a família
do major Inácio e seus apaniguados, muitos dos quais lhe formavam uma espécie
de força armada particular. O episódio, pela sanguinolência e dimensão que teve,
bem se prestaria a um roteiro de filme de “faroeste” ou bangue-bangue nordestino, cuja
luta, com incêndios, explosões de líquidos inflamáveis, tiros, bordoadas e
facadas, teve como cenário o espinhaço da Ibiapaba, nas proximidades da então
Vila de Viçosa Real.
A obra, um legítimo estudo sociológico e histórico do flagelo
da seca de 1877/1879, que registra o esforço do governo imperial e provincial
em atenuar a miséria que assolava o sertão cearense, sobretudo com o repasse de
alimentos e a construção de edifícios e ferrovias, também se reveste de beleza
literária ao narrar as tragédias particulares e a miséria moral de alguns
homens públicos, que tiravam proveito da chamada “seca social”, seja desviando
recursos e produtos alimentícios ou satisfazendo a libido.
Desnecessário dizer que o esforço governamental ficou longe
de solucionar as necessidades mínimas dos ditos esmolambados, que sofriam no
confinamento do Arraial de Paris e nas ermas veredas das calcinadas caatingas e
chapadões, onde apenas se viam as cores sépia e cinza, com exceção do raro
verde das frondes dos juazeiros e dos espinhentos xiquexiques e macambiras,
que lhes acenavam, talvez, um pouco de esperança.
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