quinta-feira, 30 de abril de 2020

DIÁRIO - 30/04/2020

Henry Drummond - Fonte Google


DIÁRIO
[O dom supremo]

Elmar Carvalho

30/04/2020

            Estava lendo ontem O Dom Supremo, que é o título como ficou conhecido célebre sermão, fundamentado na carta de São Paulo aos Coríntios, proferido por Henry Drummond, em formato virtual da Amazon/Kindle, com tradução e prefácio de Paulo Coelho, quando fui abordado pela Fátima sobre um assunto relativo a preconceito e intolerância.

Lembrei-me, então, de uma conversa que tive, faz quase vinte anos, dentro de um velho e empoeirado ônibus, alta noite, com o magistrado João Batista Rios, quando seguíamos para as nossas remotas Comarcas, ele, a de Bertolínia, eu, a de Ribeiro Gonçalves, ainda mais distante. Na época eu tinha dúvida sobre o que seria mais importante, se a caridade, se o amor.

Muitos entendiam que a caridade seria superior, porque era revestida, digamos, de uma “ação prática”, concreta, ao passo que o amor seria um “mero” sentimento, sem efetividade nenhuma. Hoje, fundamentado na epístola I Coríntios, de São Paulo, e no sermão O Dom Supremo, de Henry Drummond já não tenho dúvida nenhuma.

Aliás, a bem da verdade, desde essa conversa com o amigo Batista Rios passei a não ter mais essa dúvida, pois passei a entender que o amor, o amor verdadeiro, leva uma pessoa aos gestos largos e generosos, aos grandes sentimentos, que ele parece amalgamar, e que impulsionam o ser humano a cometer boas ações e a ter bons comportamentos, inclusive os da generosidade, da gentileza e da humildade.   
  
No prefácio, colho a informação de que quem iria falar era o mais famoso pregador da época, que no momento se sentiu esvaziado, sem inspiração para o mister. Ele, ato contínuo, pediu a um jovem missionário que o substituísse, o que provocou, sem dúvida, uma forte frustração na assistência, que se preparara para ouvir o maior orador sacro de então.

Henry Drummond, o jovem e inexperiente missionário, que regressara da África há pouco tempo, e que ainda buscava definir a sua verdadeira vocação, sem dúvida tocado pelo Espírito Santo, produziu de improviso um dos mais magníficos sermões de todos os tempos, ainda mais admirável por ser claro e belo, embora profundo em sua análise do amor, o dom supremo ou summum bonum.

Em seu notável sermão, Henry Drummond afirma que “O amor é a regra que resume todas as outras regras”, e que é o “mandamento que justifica todos os outros mandamentos”. Explica que o amor é composto de nove ingredientes: paciência, bondade, generosidade, humildade, delicadeza, entrega, tolerância, inocência e sinceridade. Justifica todos esses componentes com citações do texto de S. Paulo.

Com relação à tolerância, transcreve que o amor “não se exaspera”. Considera a intolerância como uma “verdadeira falha de caráter”, e não como um pecado inerente à natureza humana, que dificilmente poderíamos corrigir, e acrescenta que a Bíblia, em várias outras passagens, coloca a intolerância “como o elemento mais destruidor da nossa maneira de agir”, para em seguida afirmar:

“O que mais impressiona é que a intolerância, o preconceito, está sempre presente na vida de pessoas que se julgam virtuosas. Geralmente é a grande mancha numa personalidade que tinha tudo para ser gentil e nobre.”

Consta que Henry Drummond, ao ser designado de forma inesperada para fazer a sua prédica, “pediu emprestada a Bíblia de um dos presentes e leu um trecho da carta de São Paulo aos Coríntios”. Julgo de bom alvitre, para reflexão e como um arremate a este registro, transcrever os dois versículos iniciais do trecho que ele leu, e que lhe serviu de mote para a glosa genial do famoso sermão:

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. [1 Coríntios 13:1,2]”  

quarta-feira, 29 de abril de 2020

O RITMO “SALIENTE” DA REPÚBLICA




O RITMO “SALIENTE” DA REPÚBLICA

Valério Chaves
Des. Inativo do TJPI

 

                Nestes tempos de crise econômico, crise política, corrupção, violência, pandemia, identidade de gênero, orientação sexual, preconceitos e tantos outros males sociais que assolam o nosso país, ninguém ousa entender a importância da música popular brasileira, especialmente o samba, como um instrumento privilegiado no campo da investigação enquanto produto de exportação e protagonista da história social em nosso país.

                O professor e pesquisador Maurício Barros de Castro, autor do livro “Nos Quintais do Samba da Grande Madureira” (Editora Olhares, 2016) afirma que “a discriminação racial permanece na sociedade brasileira, e não há como o samba, referência de uma cultura africana escapar desse preconceito”

                O mesmo pesquisador não concorda que o samba seja um reflexo da história social do Brasil, mas sim um construtor dessa história e um de seus protagonistas.

                 No final do século IX e começo do século XX, a escalada do samba enfrentou forte preconceito, mesmo sabendo-se que o ritmo da batucada, do pagode, do maxixe e outras ostentações, é oriundo de várias manifestações culturais africanas trazidas ao Brasil pelos escravos.

                Nesse contexto, vale lembrar um episódio bastante conhecido entre os estudiosos e historiadores da música ocorrido na noite do dia 26 de outubro de 1914 que causou espanto na elite política mais conservadora do Rio de Janeiro – a “Noite do Corta-Jaca” - música de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Machado Careca, ambos reconhecidos pelo abrasileiramento da música popular durante a Primeira República (1989-1930).

                                Francisca Edwiges Neves Gonzaga (Chiquinha Gonzaga), para quem não lembra, foi a primeira mulher a receber o título de maestrina e responsável pela definição da identidade musical em nosso país, numa época em que as mulheres que ousavam se meter no meio artístico musical eram vistas com desconfiança e discriminação.

                Há de se perguntar: por que a música “Corta-jaca” causou tanto constrangimento na elite carioca de então.

                Vejamos o que contam a respeito alguns historiadores sobre a música e dança exibidas nos salões do Palácio do Catete (residência oficial do presidente da república, no Rio de Janeiro):

- A primeira-dama do país, Dona Nair de Teffé, celebrando o quatriênio de seu marido, marechal Hermes da Fonseca na presidência do Brasil, resolveu animar os espíritos ilustres e oficiais de seus convidados com uma programação musical um tanto inusitada para a ocasião, isto porque incluiu no repertório a música “Corta-jaca” executada por ela própria no violão, acompanhada por seu amigo e professor de violão Catulo da Paixão Cearense. O fato causou grande alvoroço e revolta nos meios sociais, inclusive do então senador Rui Barbosa (derrotado por Hermes da Fonseca nas eleições presidenciais), que da tribuna do Senado, fez discurso inflamado, afirmando que “a execução do Corta-jaca, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba, foi ultrajante porque contaminou em um único evento vários graus de profanação simbólica, contradizendo um ambiente propriamente oficial, cerimonioso e burocrático”.

 O jornal A Rua, por sua vez, em seu editorial do dia 6 de novembro de 1914, destacou o seguinte: “O Catete deve ser um lugar de respeito. Lá dentro não podem caber os requebros lascivos de uma música do quilate do “Corta-jaca”. “Se o Sr. Marechal Hermes , na sua residência particular, no seio de sua intimidade, entre os amigos mais íntimos, tivesse agarrado o violão e tocado o Corta-jaca ou outra música mais imoral, nós não tínhamos nada com isso. Mas como S. Exa. faz esta coisa, em presença do corpo diplomático, no Palácio do Catete, que é a residência, não do Sr. Hermes, mas do primeiro magistrado da Nação, assiste-nos o direito de fazer considerações a respeito do papel ridículo a que S. Exa. sujeitou não à sua pessoinha, mas a figura do presidente ad República”.

                A dança Corta-jaca, além dos passos buliçosos e do requebro sensual do ritmo “saliente”, os versos ou hipérboles usados na composição de Chiquinha Gonzaga eram, em síntese, uma espécie de sátira política e social aos costumes e a situação econômica do país no final do século IX e começo do século XX, como se extrai da primeira estrofe:

                Neste mundo de misérias
                Quem impera
                É quem é mais folgazão
                É quem sabe cortar jaca
                Nos requebros
                De suprema perfeição

                Esta não foi a primeira vez que a dança e o “sotaque” popular se insinuaram na prosódia da elite política do Rio de Janeiro. Publicações da época revelam que em maio do mesmo ano de 1914, o casal presidencial recebeu, no Palácio do Governo, o compositor e poeta Catulo da Paixão Cearense para um sarau no qual estavam presentes nomes de destaque nas cúpulas políticas e artística da República, como José Gomes Pinheiro e Oscar Guanabarino.

                É o que informa o historiador Rafael Nascimento em artigo de sua autoria publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (nº 67, ps. 38-56) onde diz que “por volta de 1906 quando o marechal Hermes da Fonseca era ministro da Guerra fez sua revolta contra o “subversivo” maxixe – primeira dança urbana do Rio de Janeiro, que fazia os pares dançarem bem coladinhos, praticamente namorando, deixando muito vovôs e titias de olhos arregalados”.

                Cumpre-me salientar, por fim, que o objetivo dessas informações pesquisadas e extraidas de fontes culturais merecedoras de crédito, foi simplesmente mostrar que a nossa música popular é uma arte intimamente ligada à realidade histórica brasileira, e está baseada num legado imenso de referências herdadas principalmente dos povos europeus, africanos e indígenas - hoje infelizmente rotulados com uma variedade de estilos.

                Porém, o principal legado, por certo, foi a abertura do pensamento cultural e aos valores patrióticos da nacionalidade - virtudes pouco sentidas pelo jurista e político baiano Rui Barbosa, - (Oráculo do Civilismo)  quando em momento de pouca inspiração intelectual, e talvez sob a máscara de crítico musical, pretendeu associar gosto e gênero musical com valores morais quando afirmou que a música “Corta-jaca” apresentada no Palácio do Catete era: “a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”.

                A esses termos grosseiros utilizados por Rui, a caricaturista Nair de Teffé reagiu, ao seu estilo, sarcasticamente, publicando uma caricatura do então senador Rui Barbosa, colocando abaixo o seguinte comentário:

                “As pedras que ele me atirou não me atingiram. Elas dormem esquecidas no fundo do mar ou na terra e só serviram para assinalar a luta que enfrentei contra os preconceitos de então” (Livro de Nair de Teffé da Fonseca. A verdade sobre a Revolução de 1922, Rio de Janeiro, 1974, p.45) (ref. Website: www.riodejaneiro.aqui.com).   

NEM ELES NEM NÓS SOMOS DEFENSÁVEIS




NEM ELES NEM NÓS SOMOS DEFENSÁVEIS

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)    

                Gostaria de que este texto pudesse ser uma razoável tentativa de defesa dos homens públicos que nos governam e representam nos parlamentos, contra ataques vindos dos mais diferentes lados, atingindo-os nos mais diversos flancos. Desde já, considero ingrata a missão a que me proponho. Ao longo do arrazoado, vou me servir de dois exemplos de situações, vivenciadas nestes dias atribulados pelo coronavírus, e que me induziram ao tema.

                Para começar, um episódio ocorrido um pouco antes da decretação de isolamento da população, envolvendo os governos brasileiro e americano em uma pretensa aquisição de máscaras oriundas da China, em que os ianques levaram a melhor. Pelo que se discutiu, após o acontecido, parece que não houve nenhuma irregularidade naquela negociação. Tudo indica que nossa burocracia foi o grande empecilho a um desfecho favorável a nós. Segundo se soube – diplomata americano quase confirmou essa versão -, o  procedimento licitatório empreendido para a aquisição dos equipamentos já havia indicado o fornecedor vencedor, mas não se concluíra até a data em que os Estados Unidos ficaram com o material; certamente, ou não se autorizou a emissão do empenho, ou o processo sofreu algum tipo de contestação por parte dos concorrentes, o que levou o  caso a uma possível análise posterior;  fato é que essa solução temporária de continuidade - enquanto os documentos não se tinham lavrado conforme exigiam os trâmites burocráticos -, permitiu que viesse um comprador menos prolixo e mais prático, fizesse uma contraproposta à fornecedora chinesa e levasse o que achávamos que já nos pertencia.

                Pouco tempo depois de esse imbróglio, graças a uma brecha legal, governos decretaram estado de urgência ou de calamidade pública nas suas plagas, o que lhes facultaria a dispensa de licitação para aquisição de produtos, mercadorias, materiais e a contratação de serviços inseridos no objeto da norma legal. Imaginariam os senhores que essa tomada de decisão político-administrativa, redutora da burocracia formal e oficial, respaldada em legislação vigorosa e rigorosa, teria recebido a aceitação e a compreensão da população beneficiada por suas consequências?

                Dela, talvez sim, mas não de parlamentares adversários, críticos do quanto pior, melhor; pseudoformadores de opinião, especialistas em tudo, que aproveitaram a deixa para desancar governos que se mostrassem favoráveis à adoção da medida legal. De um lado, atacavam uns acusando governante tal de se valer da falta de licitação para facilitar ou alavancar negócios com gente caseira, empresários camaradas; de outro, políticos ostracistas, adversários temporários, oportunistas, maria vai com as outras, sugeriam, nem tão subliminarmente que, com fiscalização precária ou mesmo sem, a aquisição de produtos de difícil prestação de contas, como os descartáveis, deterioráveis ou de rápido consumo, seria um prato cheio de oportunidades de que muitos gestores públicos poderiam se valer para salvar a colheita; lavar a burra.

                Todavia, considerando esses dois aspectos, aparentemente dicotômicos entre si: excesso de burocracia, provocado por infindáveis meandros administrativos, de fiscalização e controle legais, que, não raro, faz com que bons negócios se percam e mal feitos se façam; e relaxamento nos procedimentos licitatórios, propiciado por estados de urgência ou de calamidade pública, cuja finalidade seria facilitar a aquisição de bens e serviços em tempo de crise; ainda assim, restariam ineficientes como instrumentos de defesa de certos gestores, pois insuficientes para aferir ou distinguir ações de governo ou políticas e atos de boa vontade pública, de condições indutoras ao desvio de finalidade, facilitadores de maracutaias políticas. É que, de tão desacreditados, hoje, governantes e parlamentares, por mais que tentem fazer, por melhores intenções que pareçam ter, não conseguem se tornar críveis, nem perante aqueles para os quais, enquanto espécies, eles sempre serão cidadãos inconfiáveis, muito menos junto aos que têm como melhor e mais produtiva atividade política a crítica, nem sempre responsável, como são as feitas, não a partir de fatos comprovados, mas de especulações, suposições, inverdades.

                Enfim, confesso-lhes: não logrei construir uma boa defesa dos governantes e parlamentares que temos - mesmo achando que, como nos casos acima citados, certa credibilidade alguns merecem, como a desmerecem críticos detratores -, mas creio que consegui entender porque, apesar de criticados e desacreditados, pleito após pleito, lá estão eles, buscando manter ou conquistar o poder: senão é pelos vencimentos que percebem ao longo dos mandatos, pois, até o mais bronco indivíduo sabe que são muito menores do que os custos das campanhas que enfrentam; nem por se sentirem imprescindíveis, bastiões últimos do bom serviço público; claro, deve ser pelo prazer que antegozam a cada nova eleição sabendo que os que os criticaram até ali os reconduzirão aos palácios governamentais e parlamentares; e, só para que tudo permaneça como dantes, em um quase eterno círculo vicioso, serão, também eles, os mesmos que continuarão criticando-os, espezinhando-os, demagógica e, por que não, hipocritamente. Ou seja, eles e nós somos indefensáveis.   

A HISTÓRIA DE CHICO MAROCA

Foto do dia do lançamento - O autor é o quinto da esquerda para a direita


A HISTÓRIA DE CHICO MAROCA

José Pedro Araújo
Romancista, contista e cronista

No começo deste fatídico ano de 2020 – fatídico por nos ter brindado com a peste do tal Convid 19. Quanto ao resto, nada a reclamar - fui surpreendido por uma ligação do meu grande amigo Chico Acoram, entusiasta colaborador do nosso pequenino Blog Folhas Avulsas. Passava a mim, neste telefonema, a notícia de que estava preparando um livreto com a história de seu pai. Até aí, a notícia não nos trazia nada de fantástica, pois já esperávamos algo assim desde que o autor do contato havia me dito que gostaria de enfeixar em um livro suas crônicas publicadas no blog. A surpresa veio quando ele me disse que contaria a história da vida do seu pai em versos. Confesso ter ficado preocupado, uma vez que o bravo amigo estava se dedicando há muito pouco tempo à laboriosa forma de escrever nesse formato; e posto conhecer apenas trabalhos seus no campo das crônicas já mencionadas. Duvidar, contudo, nunca duvidei, de que ele preparava algo com muito cuidado e, se é possível dizer, com extremo “asseio literário”. Passei, então, a aguardar algo que deveria surgir – pensei - na segunda metade do ano, se muito rápido o Chico Carlos andasse.

Mas eis que me veio a segunda surpresa. Dias depois deste episódio que narrei da sua ligação telefônica, eis que recebo nova chamada dele com a afirmação de que o lançamento do livro já tinha data marcada. E me enviou por meio do WhatsApp, fotos da capa do livro já impresso. Estávamos no começo de fevereiro, portanto, não muitos dias após a sua primeira notícia de que estava trabalhando na história versificada do seu adorável pai.

Nesta última ligação, ele me convidava para o lançamento do livro e marcava a data do dia 13/02. Tudo assim, rápido e açodado, não muito dentro dos padrões do meu amigo, que pensa e repensa antes de fazer qualquer coisa, sobretudo quando o que que planeja se reveste de muita importância. Estava a me deparar com o novo Francisco Carlos Araújo que eu não conhecia, e que atacava de poeta popular. Digo novo, porque o que eu conhecia era meio preguiçoso, literariamente falando, precisava mesmo de uns empurrões para me enviar algo para publicar no blog. Agora, surgia esse, operoso, diligente, nervoso mesmo, no bom sentido da expectativa pela chegada do novo acontecimento que pretendia iminente.

Fui ao seu encontro no dia aprazado. Feliz com a oportunidade de participar do lançamento do primeiro livro do meu amigo dileto, dirigi-me à Livraria Entrelivros, espaço literário que tem se notabilizado por abrigar e organizar grandes eventos desse tipo em uma terra em que se dá pouca ênfase ao mister dos morejadores dessa seara. Deparei-me lá com um seleto grupo composto por alguns dos grandes escritores da terra mafrense, além de uns poucos amigos seus de trabalho.

Lançamento festivo dos mais animados, sem a sisudez de outros tantos por mim assistidos, o evento primava pela organização e pela animação. Contudo, animação, animação, mesmo, era a do pai da criança, digo, do autor que mostrava naquele momento a bela cria que apresentava ao mundo da narrativa escrita. Normalmente uma pessoa feliz, sorridente, o autor extravasava aquela alegria pouco contida dos pais de primeiro rebento, o que me fez lembrar da crônica de Josué Montello escrita na sua coluna no Jornal do Brasil, em que, ao relembrar o lançamento do seu primeiro livro Janelas Fechadas,  dizia que “um mestre português, Afonso Lopes Vieira, chamava de sensualidade gráfica do escritor – do prazer efusivo de quem gosta de apertar contra o peito um menino bonito e rechonchudo”.  Assim estava o nosso autor a acariciar com desvelo de pai extremoso a sua criação que vinha à luz naquela tarde.

E o que dizer da obra? Mesmo sem o conhecimento de um crítico literário, não tenho receios ao afirmar que se trata de obra rebuscada, uma criação à altura dos experientes cordelistas que tive o prazer de ler durante todos esses anos em que me debrucei neste ramo literário eminentemente nordestino. Autores como o grande Leandro Gomes de Barros, respeitado por muitos como o principal nome da arte cordelista, fizeram parte da minha apreciação. Chico Carlos produziu uma epopeia narrativa em estrofes que emociona ao mais duro dos seres humanos com a história, às vezes tristes, às vezes vitoriosa, do homenageado Francisco Maroca, que vem a ser o pai do artista.

Algumas das passagens descritas de forma quase romanesca pelo autor, eu já as conhecia de ouvir da sua própria boca. Contudo, sem o sentimento e o lirismo com que estava sendo contada agora em versos. As perseguições sofridas, as armadilhas urdidas por adversários inescrupulosos, ou mesmo as rasteiras tomadas da própria vida, só não foram maiores do que as vitórias alcançadas, os pontapés certeiros nos fundilhos da imoralidade ética, ou as alegrias desfrutadas ao conseguir elevar ao promontório da segurança a sua prolífica família. Para depois presenciá-la fora, portanto, do alcance dos espertalhões ou dos obtusos senhores feudais vestidos em trapos em vez das brilhantes indumentárias de cavaleiros medievais.

Imagino com que sentimento o seu livro de estreia deve ter sido lido por aqueles personagens que também compõe a história da vida do Chico Maroca. Imagino ainda, terem vertido, se não rios, pelo menos córregos de lágrimas, iguais em volume ao decantado Riachinho, quiçá ao Marataoan das suas lembranças diárias. Imagino, por fim, que o autor deve ter molhado com suas próprias lágrimas o teclado do seu computador no momento em que ia desfiando suas mais tristes lembranças de um período de sofrimento extremo, vivido nas duas cidades que ambientam a saga do mestre da vida, Chico Maroca. E até mesmo desatado o riso farto ao versificar suas passagens vitoriosas e seus dribles fantásticos aplicados nas dificuldades do cotidiano.

Lá se vão trinta anos desde que nos conhecemos, apresentados que fomos pelo nosso querido e saudoso amigo Dr. Rômulo, engenheiro agrônomo dos mais talentosos que conheci, um poliglota consumado que tinha na leitura um dos seus, talvez únicos, passatempos. Desde então, a nossa amizade só cresceu e se encorpou. Lá se vão também os dias em que o autor só se debruçava sobre números e planilhas financeiras, por conta da sua própria profissão de Contador. De lá para cá, veio-lhe a fase das grandes leituras, da troca de carinho com as brochuras, do aspirar o cheiro da tinta fresca das publicações literárias. Para, somente então, descobrir que poderia se tornar também, além de leitor compulsivo, um cidadão lido.  E então passou a escrever as suas crônicas que logo passaram a chamar a atenção dos apreciadores da boa escrita e dos bons assuntos.

As duzentas e vinte uma estrofes que compõe a História de Chico Maroca são, portanto, o momento maior de afirmação do cultor das letras que se transformou em um beletrista refinado. É o que se pode deduzir ao chegarmos à contracapa do seu livro de estreia. Ficamos ansiando por mais, meu caro amigo! E que não tarde muito.  

terça-feira, 28 de abril de 2020

DIÁRIO - 28/04/2020

Elmar, em foto do dia 09/04/1994
Rosa dos ventos gerais - 3ª edição


Rosa dos ventos gerais - 2ª edição


DIÁRIO
[Acerca da Autoentrevista]

Elmar Carvalho

28/04/2020

            Postei em sítios internéticos, no dia 24, meu texto titulado Autoentrevista, originalmente publicado na segunda edição de Rosa dos Ventos Gerais, ocorrida em 2002, com projeto editorial meu e do Sebastião Amorim. Na folha de abertura da entrevista há uma foto minha, do dia 9 de abril de 1994, data em que eu completava exatamente 38 anos de idade e tomava posse de minha cadeira na Academia Parnaibana de Letras. O Amorim fez uma montagem, um tanto difusa e com inversão de ângulos, em que aparento olhar de soslaio para mim mesmo, em analogia ao título – Autoentrevista.

            Uma pessoa ingênua ou de más intensões poderia achar que nele se encontra traçado o meu perfil espiritual e/ou psicológico. Nada disso. Como na pequena nota fiz questão de esclarecer, trata-se de uma entrevista simulada, com perguntas formuladas por mim mesmo, e cujas respostas são montagens de versos de minha autoria, alguns com pequenas adaptações e alinhavos, produzidos em diferentes momentos e situações de minha vida.

            Em Lira dos Cinqüentanos (2006), além das epígrafes que pus em Rosa dos Ventos Gerais, acrescentei esta indagação, de Cícero: “Se tantos varões eminentes tiveram o zelo de deixar estátuas e efígies, representação não de seu espírito, mas de seu corpo, não é muito mais de nosso dever deixar o retrato de nossas decisões e méritos, num desenho acabado dos maiores gênios?”

            Contudo, enfatizo, a Autoentrevista não é um retrato de minhas decisões e méritos, e muito menos é o meu perfil psicológico ou espiritual, conforme já disse. Assim, as respostas não são necessariamente sinceras, e talvez sequer reflitam uma verdade do meu estado de espírito, nem ao menos no instante em que escrevi os versos que as compõem. E isso se ajusta ao que disse genialmente Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

            Certa vez, questionado sobre o fato de ser juiz e poeta, e, sobretudo, se o poeta não seria prejudicial à minha função judicante, repeli a insinuação maldosa em tom enfático, parafraseando o mesmo Pessoa: sou poeta, mas sou poeta só dentro da poesia, fora disto sou um técnico, com todo direito a sê-lo. Transcrevo o que disse o grande poeta português: “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. / Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.”

Não satisfeito, o bardo ainda repetiu: “Com todo o direito a sê-lo, ouviram?” Não repetirei e tampouco enfatizarei. Apenas direi que a voz lírica pode dizer o que bem quiser, sem que isso represente a verdade ou a realidade do autor, embora, claro, também possa haver coincidência ou mesmo o poeta queira fazer o seu desabafo pessoal, e estampe em versos o que lhe vai no mais íntimo de sua alma; mas não obrigatoriamente, repito.

Tirando injustas ilações da autoentrevista, alguém poderia achar que em algumas respostas eu tenha sido narcisista, ególatra, vaidoso ou mesmo arrogante. Todavia, como já expliquei, ali está apenas o chamado “eu lírico” de já ultrapassados momentos de minha poesia  e de minha vida. Entretanto, afirmo que, num paroxismo ou mesmo num paradoxo, o poeta poderia fingir não ser o que de fato é, ou fingir ser o que efetivamente não é. Em resumo: Fernando Pessoa está certo; o poeta é um fingidor.

Voltando ao início do parágrafo anterior, direi que é pura burrice alguém desejar ser um Narciso ou um ególatra, porquanto todo mundo detesta esse tipo de pessoa, que logo passa a desfrutar da antipatia geral. Todavia uma dose “homeopática” de vaidade pode ser útil e benéfica, porquanto a vaidade pode fazer com que uma pessoa faça tudo da melhor maneira possível, para merecer o aplauso e a admiração dos contemporâneos e dos pósteros.

Mas a vaidade deve ser contida, não deve aflorar, pois as pessoas, em geral, antipatizam com os vaidosos, e ainda mais com os arrogantes e presunçosos. Da mesma forma, se a humildade for excessiva e ostensiva, deixará de sê-lo, uma vez que a humildade é uma das mais sublimes virtudes, e, portanto, deverá ser discreta, quase invisível, para ser realmente humildade.   

Por conseguinte, insisto em dizer que a minha Autoentrevista foi apenas uma brincadeira, do tempo em que terminava a minha juventude, e eu percorria o início do platô de minha maturidade, antes do inevitável declínio. Foi apenas um ludismo, um “iludismo”, um mero jogo floral de palavras e nada mais, feito num tempo em que eu talvez ainda alimentasse migalhas de algum sonho de glória, que não aconteceu, e que de resto pouco acontece na esfera da literatura.

Faço, portanto, a seguinte advertência ao leitor, usando os belos versos de Jorge de Lima: “Não procureis qualquer nexo naquilo / que os poetas pronunciam acordados / pois eles vivem no âmbito intranquilo / em que se agitam seres ignorados.”  

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Coronéis e camaleões



Antiga igreja de Barras, demolida em 1963


Coronéis e camaleões

Manoel Hygino dos Santos

                Dílson Lages Monteiro multiplica-se por quatro para seu projeto de vida: como poeta, cronista, professor e editor. Desde 2002, mantém o Portal Entretextos, para reunir autores de prestígio nas letras do Brasil e Portugal.

De dois em dois anos, publicou poesia: "Mais hum', "Colmeia de concreto", "Os olhos do silêncio", "O sabor dos sentidos", em 1995, 1997, 1999 e 2001, respectivamente, para, em 2009, apresentar o seu "Adiante dos olhos suspensos".

Professor há praticamente 20 anos, editou o livro didático "Texto argumentativo - teoria e prática", o ensaio "A metáfora em textos argumentativos" e "Entretextos - artigos e entrevistas". Pelo que aqui se informa, constata-se ser Dílson Lages Monteiro um devotado cultor da literatura e da língua pátria.

Agora ele se dispôs a ingressar num campo novo: o romance, e assim apareceu "O morro da casa-grande", 2009, pela Nova Aliança, de Teresina. Porque o autor é do Piauí e, ao entrar novo gênero, decidiu prestar homenagem tolstoiana à sua cidade natal - Barras.

No pequeno volume, bem elaborado, quase uma extensa crônica de uma cidade que se deixa envolver pelo fascínio do progresso, esquecendo velhas tradições e procurando, com sua população, um novo lugar ao sol do desenvolvimento.

Com esse propósito e diante da indesviável destinação, vê ruir costumes e construções, e entre estas a igreja de Nossa Senhora da Conceição das Barras, no morro da casa-grande.

É um trabalho interessante, a que não faltam vocábulos praticamente não usados no Sudeste e no Sul, expressões bem próprias do interior piauiense. Mas um texto agradável, com uma narrativa que faz sentido e tem propósitos claros, entre os quais o de proteger tanto quanto possível o legado das velhas gerações.

Primeiro, perdeu-se o cemitério "onde uma geração inteira se fechava, uma geração apagava o tempo. A filha Perpétua partiu primeiro. Antes dela, os dois netos: um, quase anjinho, de doença feia; outro, rapazote feito, de desastre".

Os personagens são típicos, como aqueles meninos que mataram o gordo camaleão na mangueira do quintal e o arrastaram com uma embira presa ao pé até uma palhoça. Lá, Maria abriu o bicho, tirou as carcaças de couro, limpou as impurezas e jogou a carne sem cor numa panela. Enquanto ela ria, Marciano, um dos curiosos, contorcia-se em náuseas, por muitos dias revolvendo na memória de criança a imagem do bicho fervendo.

Será que fariam isso com criança também?

Houve o dia em que um bando de ciganos cruzou a cidade, obrigando a população a se esconder em suas casas.

Temiam-se furtos, inclusive de meninas desprevenidas. Eram mais de cem e, da última vez em que por ali passou um grupo, levaram até as galinhas de Alzira.

O menino se perguntava: por que não davam para eles um pedacinho de chão para morar, já que eles corriam o mundo atrás de um quinhão de terra? As janelas ficavam fechadas, enquanto os menores se indagavam sobre as razões que levaram aquelas pessoas a perambular.

O adolescente, ou quase, se interessava por tudo e todos os detalhes. Atanava-lhe a figura do coronel, a gente que dava ordens. O que era mesmo um coronel? "Gente que mandava: mandava em gente, em bichos e na própria terra".

No entanto, o coronel já não tinha interesse em mandar. "Ele conhecia bem os sentidos dessa palavra, mas a substância dela perdera o gosto. Não mais desejava mandar no que fosse. Que mandassem os filhos, os netos. Queria somente - e não cansava de isso repetir - saborear o tempo que lhe sobrava... Vivia mastigando isso: Já não decido mais nada. Vivo para viver!"

O lugar mudava. Ele, coronel, queria paz de espírito, duvidando que os bisnetos conseguissem viver no campo. A vida passaria a ser nas cidades - vida de escolas, eletricidade, automóveis, rádio". Não iriam querer disputar espaço com árvores, bichos e escuridão".

Assim é esse livro, agradável, uma história bem alinhavada e descrita.

              Publicado originalmente no jornal Hoje em Dia (BH-MG), em 11.02.2010

domingo, 26 de abril de 2020

Seleta Piauiense - Torquato Neto

Fonte: Google



PRA DIZER ADEUS (*)

Torquato Neto (1944 – 1972)

adeus
vou pra não voltar
e onde quer que eu vá
sei que vou sozinho
tão sozinho amor
nem é bom pensar
que eu não volto mais
desse meu caminho

ah,
pena eu não saber
como te contar
que o amor foi tanto
e no entanto eu queria dizer
vem
eu só sei dizer
vem
nem que seja só
pra dizer adeus.

(*) Este poema foi musicado por Edu Lobo, tornando-se uma notável canção da MPB. Existe uma versão interpretada por Nelson Gonçalves. Aparentemente, é um tanto premonitória, ou aparenta ser uma espécie de “despedida”. O certo é que é uma linda e elegíaca melodia, a letra e a música casadas com perfeição.   

sexta-feira, 24 de abril de 2020

AUTOENTREVISTA

Autorretrato, em 23/04/2020



AUTOENTREVISTA

“Eu sou aquele
que jogou roleta
russa com o tambor
cheio de balas e
apostou contra a
sorte”

     (As respostas são montagens de textos da autoria de Elmar Carvalho, entrevistado/entrevistador.)

P – Quem é Elmar Carvalho?

R – Eu sou um homem, diante do qual, curvo como um servo capacho eu tiro meu chapéu, que sequer tenho. Eu sou um homem que rema no seco contra a corrente das águas; um homem que usa a gravata como se fora um baraço; um homem que escreve certo por linhas tortas; um homem que sobe e teima contra a lei da gravidade. Sou aquele que aprendeu a pecar para ter a humildade de não ter uma virtude e jogou roleta russa com o tambor cheio de balas e apostou contra a sorte. Eu sou aquele que lutou para não ser.

P – Qual o seu signo?

R – Sou do signo de Carneiro, mas meu coração é um Touro indomável. No meu sangue corre a fúria de Leão. Entre uma Virgem e duas Gêmeas meu coração bala Balança. Sou um Câncer nos chifres de Capricórnio. Sou Peixes libertário sem o cárcere de um Aquário. Sou Sagitário armado de arco e flecha. A flecha é uma cauda de Escorpião.

P – Que temos a ver com os anjos?

R – Pergunto eu: que temos a ver com o sexo antisséptico dos inatingíveis e intangíveis anjos das hostes celestiais? Que temos a ver com os anjos machos e fêmeas de falos decepados e de vaginas obturadas? A ânsia por asas e a sede de infinito.




P – Como você se sente na qualidade de poeta?

R – Sinto-me um lobo solitário e maldito das estepes, nas quais nunca estive, açoitado pelos estiletes do vento e do frio, uivando para a lua que jamais verei, porque para não a ver meus próprios olhos ceguei. Sinto-me um cão danado, condenado por si mesmo a uma eternidade de trabalho forçado. Sou um judeu errante e sem remissão, fugindo sempre de si mesmo, por sobre desertos de areia e de gelo. Sou um poeta maldito até a infinita geração e um cosmopolita proscrito das fronteiras do tudo e do nada.

P – Para você o que é um verdadeiro poeta?

R – É um Prometeu acorrentado, dilacerado pelas aves agourentas e de rapinas, que saíram de seu cérebro, caldeirão vulcânico, em contínua erupção, a vomitar monstros e fantasmas de milhares de membros e cabeças.




P – Como é o coração de um poeta?

R – É uma moeda de várias faces, mas de um só sentimento, o amor. É uma moenda por onde escorrem sentimentos e emoções. Pedra mó, pedra moenda, pedra moendo e remoendo dores e angústias em seu batuque, puro silêncio. É uma catedral cheia de colunas e fantasmas, onde os sinos repicam sem sineiros, no triste chamado sem resposta. É um saco de pancadas e é um tapete persa, muitas vezes pisoteado e tripudiado por frívolas mulheres. É uma bomba-incendiária, mas muitas vezes serve de bobo da corte para os fúteis e vulgares.

P – Como você sente o tempo passado?

R – O tempo perdido inverte a rota da ampulheta e retorna intacto, como se jamais deixasse de ter existido. O tempo se embaralha sem passado, sem futuro e sem presente, e as recordações comovem tanto, que a própria alma de tanto sentir não se sente e evola para um tempo sepulto pela areia da ampulheta. A memória é uma lâmina de desassossego, cornucópia insana e insaciável, a jorrar o passado, que não morre nunca, sempre ressuscitado no eterno regresso a nós mesmos. O passado, poderoso e renitente, retorna e continua vívido e presente, se contorcendo, se retorcendo e se reacontecendo. Ah, as carnes pulsantes de um passado sempre lembrado...




P – Você é um ególatra?

R – Não sei. Talvez. Talvez, não. Eu, vendo a minha imagem refletida no espelho não mágico de meu quarto, curvo-me a mim mesmo, como um eunuco do harém perante o sultão. E aquela imagem, curva ante mim, é a minha maior homenagem, que me presto. Eu me aproximo do espelho, até que a minha imagem egocêntrica seja projetada no infinito.

P – Como você se sente no mundo?

R – Preso no ventre estreito do universo tenho um acesso de claustrofobia. Teimoso como um joão-teimoso, nasci prematuramente e morrerei depois da hora. Guiado por cego e conversando com surdo-mudo, fui tachado de débil mental. Mas isto é um eufemismo, eu sou mesmo é um doido varrido, por força da necessidade. Além de tudo, sou triste. Mas eu vejo a tristeza como lágrimas nos olhos do diabo.




P – Quais são os seus mais constantes sentimentos?

R – Só o tédio absoluto, o vazio total, a negação completa eu sinto sempre. Sempre a falta de algo. Sempre o algo inalcançável. Sempre a louca procura do tesouro perdido, da pedra filosofal inexistente. Sempre a eterna falta de inspiração para a eterna poesia nunca feita. Sempre a mesma falta de amor. Sempre o mesmo amor, velho e tedioso. Sempre o mesmo tédio cansado. Sempre, sempre, sempre o mesmo sempre de desilusão.

P – Você se sente limitado pelo tempo e pelo espaço?

R – Superando a relatividade do tempo e do espaço, quero não estar ao mesmo tempo no tempo e no espaço. Indo além da barreira do tempo e do espaço, eu galguei o infinito ao ficar infinitamente pequeno. Projetando-me além do tempo e do espaço, eu vi o caos do nada. Perdido no tempo parado e no espaço desfeito, vi sangue azuis, cobras multicores, lagartas de fogo e outras alucinações girando vertiginosamente em apocalíptica coreografia. E eu para sempre fiquei perdido no tempo e no espaço perdidos em vão.




P – Poeta, você se sente limitado pela carne, pelo seu corpo?

R – Sua pergunta me deixa duas lágrimas de pedra nos olhos de vidro e uma tristeza infinita na alma de cristal. O pensamento voa além do infinito e o corpo inerte fica querendo voar, com a vontade imensa de alcançar a realização total de não ter desejos. A matemática me enlouquece: por isto meu pensamento salta de mais infinito a menos infinito e explora as amplidões do universo, enquanto meus olhos vidrados fitam a álgebra sem vê-la. E a minha abstração me leva ao infinito que meu corpo me nega.

P – Qual o seu objetivo maior, na arte e na vida?

R – Eu busco as mais loucas sinestesias em minha mente alucinada, onde as cores aromáticas se agregam a sons macios, misturados com aromas térmicos.




P – Um bom poeta é um pouco louco, ou não?

R – A loucura vem do cosmo, em taças de cristal com sangue, em aortas com água, na alucinação total de um homem que se diz lúcido. Na loucura, de repente, eu levito e me deixo transportar em êxtase ao país dos mortos-vivos e lá eu vejo todos os mortos e todos os vivos como simples mortos-vivos. Depois, eu me sinto preso em todos os extremos do universo e sinto que conquistei a liberdade cósmica, pregado no infinito e na loucura, na loucura que me adoece e me cura.




P – Você já buscou o transcendentalismo e o poder?

R – No desejo louco de ser transcendental eu abri minha alma para o cosmo e absorvi suas forças com a ânsia de um asmático. Sem ter uma cova onde cair morto, eu me tornei o rei falido desta província global.

P – Como tem sido a sua trajetória e a sua estrada poética?

R – Minha estrada é a esteira de luz que o sol traça no mar. Meu arco-do-triunfo é o arco-íris que o sol pinta no céu. Meu louro é o pentelho dourado que cobre a nudez das louras bonitas. Então eu, laureado com a pubescência de ouro, percorro a estrada de luz do sol no mar, passo por baixo do arco-íris do triunfo, poeta predestinado que se venceu a si mesmo, nos desafios e nos “repentes” que travei comigo mesmo.




P – Como você desejaria projetar uma poesia?

R – Abrindo meu ventre como uma rosa de carne e de suas vísceras multicores projetar uma poesia feita de flores e de fezes. Desejo cortar meu corpo e retalhar minha alma, para fazer uma poesia de matéria e de espírito e morrer na última palavra do último verso por nascer. Quero drenar minhas veias e com meu sangue regar um poema canibal que não fale de morte, e escrever a obra-prima com o sangue da alma.




P – Você se sente um vencedor ou um perdedor?

R – Náufrago de uma tempestade em copo d’água, escuto o canto da desgraça como um chamado de sereia. Pregado numa cruz invisível, de cabeça para baixo, tenho os braços fechados em sinal de protesto. Herói morto de um sonho desfeito, tenho como epitáfio a solidão e o esquecimento.

P – Você se considera um anjo ou demônio?

R – Cheio de ódio e de amor, a sorver taças e mais taças de bebida balsâmica e malsã, nos bordéis de Eros, nos templos de Pã e nos palácios dourados de Mefisto, onde sucumbo e resisto, no meio de mentira e desengano, fui Satã, fui Cristo, fui Humano.




P – Você ainda procura mais alguma coisa ou anda à procura de coisa nenhuma?

R – Eu nada procuro porque meus olhos foram jogados ao acaso como pedaços de espelho quebrado; meus cabelos arrancados flutuam como cabelos do vento; minhas mãos decepadas acenam em vão e em vão apertam coisa nenhuma; minha cabeça foi atirada numa lata de lixo onde o lixo era ela; minhas células foram espalhadas por uma tempestade que partiu de mim. Por fim, o meu corpo sem cabeça, como o farmacêutico de Ampurdan, anda à procura de coisa nenhuma.




P – Você almeja o infinitamente grande ou o infinitamente pequeno?

R – O infinitamente grande tende ao tudo. O infinitamente pequeno tende ao nada. Estes dois extremos se tocam. Em Deus.

P – O nada ou o tudo?

R – Se o tudo veio do nada, o nada então seria o tudo, e a esse deus-nada eu tiraria o meu chapéu, que não tenho, mas tiraria. Mas o nada não cria nada, porque o nada é nada e nada somado com nada é nada e multiplicado por nada é nada.




P – A ambição demasiada pode virar carvão?

R – A sede de poder e de infinito foi tão grande que as asas dos anjos cresceram tanto e tanto pesaram que esses entes alados não mais voaram.

P – Você tem muitas recordações?

R – As recordações dão e são vida. Recordações de becos escuros, sem saída, de amores, hoje boleros, bolores em flores. Ilusões perdidas, que se fazem dores na florida ferida da saudade. Lembranças de drible esquecido, de gol frustrado e acontecido, de um jogo que nunca termina, numa malsinada sina sinuosa. Evocações de lágrimas caudalosas, incontidas, vertidas das vertentes do peito, porto sem tino e sem destino, feito somente de desatino. Recordações de fantasmas que já nos abandonaram, de amigos mortos que nos acompanham cada vez mais vivos, tudo oriundo dos porões escavados nos subterrâneos dos sobrados – subterfúgios e refúgios da memória.




P – Você ainda tem ilusões?

R – Desmanchei com minhas mãos que os criara os deuses em que cria.




P – Como é a sua luta com as palavras?

R – As meadas e as palavras são labirintos e teias. Nelas os poetas se elevam; nelas as moscas se enleiam e se debatem em vão. Os poetas são. As moscas, não.