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DIÁRIO
[O bem-te-vi de Batista Rios e o passarinho de Bernardes]
Elmar Carvalho
08/04/2020
Estava eu
posto em sossego, nesta quarentena covidiana, placidamente conversando ao
telefone (celular), com o amigo João Batista Rios, diácono católico e juiz
inativo, falando de assuntos de altas indagações teológicas, tais como destino
e livre arbítrio, por sinal questões antitéticas, quando de súbito, com certa
ansiedade expressa na voz, ele me pediu licença, pois iria salvar um bem-te-vi,
que estava a se afogar em sua piscina.
Após um ou
dois minutos retornou, talvez um tanto ofegante, para a continuação da
conversa. De imediato, lhe perguntei se ele conseguira salvar a avezinha, que é
de minha máxima estima, como em outra oportunidade explicarei. Fiquei feliz por
ele me responder afirmativamente. Como ele tenha acrescentado que ficara
molhado, lhe pedi para interrompermos o telefonema, mas ele disse que não, que
logo depois iria mesmo tomar banho na piscina. Sobre o restante da conversa,
retornarei a ele, daqui a alguns dias, neste diário.
Ao longo de
alguns anos, tenho observado o canto e o voo dos bem-te-vis. São passarinhos
valentes, ágeis, velozes, quando têm de enfrentar outras aves. Têm bela e
vistosa plumagem e alegre canto. Seu refrão de advertência é para nos lembrar
das coisas erradas que fizemos ou fazemos às ocultas: “Bem te vi!”
Penso que
esse bem-te-vi que o Batista Rios salvou estava prazenteiro, a voar e a cantar,
quando sentiu sede e resolveu tomar um gole d’ água na bela piscina de meu
amigo. A piscina não deveria estar cheia até a borda, de modo a lhe permitir o
recolhimento da água de sua beira. Assim ele, mestre das acrobacias e
coreografias aéreas, fez um voo rasante, e, quiçá, por um milimétrico erro de
cálculo, sofreu o acidente, que quase lhe custou a vida, não fora a
providencial intervenção de meu amigo.
Desse
acidente aéreo, meu pensamento, em altas revoadas, lembrou-se de uma leitura
antiga do notável escritor clássico Pe. Manuel Bernardes (1644 – 1710), que
apesar da erudição e linguagem castiça, tinha um estilo sóbrio, ele que era um
mestre ímpar de narrativas e apólogos, contudo sem as cintilações feéricas,
quase fogos de artifício, da retórica e estilística do Pe. Antônio Vieira (1608
– 1697). Ambos eram lisboetas e podem ser considerados contemporâneos.
Eu era ainda
menino quando li o texto de Bernardes, a que fiz referência. Farei, como se diz
com certa redundância e ênfase, uma apertada síntese. Antes, porém, quis reler
o texto em sua íntegra. Procurei-o no livro Nova Floresta (seleção), Clássicos
Jackson, volume XXIX, edição de 1965, que tem um longo e erudito prefácio de
Múcio Leão, no qual colhi preciosas informações sobre a vida e a obra de Manuel
Bernardes.
No texto
preambular, fiquei sabendo que ele fora sepultado na vetusta igreja do Espírito
Santo, em cujo túmulo o padre Antônio dos Reis mandou gravar o seguinte
epitáfio, de sua autoria:
“Os potuit Coelo
sculptor tibi reddere: mores
Mentem, animum calamo reddit ad ipse suum.”
Encontrando
uma única tradução truncada e/ou sem nexo no doutor Google, e não tendo mais o
saudoso professor, erudito e latinista José de Ribamar Freitas para me
socorrer, a quem recorria em situações análogas, recorri ao ex-seminarista e
diácono João Batista Rios, que, por sua vez, apelou para os bons serviços do
parnaibano Dr. Antônio Carlos Machado, professor de latim da Escola de
Filosofia e Teologia do Seminário Maior de Fortaleza, que produziu a seguinte
tradução do epitáfio acima copiado: “Foi possível ao Céu que o artista que ele
era retrocedesse no mais íntimo do seu ser."
No e-mail em
que enviou sua tradução ao magistrado João Batista Rios, o professor Antônio
Carlos Machado, dando, a meu ver, correta interpretação ao epitáfio,
acrescentou as seguintes e elucidativas palavras:
“Pelos escritos, ele retrocede o
comportamento, a mente, o espírito para o seu estado original.
Para compreender isso, eu pesquisei a
biografia dele e, pelo que entendi, ele veio a falecer numa condição de total
demência. Ele fora um brilhante teólogo, mas recusava-se a escrever as suas
doutrinas, sendo obrigado pelos superiores a fazer isso. No entanto, essa
violência psicológica gerou nele uma espécie de trauma, ele entrava em aflição,
talvez em estado de choque, quando ouvia alguém lendo os seus escritos. Os seus
confrades achavam que era o demônio perseguindo-o por causa de suas virtudes.
Aos poucos foi perdendo a lucidez, até que foi proibido de celebrar a missa
(certamente porque confundia as coisas – fez-me lembrar do Frei Agostinho, que
saltava e esquecia partes do ritual da missa).
Assim, o epitáfio resume, em breves
palavras, essa situação de sua vida: um intelectual brilhante que
inexplicavelmente perde a lucidez e retorna ao estado infantil.
Bem, foi isso o que eu entendi do
epitáfio do Padre Manuel Bernardes.”
Não tendo
encontrado a narrativa no livro acima referido, fui encontrá-la na excelente
Antologia Escolar Portuguesa, organizada por Marques Rebelo, 1ª edição, datada
de 1970, publicada pela FENAME – MEC. Com dinheiro dado por minha saudosa mãe, lhe
adquiri um exemplar no início de minha adolescência, que li, embevecido e
exultante, e reli várias vezes, mas depois o perdi, não sei em que circunstâncias.
Muitos anos após, consegui um outro, dessa mesma edição, que estou a manusear.
Sem mais
delongas, vamos ao resumo anunciado: um monge, de poucas luzes e um tanto
obtuso, ao ouvir a leitura do salmo que dizia ser mil anos para Deus como o dia
de ontem, que já passou, ficou muito admirado e sem entendê-lo. Orou, com muito
fervor, para que o Onipotente lhe desse a sua compreensão. Nisso chegou um
passarinho, que, revoando e cantando maviosamente, o levou até uma árvore das
cercanias, onde pousou. Após o que lhe pareceu um breve instante, a avezinha
foi embora, o que o entristeceu em demasia.
Retornou ao monastério, em que notou
algumas modificações. Não foi reconhecido por nenhum dos monges. Levado ao
abade, após várias perguntas e respectivas respostas, este resolveu consultar
os anais e registros históricos da Ordem; verificou-se que, pelo cotejo das informações
com os livros, mais de trezentos anos se passaram desde a sua saída. O monge
compreendeu, de imediato, a interpretação do salmo, e logo a seguir morreu, em
beatitude.
A igreja do Espírito Santo, em que
foi sepultado Manuel Bernardes, foi destruída em 1755 pelo grande terremoto que
abalou Lisboa. Uma nova e bela igreja foi erguida em seu lugar; mas esta também
foi destruída por um outro terremoto. Semelhante a Camões, nem na morte seu
corpo teve sossego.
Nos dois anos que antecederam sua
morte, Manuel Bernardes perdeu as luzes dos olhos e do entendimento, morrendo
cego e louco. Em virtude da perda gradativa da lucidez, foi proibido de
celebrar o Santíssimo Sacrifício da missa, rude golpe que o fez derramar
lágrimas amargas. Talvez com a sua inconsciência, Deus o tenha querido poupar
do sofrimento da morte.
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