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Bucha de canhão e sobejo de guerra!
Pádua Marques
Contista e romancista
Ninguém
na casa de Mundica Brandão, nos Tucuns, dormiu um pingo que fosse naquela noite
de 31 de agosto, depois de terem ouvido na Rádio Educadora a notícia de que o
Brasil havia entrado na guerra contra os alemães. No outro dia bem cedo correu
na praça da matriz a mesma notícia e chegou pelas ruas e casas de comércio, na
mercearia de seu Bembém e tudo o mais, que era lugar de ajuntamento de gente
importante na Duque de Caxias, o porto Salgado e arredores. Pouca gente meteu a
cabeça e os pés fora de casa, tamanho era o medo.
Mundica
Brandão tinha dois filhos, rapazes feitos, de pouco mais de vinte anos. José de
Arimateia e Genário, de boa altura, trabalhadores no comércio na rua Grande,
ali nas proximidades dos Franklin Veras. De madrugada a mãe teve um tino de
arrumar as malas deles dois e mandar incontinenti pra casa da avó, num povoado
pra além da Barra do Longá, lugar que ninguém, nem mesmo doutor Mirócles e seu Acrísio
Furtado, haveriam de ir buscar e mandar pra guerra. Pelo que se andava falando
na Parnaíba inteira o governo tinha preferência por homens solteiros.
Muita
gente já estava se escondendo na casa de parentes ou até casando assim de uma
hora pra outra. Tudo pra evitar o recrutamento. Muita gente pelo que se
contava, que havia sido apanhada em jogatina de damas, baralhos e palito, de
noite nas ruas escuras dos Tucuns, nos cabarés da Coroa, no cais do porto,
agora estava preso no Arsenal pra depois ir direto pra guerra na Itália! Muita
gente agora presa, era o que se contava e aumentava a conversa, chorava noite e
dia arrependida de ter passado o tempo todo na vagabundagem na Parnaíba.
Dona
Mundica Brandão e outra vizinha, de nome Celestina, marcaram de ir até na casa
de doutor Raul Bacellar, na rua Vera Cruz, pedir pelo amor de Deus que desse
uma força de livrar os filhos de serem levados pra o Arsenal. Até que Mundica
pensou em padre Roberto Lopes, amigo da sua família e que batizou e casou muita
gente nos Tucuns. Quem sabe ele não ajudasse evitando aquele sentido medonho que
vivia fazendo ninguém dormir um pingo na Parnaíba.
Mas
as conversas, vindas das rodas mais bem informadas, eram de que pouca gente na
Parnaíba tinha condições de ir pra guerra na Itália. Os comerciantes da rua
Grande já andavam se pelando de medo daquele estado de beligerância no mundo com
as encomendas de cera de carnaúba rareando e tudo o mais. Havia sido atacado um
navio brasileiro no Mar Adriático em março de 1941 e naquele ano afundado um
navio cargueiro nas costas do Caribe, o Cabedelo. O momento era de muito
desassossego.
Mas
entre os ainda poucos estivadores e corretores de cargas no porto Salgado,
aquelas noticias ouvidas pela Rádio Educadora de Parnaíba deixavam qualquer conversa
igual fosse saída de velório. Dona Mundica Brandão agora estava pronta a ir até
a casa de doutor Mirócles pedir por tudo quanto era santo pelos seus filhos.
Seus meninos não poderiam ir pra uma guerra na Itália! Cobria Getúlio Vargas de
tudo quanto era nome feio. Filho dessa, filho daquela! Se fosse preciso ela
tinha coragem de ir falar com o presidente no Rio de Janeiro, pedindo ajuda a
seu Zeca Correia e outros mais homens de poder na Parnaíba e se ajoelhar nos
pés deles e pedir que não deixassem seus filhos irem morrer longe de seus
olhos. Virarem bucha de canhão, sobejos de guerra!
Encasquetou
até que se fosse preciso iria até Teresina falar com o interventor Leônidas
Melo. Mas aconselhada por uns poucos acabou caindo das carnes. Enquanto isso tinha muita gente fugindo na
calada da noite pra de madrugada no rumo da lagoa da Prata e entrando de
Maranhão adentro, se escondendo com medo de numa hora pra outra chegasse na sua
porta um pelotão pra levar direto pra o Arsenal. E a notícia era de que lá
entrando ninguém saía!
Chico
Delmiro, rapaz solteiro, trabalhando de carroceiro, uns vinte e seis anos, seu
Sebastião Pinto, sapateiro, homem casado com Conceição e pai de um menino de
dois anos, Antero Conceição, ajudante de quitanda, filho de seu Júlio
Conceição, o Júlio do Sabão e por fim Raimundo Pestana, também solteiro,
jogador de baralho. Todos se juntaram pra entrar de Maranhão adentro e só
saírem de lá quando a guerra um dia acabasse. Não houve despedida.
Quem
chorou, chorou escondido pra não levantar suspeitas. Naquela hora não tinha
mãe, pai, filho e mulher. Era fugir e ligeiro. Muito vizinho andava agora com o
ouvido na parede da casa alheia escutando o que se passava. No cair da noite
daquela semana de início de setembro de 1942 os fugitivos foram chegando no
canto da rua Vera Cruz e a um sinal tomaram uma canoa e entraram na Ilha Grande
de Santa Isabel.
Do
outro lado iriam tomando chegada e caminhando a noite inteira. Pouca coisa pra
carregar. Mudas de roupa, dinheiro, fumo pra fazer cigarros, dois litros de
cachaça, uma faca e um lampião, mas tomando cuidado. Iriam procurando as
veredas até chegarem já nas terras do Maranhão, Araioses e Tutoia, isso já no
amanhecido do dia. Nisso estariam livres. Deles, os quatro, a Parnaíba nunca
mais teve notícias.
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