Capa feita pelo artista (João de Deus) Netto |
Fonte: Google |
DALILÍADA: UM POEMA E SUA
HISTÓRIA
Cunha e Silva Filho (*)
“Nas águas salobras da História
ainda não se perdeu o sabor do mito e da poesia”.
Alfredo Bosi, O ser e o tempo da
poesia
Na segunda-feira,
dia 23/08/2021, remexendo em velhos guardados, por livre e espontânea vontade
de minha mulher, encontrei o vertente texto do professor, escritor e crítico
literário Cunha e Silva Filho, mestre e doutor em Literatura Brasileira. Este ensaio era
para ser o prefácio do livro ou opúsculo em que seria agasalhado o poema a que
ele se refere. Cheguei a mandar fazer a capa, a contracapa e a programação
visual do livro. Mas depois, por razões de que já não estou lembrado, abandonei
esse projeto. Contudo, o enfadonho e cansativo trabalho “imposto” pela Fátima
não foi em vão, porque encontrei interessantes documentos e textos literários,
que já não via há mais de década, e que por isso mesmo os considerava perdidos. EC
Na obra de um autor, seja ele
poeta, ficcionista, dramaturgo, ou de outra natureza literária ou artística em
geral, há sempre uma certa curiosidade, ou mesmo um desejo insatisfeito por
parte do crítico de procurar penetrar nos mistérios imperscrutáveis que a
criação literária impõe por vezes à exegese. Não por ocaso um respeitado
crítico português, João Gaspar Simões, escreveu há muito tempo uma valiosa obra
com esse título belo e sugestivo: O mistério da poesia.
No conhecido poema “Áporo”, que
faz parte do livro A rosa do povo (1945), do consagrado poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade(1902-1987), exatamente na terceira estrofe, o eu lírico,
entre parênteses, em forma de exclamação, afirma que o “labirinto”, metáfora
utilizada para referir-se aos intrincados caminhos que levam o poeta à
construção final de seu poema, cerca-se do binômio razão e mistério. (1) Estes
dois componentes, em si antagônicos, na realidade se imbricam e constroem a sua
tessitura literária.
Manuel Bandeira (1886-1968),
outro notável poeta brasileiro, reserva para o ato da criação de alguns de seus
poemas um certo halo misterioso, brumoso. No seu utilíssimo ensaio do que eu
chamaria memórias de sua formação e criação literária, o seu famoso Itinerário
de Pasárgada, Bandeira chega a falar de alumbramentos, de poemas passados ao
papel como se fossem guiados por uma fonte mediúnica. (2) Ou seja, a criação
poética estaria, dessa forma, situada entre dois extremos, a razão e o
mistério, tomando os dois vocábulos no sentido em que aparecem no poema
drummondiano “Áporo”. O ato da poiesis faz-se poema na sua fisicidade
tipográfica na medida em que o artista reúne tanto a sua competência linguística
quanto um componente imponderável que, plasmando experiência retórica, memória,
sentimento, transforma isso tudo em peça poética, coadjuvado - e aqui se
encrava o mistério! – por processos criativos que se situam acima da
racionalidade e invadem os arcanos míticos dessa maravilha do espírito humano,
que é a criação poética.
É bem provável que todos os
poetas de superior qualidade artística passem por tais experiências quando se
deparam com o ato da escrita.
Essa mesma experiência propiciada
pelo ato da criação literária, envolvendo razão e mistério, competência e
naturalidade inventiva, me parece ter vivenciado o poeta Elmar Carvalho,
nascido no Piauí, quando se dispôs a passar ao domínio da escrita o belo e
complexo poema “Dalilíada.” Muitas vezes, um ou dois poemas são suficientes
para se aquilatar a dimensão superior de um poeta.
“Dalilíada” faz parte do conjunto
de poemas reunidos no livro Rosa dos ventos gerais”, (3) e aparece na seção
“Cancioneiros dos Ventos Gerais”, a última de quatro que compõem o livro. As
outras três são: “Cancioneiro do Ar”, “Cancioneiro do Fogo” e “Cancioneiro da
Terra e da Água”.
Por ser, por feliz coincidência,
amigo e leitor crítico da poesia de Elmar, disponho da vantagem de trocas de
profícuas conversas telefônicas ou mesmo por correspondência com ele sobre
questões literárias e sobretudo – porque isso sempre me interessou
profundamente -, acerca de temas da criação literária. Dessa forma, vim a saber
como Elmar chegou ao poema “Dalilíada”. Agora me lembro de uma situação semelhante
que ocorria entre Amado Alonso e o poeta Pablo Neruda, na qual este último era
insistentemente interpelado pelo primeiro sobre questões de interpretação de
passagens mais complicadas da poesia de Neruda e que desafiavam a argúcia
daquele crítico, conforme sobre o caso comentou recentemente o ensaísta e
professor piauiense M. Paulo Nunes (4) em artigo publicado no jornal Diário do
Povo.
Revelou-me Elmar Carvalho ter já
há algum tempo um interesse especial pela pintura de Salvador Dali. E mais,
perto de sua residência, em Teresina, conheceu um pintor entusiasta daquele
artista catalão. O pintor possuía um álbum ou dois com obras de Dali. Elmar,
então, fora à casa do pintor, conhecido como Sica, e, se não me engano,
pediu-lhe emprestado o álbum ou os álbuns, que passou a examinar com muito
interesse e curiosidade.
Parece-me também que Elmar
Carvalho tinha já sentido um desejo de trabalhar um poema nos moldes
surrealistas, manifestação poética de que também já havia experimentado em
poemas anteriores, todos incluídos no citado Rosa dos ventos gerais: “No reino
do surreal”(p.52); “Realidade fantástica” (p.76); “Em transe” (p.70; “(Ir)
real”(p.79).
Mais de um crítico, inclusive o
autor desta introdução, já aludiu à disposição de Elmar para a pesquisa e o experimentalismo
no domínio da poesia. que se explica em parte pela cronologia de sua
participação como jovem poeta da geração dos anos 70, denominada geração
mimeógrafo, e em parte pela sua real inclinação reavaliadora da práxis poética.
Em 1990, quando o conheci em Amarante, município do Piauí, me dei conta do
valor e seriedade de seus processos de produção poética, reconhecendo nele e em
outros poetas de sua geração, um viés subversivo e inovador de fazer poesia.
(5)
“Dalilíada”, por conseguinte, é o
resultado dessa vocação poética para um salto de qualidade que não concede, uma
única vez sequer, - postura intelectual que o engrandece - , lugar às
facilidades anacrônicas e a experimentalismos inconsistentes. “Dalilíada
poderia ser uma concessão à aventura irresponsável no terreno poético? Não,
nunca. Tanto assim é verdade que o poema, longo poema de 40 estrofes, em nosso
juízo, parece ser, me arrisco a dizer, na sua espécie, uma peça ímpar, na
lírica brasileira, a se aproveitar da simbiose entre arte da palavra, arte
particularmente significante em se tratando de poesia, e arte pictórica.
Uma palavra sobre o título O
vocábulo “Dalilíada” é formado da aglutinação de Dali, último sobrenome do
pintor, pelo qual frequentemente é chamado, com a exclusão até do sobrenome
Salvador, com o famoso nome da epopeia grega de Homero, a Ilíada, que, segundo
esclarece Hênio Tavares, corresponde à “forma portuguesa do grego ‘Iliás’,
vindo do latim ‘Ilíada’, significando ‘a respeito de Ilion’, que era o nome de
uma cidade da Ásia Menor.” (6) Esta circunstância me permite facilmente
estabelecer uma explicação no que respeita ao título do poema de Elmar, i.e., o
poema procura, antes de tudo, render um tributo ao conhecido pintor e escultor
Salvador Dali.
Esta explicação, entretanto, por
si só, demonstra um traço estilístico da poesia de Elmar, uma saudável
inclinação às mudanças e experiências formais, já testadas em composições
poéticas anteriores, conforme por mais de uma vez já ressaltei em estudos sobre
o poeta. (7)
Ao dar, porém, o título
“Dalilíada” ao poema, o autor, entre parênteses, define o gênero que escolheu,
ou seja, um “poema épico”, como ele próprio o classifica. (8) A princípio, me
pareceu inadequada a classificação por ele atribuída ao poema, se for levada em
conta a forma canônica do gênero literário em causa. Todavia, se considerarmos
a grandeza das imagens e das ideias convergindo para a exaltação do objetivo
temático da peça poética - a figura enigmática e ao mesmo tempo múltipla do
protagonista do poema, Dali e a sua obra - , compreenderemos que a aventura de
uma individualidade pode também representar uma dimensão nacional e mesmo
universal e cósmica, desde que para tanto ela consiga plasmar elementos
díspares da realidade, não só concreta mas tomada na sua abstração e nos seus
arcanos insondáveis. (9)
O esquema estrófico Mencionei
linhas atrás que “Dalilíada” compõe-se de 40 estrofes assimétricas de versos
livres, indicadas por números romanos, variando de 3 versos a 15 versos, assim
distribuídos: 1 estrofe de 15 versos, a 1ª; 1 estrofe de 10 versos, a 2; 6
estrofes de 3 versos, a 3 ª; 11ª, 12ª,28ª e 36ª; 7 estrofes de 4 versos, a 6ª,
7ª, 13ª, 18ª, 19ª, 37ª e 38ª; 11 estrofes de 5 versos, a 4ª, 9ª, 10ª, 22ª, 23ª,
24ª, 25ª, 26ª, 27ª, 30ª e 32ª; 6 estrofes de 6 versos, a 5ª, 14ª, 17ª e 20ª;2
estrofes de 7 versos, a 8ª e a última, a 40ª; 1 estrofe de 8 versos, 2 estrofes
de 9 versos, a 15ª e a 29ª; 2 estrofes de 12 versos, a 33ª e a 39ª.
O poema e sua espacialidade Uma
das peculiaridades marcantes da poesia de Elmar Carvalho são os recursos
buscados na configuração do espaço branco da página, expediente grafemático por
ele empregado em muitos outros poemas que, desde cedo, dele fizeram um poeta
atualizado, com o pé na modernidade e outro na grande tradição poética. Ainda
hoje paga tributo ao Concretismo brasileiro em virtude desse apego à
desintegração do vocábulo, à prática por vezes anti-discursiva e ao uso amplo
da espacialidade como elementos significantes e significativos do discurso
poético. De resto, tal procedimento contamina praticamente toda a poesia
brasileira contemporânea, conforme se pode ver nos seus mais variados poetas.
Na realidade, a tendência de utilizar-se de figurações, desenhos e
aproveitamento do espaço branco da página para fins estéticos de comunicação do
poético remonta à Antiguidade greco-latina, e me parece sem dúvida ter chegado
para ficar.
“Dalilíada”, menos do que em
outros poemas de Elmar, recorre, em dois momentos, a esse recurso de
experimentação espacial, o qual podemos encontrar na estrofe introdutória e na
sua penúltima estrofe. Essas duas estrofes, significativamente, em ludismo
plástico-visual, realizam um jogo de “palavra-puxa-palavra” no qual o epicentro
destaca, numa e noutra daquelas estrofes, a importância dos nomes de Dali e
Gala, a amada do pintor. É interessante aqui constatar-se o poder de
inventividade conseguido pelo poeta ao trabalhar esses dois nomes, quer no
plano interno do poema, quer no da sua significação exógena.
No primeiro caso, vemos o nome de
Dali: “Dali”, “Daqui”, "Dacolá”, “Daquém”, “Dalém”, versos 5 e 6. A
distância que o poema espacialmente mantém na página ressoa iconicamente como a
projetar a figura polêmica do pintor em várias direções e simultaneamente em
todos os lugares intra e extratextualmente.
No segundo caso, temos o nome de
Gala, que, no espaço da página, irrompe, em exclamação, em vocábulos derivados;
“Galamante”, “Galamada”, Galáxia,” “Galáctica, “Galharda”, “Galateia”,
“Gala”(repetida três vezes, “Galante”, “Galardão”, “galáxias”. Na formulação
lúdico-experimental de vocábulos dois se formam por aglutinação: “Galamante” e
“Galamada” e, neste caso, com valor de adjetivo. São formações lexicais,
observe-se, construídas pela intuição do próprio poeta. Os demais vocábulos
fazem parte do léxico português, cuja funcionalidade antes reside na mera
coincidência mórfica com o nome da amada de Dali, Gala. Saliente-se, por outro
lado, que, no caso, esses outros vocábulos reforçam a apóstrofe dirigida à
pessoa de Gala, em forma de amplificação laudatória das virtudes e qualidades
dela, culminando no melódico verso final da estrofe: “... em teu gesto delicado
de mulher”. (10)
Atente-se, finalmente, que o
vocábulo “Galateia”, tão imbuído de acepções mítico-helênicas, ainda reaparece
no 7º verso desmembrado em Gala + teia, o que completa a constelação de semas
gravitando em torno da beleza e delicadeza da musa de Dali.
A explosão vocálica como força
centrípeta do binômio: vida e obra de Dali Uma vez chamei Elmar Carvalho de um
“malabarista do verso, (11) porquanto seu verso em geral resulta de um trabalho
sério de pesquisa da linguagem. Nada nele denuncia gratuidade ou apenas
afetação de procedimentos por ele seguidos na composição de sua obra poética.
Seus recursos rítmicos, melódicos e de retórica lhe traem o empenho de
construtor de imagens e ideias com o sinete da originalidade, ainda que, como
não podia deixar de ser, se aproveitando das lições de grandes mestres da
tradição poética do Ocidente, brasileiros ou estrangeiros, não importa.
Parece-me que esta atitude intelectual é que forjará, de forma permanente, os
autênticos inovadores da poesia de qualquer época.
No poema “Dalilíada” essa
dimensão renovadora se acha patente a todo passo e nele quase chega a ser uma
obsessão o apego às preocupações metapoéticas.
No poema como este que venho
comentando, cuja pretensão de efetivar uma fusão entre o signo linguístico e a
linguagem plástica é mais que evidente, não é preciso grande esforço do leitor
para compreender as dificuldades enfrentadas pelo poeta durante o processo de
elaboração do poema e sua consequente realização escrita.
Sabemos que desde, pelo menos, os
parnasianos, existiu o interesse entre os poetas de concretizar uma poesia onde
a linguagem do verso pudesse se harmonizar à imagem plástica, donde resultasse
uma poesia aproximada às formas sólidas e marmóreas, de efeito táctil. Nesse
ponto, assumiram relevância especial o valor e a função desempenhados pelas
vogais e consoantes, às quais se atribuiriam “sons, cores e sentimentos”. (12)
Da mesma sorte, no Simbolismo
houve constantemente uma aproximação entre este estilo literário e a música,
consoante nos lembra a advertência verlaineana: “De la musique avant tout
chose...” Igualmente, ficaram famosas as “correspondences” que aparecem no
soneto “Voyalles”, de Rimbaud, destinando a cada vogal uma cor correspondente:
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu”. (13)
No mesmo sentido de
correspondência entre os sons das palavras e os elementos naturais, poder-se-ia
incluir o esforço despendido no soneto de Baudelaire, “Correspondences”, no
qual “Les parfums, les couleurs et les sons se répetent”. (14) Na mesma esteira
dessas correspondências existentes no soneto acima-mencionado de Baudelaire,
tivemos o que se chama “instrumentação-verbal”, quer dizer, haveria
correspondências sinestésicas entre as vogais e as cores, entre os
instrumentos, os sons e certas sensações Essa “instrumentação-verbal”
representaria, segundo George Lote, uma correspondência entre as vogais a, e,
i, o, u, e, respectivamente, um órgão musical, uma cor e um sentimento. (15)
Ao longo de “Dalilíada”
evidenciou-se um dado fônico-visual-semântico nos versos constitutivos do poema
que instauram uma tensão entre a sua significação como objeto verbal e sua
realidade histórico-social. Esse dado seria simbolizado pela altíssima
ocorrência da vogal extrema anterior fechada “i”, observável estrategicamente a
partir do locus interno do poema, i.e., em vocábulos que começam
significativamente pelo próprio nome de Dali, onde a vogal tônica recai no
próprio “i” final. Estou a me lembrar aqui, mutatis mutandis, da grande
incidência de vocábulos referentes à cor branca na poesia do simbolista
brasileiro Cruz Sousa (1861-1898).
Só para exemplificar, vejamos, na
primeira estrofe do poema, a elevada taxa de incidência dessa vogal anterior,
extrema, fechada nos vocábulos onde ela comparece (a vogal, ou o fonema
aproximado, está em negrito):
1º verso: bigode,
surreal
2º verso: chifre, aguilhão
3º verso: Dali, toureiro
4º verso: toureia, consigo
5º verso: Dali, Daqui
6º verso: Daquém, dalém
7º verso: de, arte
8º verso: de, arte
9º verso: de, ante,
maviosa
10º º verso: onde, arde,
tarde
11º verso: noite, dia,
surreal
12º verso: feita, de,
e
13º verso: de, cores,
(b)errantes
14º verso: e, de,
pusilânime
15º verso: Cores, cambiantes
Como vemos, só nesta estrofe, a
referida vogal e bem assim a semivogal que dela se aproxima foneticamente em
ditongos decrescentes e nas formas verbais terminadas em som nasal, estão
presentes 41 vezes! Note-se ainda que levei em conta igualmente as vogais
reduzidas assinaladas na escrita com a letra “e”, mas, na pronúncia nordestina
piauiense (o autor do poema, como sabemos, é piauiense), é equivalente a um “i”
reduzido inicial, medial ou final.
Em todo o poema essa ocorrência
me permite concluir pelo valor de natureza cratílica assumido pela vogal “i”
associada ao tema desenvolvido no poema, cujo epicentro de atração, no plano de
sua semântico, se apoia na figura de Dali e de sua obra.
O intertexto em “Dalilíada” No
poema o intertexto reveste dois aspectos, quer dizer, como prática alusiva
através da apropriação de uma vanguarda datada, sem embargo de seus reflexos
ainda sentidos na poesia contemporânea e como recurso de intertextualidade
exóliterária (16), ao procurar um fazer poético recorrendo a elementos fora da
área propriamente poética, ou seja, na biografia e na pintura de Salvador Dali.
O crítico inglês, (17) I. A.
Richards (1893-1979) uma vez afirmou que um traço no futuro da poesia seria o
amplo recurso das alusões, o que, na realidade, já está acontecendo em nossos
dias, Cada vez mais, estamos lendo uma poesia na qual existe mesmo uma certa
dificuldade de se poder delimitar as fronteiras fugidias do componente alusivo
e da contribuição pessoal, gerando, dessa forma, uma espécie de aparente crise
de originalidade.
Em “Dalilíada” pode-se reconhece,
em grau elevado, um desfilar de referências provindas de fontes
histórico-literário-culturais, afora a apropriação de recursos formais
imagísticos e de procedimentos tomados à poesia surrealista. Por sinal, na
estrofe inicial do poema, 12º verso, há até mesmo a nomeação do próprio
vocábulo “surreal”. (18)
Nos versos do poema se
entrecruzam referências intertextuais variadas, remetendo à figura de Picasso,
à mitologia greco-latina, a ecos drummondianos, a ecos bandeirianos, ao
sintomático nome do surrealista Paul Éluard, ao pintor renascentista Rafael, ao
Cristianismo, e sobretudo à própria textualidade do poema, esta, sim,
contaminada, em toda a sua inteireza, pela realidade magnetizada e fantástica
provocada pela obra ímpar de Dali.
Considerações finais Os
comentários aqui aflorados se direcionam mais a apontar algumas vias analíticas
de interpretação suscitadas pela leitura desse vigoroso e bem articulado poema,
talvez, como assinalamos antes, um trabalho pioneiro na lírica brasileira.
Elmar Carvalho, admirador antigo
de Dali, um dia resolve, em mais um exercício de malabarismo poético, após
cuidadosa pesquisa e amadurecimento sobre a visão que lhe passou Dali no campo
da pintura, empreender, guiado pela intuição e debruçado sobre um ou dois
álbuns com quadros do pintor catalão, escrever essa “epopeia moderna” como
resposta à inspiração, em parte brotada do inconsciente surrealista mimético
(de repente, delineou-se-lhe na cabeça o poema quase pronto, me confessou o
autor), em parte ditada pela competência literária de prestar este merecido
tributo à memória do grande e polêmico artista, que foi Salvador Dali.
NOTAS:
1 Ao escrever esta breve
introdução, preliminarmente, serviu-me de inspiração a engenhosa análise sobre
a poesia de Carlos Drummond de Andrade feita por Rosemary Arroyo, em estudo
acerca da prática da tradução literária no domínio do inglês, no caso
específico, a poesia. Ver ARROYO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na
prática. 4. ed. São Paulo: Ática. Coleção Princípios, 2002.
2 BANDEIRA, Manuel. O itinerário
de Pasárgada. In: ____. Poesia completa e prosa. Vol. único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1986, p. 32-102.
3 CARVALHO, Elmar. Rosa dos
ventos gerais. 2ed. Rev. Aumentada e melhorada, com fortuna crítica. Teresina:
SEGRAJUS, 2002, P. 173-181.
4 Ver NUNES, M. Paulo. A lição
poética de Neruda. Diário do Povo. Teresina, Pi., 29/07/2004.
5 Ver o meu artigo “A consciência
poética atualizada”, publicado primeiro no jornal Diário do Povo. Teresina,
Pi., 13/01/95, em seguida, incluído como posfácio para a primeira edição de A
rosa dos ventos gerais. Teresina: Editora Gráfica, 1996 e, finalmente, incluído
também em Rosa dos ventos gerais. 2. ed., op. Cit.
6 TAVARES, Hênio. Teoria
literária. 8. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 1984. p. 241.
7 Ver um outro estudo de minha
autoria, “Elmar Carvalho: um malabarista do verso”, originalmente publicado no
Caderno de Teresina, Ano X, nº 23, agosto de 1996, e, posteriormente, também
incluído na 2ª ed. de Rosa dos ventos gerais, na qual ainda está incluído, como
introdução, meu ensaio sobre o poeta , “Encontro, poesia e vida.”
8 CARVALHO, Elmar. Rosa dos
ventos gerais. 2. ed. Op. cit., p. 173.
9 MENDONÇA TELES, Gilberto.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes,
1973, p. 122-125, e p. 126-160.
10 CARVALHO, Elmar. Op. cit., p.
181.
11 Cf. minha nota 7 supra.
12 WEY, Válter. Língua
portuguesa. 3ª série, curso colegial. São Paulo; Editora do Brasil, 1963, p.
158.
13 MOISÉS, Massaud. O simbolismo
(1893-1902). Vol. IV. São Paulo: Cultrix, 1966, p.41.
14 Idem, p. 37.
15 Ibidem, p. 39-40.
16 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel
de. Teoria da literatura. 6.ed. ver., vol. I. Coimbra: Livraria Acadêmica, p.
1984, p. 629.
17 RIACHARDS, I.A. Princípios de
crítica literária. Porto Alegre: Globo, 1967, p. 181-185.
18 Carvalho, Elmar. Op. cit., p.
173.
Rio de Janeiro, 29 de agosto de
2004
(*) Cunha e Silva Filho é mestre
e doutor em Literatura Brasileira, professor universitário no Rio de Janeiro e
tem vários livros e artigos publicados.
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