Alcenor em charge de Fernando di Castro |
Depoimento sobre Alcenor Candeira Filho
Elmar Carvalho
Anos atrás o poeta e escritor
Alcenor Candeira Filho escreveu uma série de depoimentos sobre figuras ilustres
de Parnaíba, em vários setores de atividade. Em razão disso, escrevi um
depoimento sobre ele, meu amigo há mais de quatro décadas. No dia em que ele
faz 76 anos de vida, achei por bem republicá-lo, como uma homenagem a tudo que
ele fez em prol do serviço público, da educação e da literatura.
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Quando fui deixar vários exemplares da obra Novas Páginas
Parnaibanas, enviados pelo seu autor, para serem distribuídos aos acadêmicos e
visitantes da Academia Piauiense de Letras, o seu presidente, o jurista e
escritor Nelson Nery Costa, consultou-me sobre a conveniência de lançá-los em
evento de nosso sodalício, o que teve a minha pronta concordância e aplauso.
Assim, neste sábado, véspera do segundo turno da eleição
presidencial, o livro foi lançado em nosso auditório, juntamente com os
seguintes: O cantinho do poeta, de Jonas Piauí, por mim apresentado e
prefaciado, Ermelinda, de Lili Castelo Branco, que teve a excelente
apresentação do seu filho (e sucessor na APL) Heitor Castelo Branco Filho, e
Teoria e realidade da desobediência civil, apresentado de forma elucidativa por
seu autor, Nelson Nery Costa. Ao apresentar Novas páginas parnaibanas, disse
que iria fazer uma espécie de depoimento e crônica memorialística sobre Alcenor
Candeira Filho, porquanto nossa amizade perfaz quatro décadas. Tentarei, a
seguir, recompor o meu discurso, baseado no roteiro mnemônico, a que me ative.
Tendo meu pai assumido a chefia da Empresa de Correios e
Telégrafos em Parnaíba, fomos residir nessa cidade em junho de 1975, quando eu
tinha 19 anos de idade. Em setembro desse ano fui morar em Teresina, para
ingressar na ECT, mas no começo de 1977 retornei, em virtude de aprovação em
vestibular, para fazer Administração de Empresas na Universidade Federal do Piauí,
cujo curso era ministrado exclusivamente no Campus Ministro Reis Velloso, em
Parnaíba.
Nessa época, quando o poeta Alcenor Candeira Filho foi aos
Correios, para postar ou receber correspondência, um carteiro, sabedor de minha
condição de literato, me chamou para conhecê-lo. Mas eu, um tanto retraído,
algo tímido nos contatos iniciais, preferi vê-lo à distância, sem me dar a
conhecer. Muitos anos depois, soube que ele lia os poemas de feição modernista
que eu publicava nos jornais Folha do Litoral e Norte do Piauí, e um pouco mais
tarde no alternativo Inovação.
O postalista, cujo nome não consigo recordar, disse-me, com
postura algo confidencial, como se revelasse um segredo ou mistério, que
Alcenor se formara em Direito para tentar reabrir o processo criminal sobre a
morte trágica de seu pai, para dessa forma conseguir a condenação dos
responsáveis pelo fato delituoso. Contudo, em livro que posteriormente escreveu
sobre o assunto, o poeta afirmou jamais ter alimentado esse objetivo.
Ainda cheguei a ver um opúsculo, que alguém dera a meu pai, o
qual continha a tese de defesa do brilhante causídico, jurista e escritor Celso
Barros Coelho, que apesar disso se tornou amigo do poeta, tendo ambos sido
colegas como procuradores federais (lotados no INSS), no magistério superior
(UFPI) e como membros da Academia Piauiense de Letras (APL). O pequeno livro,
em virtude de mudanças residenciais, terminou sendo extraviado, o que muito
lamento, pois hoje poderia ser uma relíquia de minha biblioteca, pela raridade,
e por ser um documento referente a um fato rumoroso do Piauí, e que abalou
Parnaíba, no último trimestre do ano de 1959.
No começo de 1977 fiz amizade com Paulo de Athayde Couto, meu
colega do curso de Administração de Empresas, filho do professor Lima Couto,
poeta e erudito, que, para gáudio meu, admirava meus poemas, e com quem
conversei tantas vezes, sobre poesia e outros assuntos culturais, debaixo do
caramanchão do jardim de seu sobrado. Lima Couto admirava os poetas Abgar
Renault, Longfellow e Tagore, dos quais recitava de memória alguns versos.
Paulo Couto, também poeta, começou por essa época a publicar
crônicas no jornal Folha do Litoral. Em sua companhia, fui algumas vezes à casa
do Alcenor, datando daí a nossa amizade, que se mantém inalterável e sólida,
através do respeito e da admiração recíprocos, regada a muita conversa e
eventuais goles de cerveja. O Paulo e eu participamos dos seguintes livros:
Salada Seleta (prefaciado por Alcenor), Galopando, Em três tempos e Poesia do
Campus (editado em minha gestão no Diretório Acadêmico 3 de Março).
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Nas vezes em que estive na casa de Alcenor, via na parede o
retrato em preto e branco de seu pai, cuja essência biográfica e morte trágica
já conhecia, mas nunca lhe indaguei a respeito, como se isso fosse um tabu ou
assunto interdito, ao menos para mim. Porém, como no poema drummondiano, sabia
que não se tratava apenas de uma fotografia na parede, mas de um símbolo do
amor e da saudade, que certamente lhe pungiam a alma de poeta e de filho, como
bem se pode constatar na leitura do poema elegíaco Passando em revista, cuja
estrofe inicial transcrevo:
Passando em revista
o tempo da noite
vejo que meu pai
Alcenor Rodrigues Candeira
(trucidado em 59
pela família Cavalcante)
continua na parede
sem cabelos brancos
como eu não queria.
Tampouco tratei desse assunto com Canindé Correia, meu
compadre e amigo há quarenta anos, casado com Tânia, sua irmã caçula, cuja mão
o velho Alcenor segurava, na hora fatídica, no momento em que os sinos
dobravam, não a finados, mas assinalando o instante final para a saída da
procissão de Nossa Senhora das Graças, a padroeira da cidade; dobrava ele, no
dia 11 de outubro de 1959, às cinco horas da tarde, a última esquina em direção
à catedral e a curva fatal de seu destino. Muitos anos depois, o meu parente
Geraldinho (Geraldo Majella Nunes de Carvalho) contou-me que seu pai, o
magistrado Geraldo Majella de Carvalho, meu professor no curso de Direito, de
forma algo enigmática o levou a ver a lápide do túmulo de Alcenor, em que ele
leu o epitáfio: “Exemplo de honestidade, coragem e lealdade. ‘... E porque vivo
ninguém o venceria covardemente o mataram.’”
Nunca seu pai lhe explicou a razão dessa visita inesperada e
um tanto misteriosa em seu objetivo ao Cemitério da Igualdade. Nesse velho
campo santo, no qual talvez tenha se inspirado H. Dobal, para fazer um poema
homônimo, integrante de A Serra das Confusões, foi sepultada a minha prima
Verônica Melo, falecida no auge de sua beleza e juventude, em virtude de um
acidente com um fogareiro a álcool, cujo túmulo descobri por acaso, se é que
existe o que chamamos acaso; a poetisa Luíza Amélia de Queiroz, de cujo
mausoléu rebentou magnífica e copada gameleira, que partiu e retorceu a lápide,
como para lhe atender o pedido expresso em versos, de que desejava repousar à
sombra dessa árvore; o professor Amstein, engenheiro suíço, alto, de barba e
cabelos ruivos, de muita verve e imaginação, quase um mitômano, que, no dizer
de Renato Castelo Branco, era “barulhento, inconsequente e brincalhão”, e que
já chegara a Parnaíba “montado em uma meia-verdade”; minha irmã Josélia, morta
quando mal completara 15 anos, no apogeu de sua beleza e contagiante simpatia,
em cujo jazigo meu pai fez afixar uma placa com os versos imortais de Da Costa e
Silva: “Saudade – asa de dor do pensamento!”
Mas a Igualdade do nome é um tanto desmentida porque ao lado
de sepulcros singelos estão os suntuosos mausoléus de (outrora) poderosos
industriais, políticos e empresários.
3
Transposta a digressão do parágrafo acima, reponho a
locomotiva e o leitmotiv desta crônica memorialística e depoimento nos trilhos.
Ao longo desses quarenta anos de amizade, eu e o Alcenor Candeira Filho
participamos de muitos projetos literários em comum. À guisa de exemplo, sem
consulta a livros e documentos, fomos partícipes de várias coletâneas e
antologias, entre as quais cito: Poemágico – a nova alquimia, Poemarít(i)mos, A
Poesia Piauiense no Século XX (org. Assis Brasil), Baião de Todos (org. Cineas
Santos) e Antologia dos Poetas Piauienses (org. Wilson Carvalho Gonçalves).
Fomos coautores de A Poesia Parnaibana e Parnárias – poemas sobre Parnaíba, dos
quais também foram coautores Adrião José Neto (do primeiro) e Inácio Marinheiro
(do segundo). Fomos ambos colaboradores dos jornais alternativos Inovação,
Querela e Abertura, que circularam a partir da segunda metade da década de
1970.
Na seara da poesia e da prosa, arrolo os seguintes livros de
sua autoria: Sombras entre ruínas, Rosas e pedras, A insônia da cidade,
Antologia poética, Teoria do texto e outros poemas, Parnaíba: meu universo, Das
formas de influência na criação poética, Aspectos da Literatura Piauiense,
Literatura Piauiense no Vestibular, Memorial da cidade amiga e O crime da Praça
da Graça. Nestes livros estão estampados belos poemas da literatura piauienses
e fulgurantes textos da melhor prosa. Muitos analisam e elucidam aspectos da
mais alta relevância de nossa arte literária.
O certo é que, em resumo, sua prosa límpida, objetiva,
concisa, de bem delineada temática e redação, foi sempre admirável. E sempre
lhe aplaudi os poemas, de diferentes matizes, assuntos e época, seja o mais
singelo ou o mais criativo, o mais discursivo ou o de maior plasticidade, seja
o repassado de telurismo, a cantar a beleza arquitetônica ou natural de
Parnaíba, seja o que retrata figuras populares, dramáticas ou jocosas, ou ainda
os que denunciam as mazelas sociais e da política. Para não falar de suas
intertextualidades inventivas e de seus instigantes metapoemas.
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Não tive a honra de ser seu aluno. Contudo, ouvi vários
depoimentos sobre sua performance como professor, sobretudo de literatura, no
ensino médio. Fátima, minha mulher, foi sua aluna, e sempre teceu entusiasmados
elogios às suas aulas, ao modo como ele sabia prender a atenção do discípulo.
Sem dúvida pode ele ser considerado um dos melhores mestres dessa disciplina,
tanto por ser um cultor das letras, como por ser um leitor voraz de obras
literárias e de teoria do texto e da literatura. Posso, assim, afirmar que
muitas de suas aulas eram verdadeiras conferências, ele que é um esmerado
conferencista e tribuno, tanto pelo conteúdo, quanto pelo timbre, dicção e
cadência vocal. Sem medo de errar, posso dizer que ele foi magistral no
magistério, que sempre desempenhou com zelo, vocação e entusiasmo.
Já tive ocasião de reconhecer que ele foi pioneiro na
imprensa alternativa piauiense, sobretudo na que utilizava o mimeógrafo, na
qualidade de colaborador e de um dos idealizadores do jornal O Linguinha, cujo
número inaugural foi lançado na noite que marcou a passagem de 1971 para 1972.
Também afirmei o seu pioneirismo na publicação de livros mimeografados, no
formato “apostila”, ao publicar os livros Sombras entre ruínas (1975) e Rosas e
pedras (1976), com belos poemas elegíacos, em que se percebia certo pessimismo
e algum timbre ou ressonância do simbolismo, sem embargo de sua modernidade e
de denúncias socais e políticas, que atacavam as mazelas de então e de sempre.
Publiquei essas afirmativas em sítios internéticos e nunca recebi contestação,
razão pela qual as reitero agora.
Por oportuno e para não ficar me repetindo ou chovendo no
molhado, acho melhor trazer à colação o que já disse alhures:
Durante quase todo o século XX, até meados da década de 70, a
poesia feita no Piauí era um amálgama do simbolismo, do parnasianismo e,
principalmente, do romantismo, com a predominância de temáticas elegíacas e,
sobretudo, líricas, povoadas de amadas intocáveis, inatingíveis, com os poetas
chorando essas paixões interditas. Posso afirmar, sem medo de erro, que o
modernismo chegou muito tardiamente ao nosso Estado, mais precisamente na
segunda metade da década de setenta (ao menos enquanto sistema literário), com
a chamada geração mimeógrafo, geração 70 ou ainda geração pós-69, não importa
que nome se lhe queira dar. Chegou para ficar, revisitando todos os ismos e
todos os modernismos de 1922 até a contemporaneidade. Tanto isso é verdade, que
já tive oportunidade de afirmar no meu opúsculo Aspectos da Literatura
Parnaibana:
“É preciso que se diga e agora vou dizer, sem vaidade, mas
também sem falsa modéstia: antes de Alcenor Candeira Filho, com seus dois
livros (“Sombra entre Ruínas” e “Rosas e Pedras”), impressos em mimeógrafo,
pioneiros, inclusive em termos de Piauí, da utilização desse equipamento na
confecção de livros, que passou a designar uma geração literária, deste escriba
e do poeta V. de Araújo, ambos com poemas publicados, ainda nos idos de
1977/1978, nas páginas de “Folha do Litoral”, o que se viam em Parnaíba eram
poemas obsoletos e formalmente ultrapassados, sobretudo sonetos de cunho
parnasiano, escola já destroçada em 1922, pelo movimento dos modernistas, mas
cujos influxos ainda não haviam chegado a Parnaíba, ao menos publicamente,
através de livros e jornais.”
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Na qualidade de homem e de crítico literário sempre procurou
ser franco e veraz, e nunca gostou de fazer concessões espúrias e nem elogios
imerecidos. Por isso mesmo não faz promessas que não queira ou possa cumprir.
Tanto isso é verdade (e conto isso apenas para ilustrar o seu caráter), que o
confrade Homero Castelo Branco, com seu jeito bonachão, relata, com muita verve
e graça, uma anedota verídica a seu respeito. Numa disputa eleitoral da
Academia Piauiense, ele pediu, por telefone, o voto do poeta Alcenor. Este, com
bons modos, mas com a sua reconhecida franqueza, respondeu-lhe que já estava
comprometido comigo. Homero, de plano, lhe retrucou, com seu notável senso de
humor e presença de espírito: “Pois faz muito bem! Se eu também fosse
acadêmico, votaria era no Elmar”. Na eleição seguinte, o Alcenor e eu tivemos a
satisfação e honra de lhe sufragar o nome vitorioso.
Como servidor público foi exemplar, ao cumprir os seus
deveres com competência e responsabilidade, tanto nos cargos efetivos, como nos
de confiança. Procurador federal, foi agente do INSS em Parnaíba por vários
anos, sem que se ouvisse o menor ruído que pudesse desabonar sua conduta;
antes, pelo contrário. Foi secretário da Educação e de Gestão do município de
Parnaíba por doze anos, tendo exercido esses dois cargos com probidade e
correção administrativa.
Fora da literatura, consolidamos nossa amizade e admiração
recíprocas, que já remontam a quatro décadas, através de uma boa conversa e de
uns bons goles de cerveja, em saudáveis libações etílicas, como diria o saudoso
“confrade” Pereira, ou melhor, o imortal Pacamão, do livro de Assis Brasil e de
meus PoeMitos da Parnaíba. E ainda por cima, pertencemos à nação rubro-negra,
tendo os amigos Gervásio Castro e Fernando di Castro, irmãos e flamenguistas,
nos feito belas charges, em que envergamos a camisa e o glorioso escudo do
Flamengo.
Fomos motociclistas por muitos anos, de forma que não posso
esquecer os meus verdes anos parnaibanos, em que os meus vastos e bastos cabelos
ondulados farfalhavam ao vento, a percorrer em minha moto uivante as ruas
noturnas de Parnaíba, como um jovem lobisomem que então eu era. Ó tempos! Ó
saudades imortais de um tempo extinto, mas sempre ressuscitado na cornucópia
incessante da memória.
Ao fazer esta espécie de crônica memorialística e depoimento
sobre Alcenor Candeira Filho, tive o desiderato de prestar uma homenagem e um
reconhecimento a um notável intelectual, professor, poeta e escritor que, com
honestidade, sem ciúmes e sem inveja, sempre reconheceu, louvou e exaltou os
verdadeiros valores da literatura parnaibana e piauiense, tanto na tribuna de
uma sala de aula e dos auditórios, como através de seus livros e escritos
avulsos, publicados em periódicos e na internet.
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