segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O dia em que Saci Pererê deu um pau na turma do Halloween

 


O dia em que Saci Pererê deu um pau na turma do Halloween

 

Pádua Marques (*)

 

Fazia tempo que todo mundo esperava e finalmente aconteceu ali na baixada do São Luiz Gonzaga, próximo da casa do bispo. O encontro do temido Saci Pererê com aquele pessoal da Nova Parnaíba, os Halloweens, todos filhos de gente de dentro da rua e metidos a ricos. Eram uns cinco, se muito. Mas eram tudo rabo de burro. Gente que pro dê cá essa palha vivia aos bandos insultando com gracejos as filhas alheias mulheres, velhos, aleijados, essa gente que ia e vinha do Macacal no rumo da Grarita e dos Tucuns

 

Viviam esperando uma oportunidade pra bater no pobre morador do Macacal e que vivia de casa pra o trabalho numa oficina mecânica na rua Vera Cruz. Saci Pererê era aleijado, mas trabalhava muito na oficina do padrinho, seu Gervásio Coelho. O motivo da malquerença era uma brincadeira de mau gosto de alguns rapazes filhos de famílias dito ricas no Nova Parnaíba, ver o pobre Saci correr com uma perna só.

 

Saci Pererê era de paz, não mexia com ninguém, mas tinha uma vantagem de ser um grande capoeirista. Quem ensinou pra ele essa arte de seus antepassados ninguém até hoje soube dizer na Parnaíba. Muito feio, andava de calção vermelho e usava com um gorro na cabeça, na oficina era considerado um exemplo de funcionário e nos finais de semana era o goleiro no time do Cristal no Bariri.

 

Tinha já uns dezessete anos, negrinho taludo, mas tirando o aleijamento era muito querido por todos os vizinhos no Macacal e colegas de trabalho. Morava com a mãe, dona Dica, uma agregada dos Campos Veras, uma negra velha lavadeira de roupa, de canela fina, rosário de contas no pescoço, que costumava de vez em quando ir até a quitanda do velho Zacarias comprar um quarteirão de querosene pra alumiar a pequena casa de barro de duas portas, duas três janelas e apenas um quarto.

 

Naquele dia da briga, do encontro entre os Halloweens e o negro Saci Pererê o bairro Nova Parnaíba fedeu a cão sapecado! Tudo por volta do meio-dia, hora em que o negro Saci Pererê subia na hora do almoço pra casa. Vieram dois pela frente e três por trás os maiores, tudo no tope de quinze anos. Fecharam Saci Pererê. O mais afoito, um moleque de cabelos acobreados, com um pedaço de pau na mão, gritou pro aleijado correr dentro.

 

Ele de onde estava não se mexeu. Tentou abrir caminho. Um segundo fechou a passagem entre o muro da casa do bispo Dom Felipe Conduru Pacheco até a calçada. Saci Pererê recuou e procurou em vão uma pedra. Mas naquela altura o terceiro, um moleque franzino e de cara ossuda lhe deu um chute nas costelas. O chute fez Saci Pererê se abaixar. Na volta o aleijado deu um voo por cima dos dois mais próximos e já caiu derrubando o quarto, um dos maiores, que estava ali mais pra observar.

 

A partir daquele instante foi vista uma das maiores e mais extraordinárias brigas de rua perigosas já acontecidas na cidade de Parnaíba. Saci Pererê, uma figura das mais conhecidas do Macacal estava ali no Nova Parnaíba em desvantagem brigando com cinco rapazes. Foi cangapé, rabo de arraia, estrelinha pra ninguém botar defeito.

 

Nessa altura vinha passando uma mulher puxando uma menina e ao invés de procurar ajuda pra acabar com aquele contenda, ficou foi olhando se tremendo toda. Era uma briga desigual, quatro rapazes tentando bater em um pobre aleijado! Saci Pererê calculava os golpes e ia se defendendo. Saci lutava com a fúria de um cachorro doido. Os agressores abriam roda a foram fechando. E foi juntando gente na rua, os estudantes do Ginásio São Luiz Gonzaga jogando areia e até aposta estava sendo feita.

 

Foi coisa de uma meia hora de luta desigual. Quatro contra um! Saci estava cansado, sem seu gorro, todo coberto de areia, mas não desistia. E foi chegando mais gente, uns tentando apartar a briga, outros deixando, os gritos, os assobios, nomes feios, filha dessa e filho daquele, mata esse negro aleijado, faça isso com o pobre não!

 

Alguém se lembrou de bater na porta da casa de Dom Felipe Conduru Pacheco, que naquele momento ainda devia estar chochilando depois do almoço, outro mais adiante pensou no prefeito Acrísio Furtado ou do outro lado nos Campos na igreja de São Sebastião, de padre Roberto Lopes. E a briga ia engrossando o movimento do Nova Parnaíba. No meio daquele alvoroço sem tamanho, alguém já estava no caminho da casa da dona Dica.

 

E aqueles rabos de burro, meninos de boas famílias, que não queriam nada na vida, de pais metidos a políticos importantes, muitos corretores de negócios nas grandes firmas comerciais na rua Grande, insultando em plena luz do dia um pobre negrinho aleijado, trabalhador de uma oficina de seu Gervásio Coelho! Que já nem se importavam com a presença de tanta gente. Coisa de chamar a atenção de toda a Nova Parnaíba!

 

Saci Pererê estava cansado, sujo de areia, quase nu, suado, tinha perdido sua hora de descanso do almoço, mas os cinco rapazes do Nova Parnaíba, esse era filho de doutor fulano de tal, aquele mais lá, sobrinho do professor sicrano, esse aqui era filho de dona beltrana e assim as identidades iam aparecendo.

 

Os rapazes tinham levado uma surra e tanto. Felizmente não houve sangue. Passava de uma hora da tarde, muita gente voltando pra seus serviços no centro de Parnaíba. A briga só acabou com a chegada de um tocador de tuba da Banda Municipal que tirou o cinturão e saiu cobrindo todo mundo. Correu gente batendo o pé na bunda, tanto os brigões quanto quem fazia plateia. O cinturão foi descendo nas costas, no espinhaço, nas pernas, onde fosse pegando. O músico não queria conversa e nem de saber quem era esse ou aquele. Todo mundo já pra suas casas! E Saci Pererê, que tratasse de tomar vergonha e deixasse de procurar briga com filhos de autoridades!!

 

*Pádua Marques, romancista, cronista e contista. Membro efetivo da Academia Parnaibana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba.

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