No pré-cisco, antes da solenidade: Elmar Carvalho, Carvalho Filho, Ana Ferreira e Antonio Gallas Pimentel |
OS VAREIROS E A PARNAÍBA DE
OUTRORA (*)
Elmar Carvalho
Estes escritos de Raimundo Souza
Lima estiveram perdidos durante alguns anos, após sua morte. Depois, foram
encontrados e publicados em 1988, graças à “influência de poetas e escritores
vinculados ao Grupo INOVAÇÃO, junto ao professor universitário” Israel Correia,
na época secretário de Cultura, Desportos e Turismo do Estado do Piauí. Tenho
orgulho de haver pertencido ao jornal Inovação, fundado por Reginaldo Costa e
Franzé Ribeiro, e vibrei com a publicação deste livro, cujo autor cheguei a
conhecer em 1976, numa roda de cerveja, no Clube do SESC Beira Rio, em Parnaíba.
Mesmo assim a obra contém apenas
menos da metade do que foi escrito por Souza Lima, segundo informação de Raul
Furtado Bacelar em discurso na Academia Parnaibana de Letras, conforme está
contido na apresentação do poeta e escritor Alcenor Candeira Filho. A outra
parte do livro talvez se encontre extraviada para sempre, ou se encontre oculta
em alguma esconsa gaveta, à espera de algum garimpeiro de velhos papéis
literários. Raul Bacelar era o ocupante da cadeira 21, da qual é patrono Souza
Lima. Indo minha família morar em Parnaíba em 1975, conheci o farmacêutico Raul
Bacelar, com a sua indefectível e personalíssima gravata borboleta, em sua
antiga farmácia de manipulação, hoje transformada em museu, e o entrevistei,
certa vez, para uma das edições do jornal Inovação.
Esta edição, que agora estamos entregando
à luz da publicidade, é belíssima e bem-organizada, com elucidativas e bem
escritas páginas preambulares. Seu projeto gráfico foi elaborado com esmero, em
papel de ótima qualidade. Ao longo de suas páginas nos deparamos com
pertinentes e históricas fotografias, além de enriquecedoras ilustrações, de
Iri Santiago. Portanto, além de seu valioso conteúdo, o livro é uma verdadeira
obra de arte; vale dizer, é um objeto artístico em si mesmo. Esta segunda
edição foi patrocinada pelo Instituto Amostragem, cujo proprietário é o
professor universitário e estatístico João Batista Mendes Teles, que foi
colaborador assíduo do jornal Inovação, para o qual elaborou importantes
pesquisas, em rigorosa metodologia científica, para detectação e análise de
mazelas sociais da cidade de Parnaíba.
Raimundo Souza Lima foi casado
com Raimunda Amélia de Moraes Lima, com quem teve os filhos Maria de Lourdes,
Anchieta, Francisco das Chagas, Paulo Roberto, Rita de Cássia e Raimundo, mais
conhecido como Juca Lima. Dentre eles, conheci o Francisco ou Chico Lima, que
na época era um tanto boêmio e brincalhão, com as suas piadas de circunstância;
soube que depois veio a se tornar pastor de uma igreja evangélica, e se afastou
das lides etílicas. O Juca Lima se tornou um excelente artesão, um verdadeiro
mestre de esculturas de madeira, em que alia a sua admirável criatividade com a
sua esmerada técnica, de lavor sutil e primoroso.
Nasceu o autor na cidade de
Parnaíba, em 1911, onde faleceu em 1976, portanto, aos 65 anos de idade.
Consequentemente, foi contemporâneo do apogeu e decadência da exploração da
maniçoba e de nosso extrativismo do tucum, do óleo de coco babaçu e da cera de
carnaúba, em que nossa cidade alcançou o seu fastígio e fausto, com a
construção de esplêndidos solares, palacetes e sobrados. Nessa época, a cidade
sediava as maiores empresas do Piauí, entre as quais cito: Moraes S. A., Casa
Inglesa, Casa Marc Jacob, Pedro Machado, Poncion Rodrigues, que depois entraram
em declínio. Em Campo Maior e em Parnaíba, conheci todas em plena atividade.
Em seus relatos e episódios,
extraídos de sua memória, como ele próprio o diz, o autor se reporta a essa
época de muita movimentação comercial no Porto Salgado e no entorno do Porto
das Barcas, com o trabalho e burburinho de embarcadiços, carregadores, comerciários,
comerciantes e compradores. Nas imediações, ficavam os prostíbulos da Munguba e
da Quarenta. Em meu romance Histórias de Évora (cidade fictícia, misto de
Parnaíba e Campo Maior) tentei sintetizar essa azáfama:
“As calçadas desses armazéns eram
lisas, impregnadas pelo pó que ia aos poucos se desprendendo dessas ceras, e
eram alisadas pelo pisotear constante dos transeuntes, que vinham fazer suas
compras ou exercer suas atividades laborais no centro comercial. Eram figuras
emblemáticas os carregadores, de forte compleição, que carregavam grandes sacas
desses produtos sobre a cabeça, protegida apenas por uma rodilha de pano, e os
porcos d’água, que atuavam no porto improvisado do Paraguaçu, com os seus
pequenos trapiches, toscos depósitos e acanhado guindaste.”
O guindaste, movido a vapor, um
dia encrencou, numa manobra arriscada; caiu sobre seu proprietário e o matou. A
maria fumaça, vinda da estação, seguia pelo meio da Rua Grande até esbarrar na
beira do cais.
O autor presenciou esse grande
tráfego de rebocadores, alvarengas, vapores, barcos do tipo gaiola, chalanas,
canoas e balsas de talo de buriti, no Porto Salgado e no Porto das Barcas,
ainda menino, quando ia lavar o cavalo de seu pai no Igaraçu, e aproveitava
para fazer suas traquinagens, como nadar, dar tainhas e cangapés. Viu,
certamente, as embarcações da Lloyd Brasileiro e da Booth Line, e os hidroaviões
da Condor, que pousavam no Igaraçu. Nessa fase de sua existência foi vendedor
de bolos de goma, produzidos por sua mãe.
Adulto, pôde presenciar com mais
acuidade esse movimento comercial, quando exerceu suas funções de operário,
ferroviário, comerciário, contabilista e despachante. Como autodidata, adquiriu
certa erudição e aprendeu a falar a língua inglesa. Assim, conseguiu ser
jornalista e tradutor de cartas comerciais. Certamente, sendo Parnaíba ainda
uma cidade pequena, deve ter conhecido os professores, jornalistas,
intelectuais, poetas e escritores desse tempo, entre os quais citaria Benedito
dos Santos Lima, o Bembém, R. Petit, Alarico da Cunha e o célebre professor
Amstein.
Reza a “lenda urbana” que Bembém
lhe teria pedido um artigo sobre Jesus Cristo, ao que o nosso autor, em
evidente blague, lhe teria perguntado: contra ou a favor? R. Petit, magnífico
poeta, ao contrair lepra, com medo de uma espécie de “prisão para tratamento”
no leprosário, por sugestão do alcaide da época, deixou Parnaíba para sempre,
em 1944, esgueirando-se pelas sombras e silêncio de certa madrugada melancólica.
Alarico, que tirava o chapéu para os espíritos que só ele via, e Amstein,
mítico e mistificador, se tornaram mitos em meus PoeMitos da Parnaíba.
O autor não alcançou sua cidade
se tornar uma nova fênix, quando Parnaíba se reinventou, através da prestação
de serviços, sobretudo no setor da Educação e da Saúde, do empreendedorismo
turístico e da instalação de novas e opulentas empresas comerciais, no setor de
varejo e atacado, com inúmeras pessoas de municípios da região norte do Piauí,
do Ceará e do Maranhão vindo se abastecer ou buscar prestação de serviços em
nosso município.
Raimundo Souza Lima tinha o que
contar e sabia contar, em boa linguagem, em estilo fluente, escorreito,
conciso, claro e objetivo. Soube contar seus “causos”, soube relatar seus
episódios, alguns jocosos ou anedóticos, soube narrar as peripécias de sua vida
e do que viu, soube traçar o retrato e o panorama de uma época, de suas figuras
miúdas, simples, populares e folclóricas, com engenhosa arte.
No belo poema que serve de
epígrafe ao livro e que tem o seu título, o poeta Alcenor Candeira Filho
pergunta: “homens e mulheres da beira rio beira vida / sousalimamente falando /
cadê os Vareiros do Rio Parnaíba?”
Respondo: ficaram encantados e redivivos
nas páginas imortais do livro de Souza Lima.
(*) Palestra proferida no dia
04/05/2024, na Academia Piauiense de Letras, na solenidade em que foram
lançadas as obras Almanaque da Parnaíba, edição comemorativa do Centenário do periódico
e dos 40 anos de fundação da Academia Parnaibana de Letras, O que fazer com o
militar – anotações para uma nova defesa nacional, de Manuel Domingos Neto, e
Vareiros do Rio Parnaíba & outras histórias, de Raimundo Souza Lima. Foram seus
apresentadores: José Luiz de Carvalho, presidente da APAL, Elmar Carvalho e Felipe
Mendes. Também falaram Manuel Domingos Neto e João Batista Mendes Teles,
proprietário do Instituto Amostragem, editor de Vareiros (...).
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirRelatos maravilhosos de Nossa Parnahyba. Recordei de meus pais, que sempre nos passava fatos acontecidos e o que na época passava na televisão. Meu pai era assíduo e assinante da revista SELEÇÃO.
ResponderExcluirEste vareirou varou décadas e vem virando canto como a Viradouro em emblemáticos carnavais.
ResponderExcluirPela metade do historio, parece pastorear cenas indeléveis, que o Poeta que não enverga como o Carvalho, consegue destracar o dito e luzir verdades de uma Parnaiba alavancante do que de melhor em progresso.
Lima foi ligando e limando retalhos dos feitos e hoje, é sublime saber-se que, ao varar noites, para nos legar quem foi Parnaiba, ao lado de Assis Brasil, faz tombar a história e erguer a Bandeira de que somos privilégios e privilegiados desde sempre.
Parabéns, Poeta!
Belíssimo texto!
Wilton Porto
👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻🙏🙏🙏🙏🙏🙏
Muito obrigado, amigos Inês e poeta Wilton Porto.
ResponderExcluirBoa tarde, Elmar Carvalho, os vareiros são trabalhadores muito importantes numa época de luta pela subsistência em Parnaíba, também foram retratados num livro de memória de Humberto de Campos. Alguns até morriam nesse trabalho exaustivo. Belo escrito.
ResponderExcluirEverardo - Parnaibano
Valeu, caro Everardo.
ExcluirANO DE 1964.
ResponderExcluirPerto do Porto das Barcas
Eu residi por seis meses,
Tomava café nas bancas
Das cafezeiras cortezes;
Ver das barcas carregadas
As saídas e chegadas
Fui ali diversas vezes.
(Joames).
Ótimo painel de Parnaíba de tempos memoriais, e minucioso comentário de Vareiros. Tenho grande simpatia por resgatar obras esquecidas, verdadeiras artes literárias e legados históicos.
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