quinta-feira, 30 de outubro de 2025

DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO




DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO INCONTÍNUO                              

Elmar Carvalho


Fui inoculado pelo vício da leitura aos nove ou dez anos de idade, quando, por um curto período, fomos morar numa zona rural de Campo Maior. Acostumado à movimentação e às diversões da cidade, fui acometido de forte tristeza. Voltei-me, então, para os livros da pequena biblioteca de meu pai, que depois, em suas viagens semanais ou quinzenais à cidade, me trazia outros volumes — tanto da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito quanto da de minha madrinha Mirozinha, prima legítima de minha mãe, que lecionava nesse colégio.

Em face dessas leituras, contraí a “vocação” de um dia ser escritor. Logo comecei a escrever pequenos textos em verso e em prosa, sobretudo crônicas e contos. Aos dezesseis anos, a pedido de meu pai, que mantinha boas relações com os diretores do jornal A Luta, de Campo Maior, tive algumas crônicas e contos publicados nesse periódico.

Entre as minhas leituras favoritas estavam obras de poesia e de ficção, inicialmente os textos que se encontravam nas antologias escolares de meu pai. Na pequena biblioteca paterna havia romances, contos e até mesmo um livro sobre a história da literatura brasileira. E havia o então célebre romance O Mártir do Gólgota, de Pérez Escrich, que narrava a vida de Jesus, baseada nos Evangelhos e na tradição — e, creio, também em evangelhos apócrifos.

Quando bem criança, consta que rasguei algumas páginas desse romance, de modo que, na época em que o li, parcialmente, ficava ansioso e triste por perder a sequência das histórias narradas. Papai tentou consegui-lo novamente, para que eu o lesse na íntegra, mas sem sucesso. Somente em plena maturidade consegui comprar um exemplar usado.

Embora tivesse interesse por vários temas, como história e ciência, ainda jovem senti que algum dia escreveria textos memorialísticos. Assim, para me adestrar nessa seara, passei a ler obras como diários, memórias, autobiografias e até mesmo autoficções — memórias fictícias e “quase memórias”.

Dessa forma, li, entre outros: Humberto de Campos, Pablo Neruda, Josué Montello, Pedro Nava, Gilberto Freyre, Sebastião Nery, Saulo Ramos, José Sarney, Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Entre os piauienses, li Leônidas de Castro Melo, Carlos Augusto Monteiro e Higino Cunha.

Degustei Memórias, que considero um dos melhores livros no gênero, na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor, jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e, generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro. Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.

Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo, ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.

Nos gêneros da autoficção, das memórias fictícias e das “quase memórias”, tive o prazer de ler Fontes Ibiapina, Condessa de Ségur, Carlos Heitor Cony, Alberto da Costa e Silva, Machado de Assis, Syrie James (Os Diários Secretos de Charlotte Brontë) e Manuel Antônio de Almeida. Entre as obras de ficção de alguns desses autores estão Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias de um Burro, Memórias de um Canário e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Com essas e outras leituras, além do estudo de teoria e crítica literárias, julguei-me preparado para escrever o meu Diário Incontínuo e o romance Histórias de Évora. Este último é uma obra de ficção, embora muitos leitores me perguntem se não existem passagens autobiográficas. É claro que sim — afinal, ninguém cria do nada. Acredito que nem mesmo Deus cria do nada, já que Ele é tudo, e tudo cria a partir apenas de Sua vontade.

O escritor, crítico literário e professor Cunha e Silva Filho, com sua reconhecida argúcia e faro quase detetivesco, ainda no início da publicação sequenciada e virtual do livro, percebeu e aplaudiu a diversidade temática e de interesses do Diário, inclusive quanto às artes plásticas. Postou, em 13/02/2010, o seguinte comentário:

“Por isso, gostei do seu comentário, revelador de um amplo interesse pelas artes em geral e, no caso específico, pela escultura e suas implicações com movimentos de vanguarda que deixaram marcas indeléveis nas múltiplas formas de criação artística. Sei também quanto aprecia a pintura — um Dalí, por exemplo. Não é verdade, amigo? Explore bem esse lado de crítica das artes; lhe cabe bem. Boa surpresa do seu intelecto.”

O Diário Incontínuo, apesar do título, é uma sequência de crônicas memorialísticas que escrevi de 17/01/2010 a 25/02/2016. Portanto, em grande esforço de disciplina e constância, produzi esses textos durante pouco mais de seis anos. Nos primeiros meses, escrevia três por semana; depois, reduzi para duas e, mais adiante, apenas uma.

Vejamos o que disse Carlos Evandro Martins Eulálio sobre o livro, em seu “luxuoso” e pertinente prefácio:

“As crônicas do Diário Incontínuo, marcadas pelo profundo exercício da memória, ocuparão um lugar de destaque na produção literária de Elmar Carvalho. Autor de uma obra em construção, como ele próprio insiste em afirmar, agora, como cronista de refinada sensibilidade de poeta, desvenda o texto como espaço de reflexão com discreto toque de ironia e acentuado requinte de bom humor, a partir de suas vivências e percepções acumuladas ao longo do tempo.”

Não quis, em meu livro, misturar verdade e invenção, realidade e ficção. Porfiei em dizer a verdade — ou, pelo menos, a verdade possível, porquanto, algumas vezes, incorporamos como memórias próprias fatos de que apenas ouvimos falar. São as chamadas falsas memórias. Entretanto, certas omissões são inevitáveis, tanto para não ferir os outros quanto a nós mesmos. A memória é seletiva — e um diário não comporta tudo.

O estopim para esses textos podia ser uma simples conversa, uma leitura, um sonho, uma lembrança insólita e imprevista ou um insight.

Para não me repetir, transcrevo o que escrevi em minha apresentação:

“Dessa forma, ao longo de seis anos (2010–2016), transpus para estas páginas muito da vida cultural, artística, literária e social do Piauí, motivado, como disse acima, por diferentes fatores. Narrei eventos artísticos e culturais, mormente os literários; comentei alguns livros lançados nesse período; referi-me a personalidades literárias e históricas, algumas ainda vivas, outras pertencentes a um passado mais remoto. Sem dúvida, alguns desses registros são quase resenhas de obras literárias e breves perfis biográficos, embora recheados de outros ingredientes e condimentos.

(...)

Em resumo, embora mantendo, assim espero, o formato de um diário, na realidade o que fiz mesmo foi uma sequência de crônicas, escritas durante esses seis anos, de diferentes tamanhos e conteúdos, referindo-se a tempos atuais e a tempos remotos, idos e vividos.

Algumas poderiam ser consideradas memorialísticas, confessionais, narrativas, contos, “causos”, críticas, breves ensaios, comentários, depoimentos, sonhos, devaneios ou simples relatos de fatos recentes ou antigos, alguns históricos.

Contudo, nenhuma poderia ser rotulada de ficção.” 

(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de roteiro mnemônico, no auditório da Academia Piauiense de Letras, em 25 de outubro de 2025.

3 comentários:

  1. O Dr. Foi ligado à literatura desde bem novo. Por isso tornou-se está grande potência. Parabéns.

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  2. Parabéns, amigo Elmar, por desde cedo ter essa aptdão pela leitura, ela é libertadora da nossa mente, viajamos sem viagem, dormimos acordados.
    Everardo

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  3. Parabéns ao grande escritor, cuja vida é um testemunho de amor às letras, à família, aos amigos, a Deus e ao bem maior.

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