DISCURSO DE LANÇAMENTO DE DIÁRIO
INCONTÍNUO                               
Elmar Carvalho
Fui inoculado pelo vício da leitura aos nove ou dez anos de
idade, quando, por um curto período, fomos morar numa zona rural de Campo
Maior. Acostumado à movimentação e às diversões da cidade, fui acometido de
forte tristeza. Voltei-me, então, para os livros da pequena biblioteca de meu
pai, que depois, em suas viagens semanais ou quinzenais à cidade, me trazia
outros volumes — tanto da biblioteca do Grupo Escolar Valdivino Tito quanto da
de minha madrinha Mirozinha, prima legítima de minha mãe, que lecionava nesse
colégio.
Em face dessas leituras, contraí a “vocação” de um dia ser
escritor. Logo comecei a escrever pequenos textos em verso e em prosa,
sobretudo crônicas e contos. Aos dezesseis anos, a pedido de meu pai, que
mantinha boas relações com os diretores do jornal A Luta, de Campo Maior, tive
algumas crônicas e contos publicados nesse periódico.
Entre as minhas leituras favoritas estavam obras de poesia e
de ficção, inicialmente os textos que se encontravam nas antologias escolares
de meu pai. Na pequena biblioteca paterna havia romances, contos e até mesmo um
livro sobre a história da literatura brasileira. E havia o então célebre
romance O Mártir do Gólgota, de Pérez Escrich, que narrava a vida de Jesus,
baseada nos Evangelhos e na tradição — e, creio, também em evangelhos
apócrifos.
Quando bem criança, consta que rasguei algumas páginas desse
romance, de modo que, na época em que o li, parcialmente, ficava ansioso e
triste por perder a sequência das histórias narradas. Papai tentou consegui-lo
novamente, para que eu o lesse na íntegra, mas sem sucesso. Somente em plena
maturidade consegui comprar um exemplar usado.
Embora tivesse interesse por vários temas, como história e
ciência, ainda jovem senti que algum dia escreveria textos memorialísticos.
Assim, para me adestrar nessa seara, passei a ler obras como diários, memórias,
autobiografias e até mesmo autoficções — memórias fictícias e “quase memórias”.
Dessa forma, li, entre outros: Humberto de Campos, Pablo
Neruda, Josué Montello, Pedro Nava, Gilberto Freyre, Sebastião Nery, Saulo
Ramos, José Sarney, Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Entre os piauienses,
li Leônidas de Castro Melo, Carlos Augusto Monteiro e Higino Cunha.
Degustei Memórias, que considero um dos melhores livros no
gênero, na segunda metade da década de 1970, por empréstimo de Alcenor Candeira
Filho. No final dessa década, ou início da seguinte, visitei o professor,
jornalista e escritor Antonio Gallas Pimentel e lhe disse que desejava reler o
livro, mas não o encontrava à venda. Ele me mostrou uma coleção das obras quase
completas de Humberto de Campos — bem impressa, em capa dura — e,
generosamente, quis me ofertá-la. Relutei, alegando que era um presente de
considerável valor, mas ele respondeu que, se eu não aceitasse, daria a outro.
Não tive mais como recusar. Essa amizade me fora recomendada pelo professor
Joaquim Furtado de Carvalho, primo de meu pai.
Três décadas depois, perto da Banca do Louro, encontrei o
engenheiro e auditor-fiscal do Trabalho Paulo César Lima com um belo exemplar
de Memórias e Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos, autografado pelo
desembargador maranhense Lourival Serejo. Pedi-lhe para folhear; ao devolvê-lo,
ele insistiu que eu ficasse com o exemplar, dizendo que me seria mais útil. Um
ano depois, em 15/10/2011, o Fonseca Neto me presenteou com os dois volumes do
Diário Secreto, do mesmo autor, publicado pelo Instituto Geia em 2010.
Nos gêneros da autoficção, das memórias fictícias e das
“quase memórias”, tive o prazer de ler Fontes Ibiapina, Condessa de Ségur,
Carlos Heitor Cony, Alberto da Costa e Silva, Machado de Assis, Syrie James (Os
Diários Secretos de Charlotte Brontë) e Manuel Antônio de Almeida. Entre as
obras de ficção de alguns desses autores estão Memórias de um Sargento de
Milícias, Memórias de um Burro, Memórias de um Canário e Memórias Póstumas de
Brás Cubas.
Com essas e outras leituras, além do estudo de teoria e
crítica literárias, julguei-me preparado para escrever o meu Diário Incontínuo
e o romance Histórias de Évora. Este último é uma obra de ficção, embora muitos
leitores me perguntem se não existem passagens autobiográficas. É claro que sim
— afinal, ninguém cria do nada. Acredito que nem mesmo Deus cria do nada, já
que Ele é tudo, e tudo cria a partir apenas de Sua vontade.
O escritor, crítico literário e professor Cunha e Silva
Filho, com sua reconhecida argúcia e faro quase detetivesco, ainda no início da
publicação sequenciada e virtual do livro, percebeu e aplaudiu a diversidade
temática e de interesses do Diário, inclusive quanto às artes plásticas.
Postou, em 13/02/2010, o seguinte comentário:
“Por isso, gostei do seu comentário, revelador de um amplo
interesse pelas artes em geral e, no caso específico, pela escultura e suas
implicações com movimentos de vanguarda que deixaram marcas indeléveis nas
múltiplas formas de criação artística. Sei também quanto aprecia a pintura — um
Dalí, por exemplo. Não é verdade, amigo? Explore bem esse lado de crítica das
artes; lhe cabe bem. Boa surpresa do seu intelecto.”
O Diário Incontínuo, apesar do título, é uma sequência de
crônicas memorialísticas que escrevi de 17/01/2010 a 25/02/2016. Portanto, em
grande esforço de disciplina e constância, produzi esses textos durante pouco
mais de seis anos. Nos primeiros meses, escrevia três por semana; depois,
reduzi para duas e, mais adiante, apenas uma.
Vejamos o que disse Carlos Evandro Martins Eulálio sobre o
livro, em seu “luxuoso” e pertinente prefácio:
“As crônicas do Diário Incontínuo, marcadas pelo profundo
exercício da memória, ocuparão um lugar de destaque na produção literária de
Elmar Carvalho. Autor de uma obra em construção, como ele próprio insiste em
afirmar, agora, como cronista de refinada sensibilidade de poeta, desvenda o
texto como espaço de reflexão com discreto toque de ironia e acentuado requinte
de bom humor, a partir de suas vivências e percepções acumuladas ao longo do
tempo.”
Não quis, em meu livro, misturar verdade e invenção,
realidade e ficção. Porfiei em dizer a verdade — ou, pelo menos, a verdade
possível, porquanto, algumas vezes, incorporamos como memórias próprias fatos
de que apenas ouvimos falar. São as chamadas falsas memórias. Entretanto,
certas omissões são inevitáveis, tanto para não ferir os outros quanto a nós
mesmos. A memória é seletiva — e um diário não comporta tudo.
O estopim para esses textos podia ser uma simples conversa,
uma leitura, um sonho, uma lembrança insólita e imprevista ou um insight.
Para não me repetir, transcrevo o que escrevi em minha
apresentação:
“Dessa forma, ao longo de seis anos (2010–2016), transpus
para estas páginas muito da vida cultural, artística, literária e social do
Piauí, motivado, como disse acima, por diferentes fatores. Narrei eventos
artísticos e culturais, mormente os literários; comentei alguns livros lançados
nesse período; referi-me a personalidades literárias e históricas, algumas
ainda vivas, outras pertencentes a um passado mais remoto. Sem dúvida, alguns
desses registros são quase resenhas de obras literárias e breves perfis
biográficos, embora recheados de outros ingredientes e condimentos.
(...)
Em resumo, embora mantendo, assim espero, o formato de um
diário, na realidade o que fiz mesmo foi uma sequência de crônicas, escritas
durante esses seis anos, de diferentes tamanhos e conteúdos, referindo-se a
tempos atuais e a tempos remotos, idos e vividos.
Algumas poderiam ser consideradas memorialísticas,
confessionais, narrativas, contos, “causos”, críticas, breves ensaios,
comentários, depoimentos, sonhos, devaneios ou simples relatos de fatos
recentes ou antigos, alguns históricos.
Contudo, nenhuma poderia ser rotulada de ficção.”  
(*) Reconstituição de meu discurso, pronunciado a partir de
roteiro mnemônico, no auditório da Academia Piauiense de Letras, em 25 de
outubro de 2025.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Dr. Foi ligado à literatura desde bem novo. Por isso tornou-se está grande potência. Parabéns.
ResponderExcluirParabéns, amigo Elmar, por desde cedo ter essa aptdão pela leitura, ela é libertadora da nossa mente, viajamos sem viagem, dormimos acordados.
ResponderExcluirEverardo
Parabéns ao grande escritor, cuja vida é um testemunho de amor às letras, à família, aos amigos, a Deus e ao bem maior.
ResponderExcluirParabéns Belo texto sobre a literatura
ResponderExcluirGrande Elmar Carvalho !
ResponderExcluirMuito obrigado, prezados amigos, pelo acesso e comentários.
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