30 de abril Diário Incontínuo
A MORTE E A CEGUEIRA DE KETY
Elmar Carvalho
Poeta, contista, cronista, romancista, memorialista e diarista. Membro da Academia Piauiense de Letras. Juiz de Direito aposentado. *AS MATÉRIAS ASSINADAS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, E NÃO TRADUZEM OBRIGATORIAMENTE A OPINIÃO DO TITULAR DESTE BLOG.
Incluindo o primeiro artigo meu, “Crime de lesa-pátria”, contamos agora, ao todo, com quatro artigos em defesa da integridade física e espiritual de Amarante. Dos outros dois, um é do embaixador, poeta, historiador e acadêmico Alberto da Costa e Silva, “Em defesa de Amarante” e o outro, “SOS Amarante”, do escritor e bancário amarantino radicado em Brasília, Armando Gomes da Silva,” todos publicados em jornais ou em sites da Internet.
Cada um dos artigos tem um objetivo único: servir como um alerta para as autoridades envolvidas com um suposto plano destinado a construir uma usina hidrelétrica que, se levado a efeito, iria submergir a histórica cidade de Amarante – patrimônio arquitetônico e cultural inseparável da formação histórica do Estado do Piauí. Quaisquer tentativas de levar a cabo essa ideia absurda e abominável seria interpretada como um exemplo inédito de obscurantismo cultural contra os piauienses. Não há argumento de ordem técnica ou econômica que resista à força da realidade histórico-cultural de um bem inestimável e intransferível, que é Amarante, a qual foi transformada em cidade através da Resolução provincial nº 734, de 4 de agosto de 1871, levando o nome de Amarante como homenagem à cidade portuguesa homônima.
Para reforçar a nossa defesa incondicional, por coincidência ou não, foram recentemente estampadas na respeitada revista Presença, nº 43, Ano XXIV, duas magníficas matérias, a primeira, “Cultura, Memória e Identidade da Cidade de Amarante”, da autoria conjunta de Olavo Pereira da Silva e Claudina Cruz dos Anjos, ambos arquitetos e urbanistas. Claudia Cruz dos Anjos é, por sinal, chefe do IPHAN PI. A segunda, de título “Amarante”, é assinada pela jornalista Natacha Maranhão.
Antes que qualquer tentativa se faça por parte dos planejadores dos governos federal e estadual, conviria alertar os idealizadores dessa equivocada ideia de construção de usina hidrelétrica num município do porte de Amarante, que leiam primeiro alguns estudos e pesquisas sobre este município escritos por autores da terra a fim de que fique bem explícita a temeridade da iniciativa. São trabalhos que nos ensinam a conhecer a memória da cidade, as suas tradições centenárias, o seu folclore, os seus costumes, o seu sistema escolar, o seu povo e sua vida social e literária, esta últimas das mais fecundas por reunir um número de figuras notáveis de escritores, historiadores, poetas, filólogos, sociólogos, artistas, inventores, magistrados, músicos, jornalistas, educadores, figuras políticas de projeção nacional, enfim, nomes que se notabilizaram em diversos campos da atividade humana. Não resisto à tentação de mencionar algumas obras que tematizam especificamente a cidade de Amarante em seus múltiplos aspectos, nas suas dimensões históricas e/ou literárias
SILVA, Da Costa e. Zodíaco (1917) na seção “Minha Terra”; Verhaeren (1917), na seção “Sob outros céus”.Na sua generalidade, a obra toda quase do poeta metaforiza a cidade de Amarante.
MOURA, Clóvis. Argila da memória. São Paulo: Ed. Fulgor, 1963. Nesta obra, o poeta centraliza seu tema nos motivos suscitados pela cidade de Amarante
........... Flauta de argila.- memória revisitada. Teresina:Gráfica Editora Júnior Ltda., 1992. Nesta obra, o autor, mais uma vez revisita, pela memória, a velha Amarante, o Piauí como um todo. Apresentação de M. Paulo Nunes.
CASTRO, Nasi. Amarante – um pouco da história e da vida da cidade. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1986, 64 p. Introdução de M. Paulo Nunes.
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-------. Amarante folclore e memória. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1994, 226 p. Introdução de Dagoberto Carvalho Jr. Prefácio de Virgílio Queiroz.
.......... Amarante folclore e memória. 3 ed. Teresina; COMEPI, 2001. Reproduz Introdução de Dagoberto Carvalho Jr. e prefácio de Virgílio Queiroz. .
MOURA, Eleazar . Amarante antigo: alguns nomes e fatos. Gráfica Santa Maria, s. d.177p, s. l. Com fotografias.
SOUSA CASTRO, Olemar de. Minhas duas pátrias. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2009 Ver o capítulo “Voltando a Amarante”, p. 53-64.
CASTELOÇ BRANCO, Homero. Ecos de Amarante. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2001, 423 p.
Estes subsídios, bem como outros, devem ser lidos e meditados pelos responsáveis por decisão que venha pôr em risco um município-patrimônio do Estado do Piauí. Ou seja, que de imediato Amarante seja incluída no grupo de cidades piauienses que devem ser preservadas e protegidas como patrimônio inalienável física e culturalmente. Dessa premissa não podemos abrir mão sob hipótese alguma e, por todos os modos e instâncias, devemos lutar incansavelmente para que Amarante permaneça como parte necessária, integral e irredutível no conjunto dos municípios do Piauí.
Não só os amarantinos natos ou ali radicados, mas todos os piauienses de bem, representados por todos os setores da sociedade local devem, sem tergirversações, cerrar fileiras a fim de que o plano insano de varrer Amarante do mapa do Piauí seja abortado definitivamente.É de apoio e incentivo do IPHAN PI que Amarante precisa, assim como de outras instâncias estaduais unidas a outros órgãos subordinados ao Ministério da Cultura de modo que o município amarantino seja dotado - isso sim – de verbas que venham restaurar seu espólio cultural-arquitetônico-paisagístico. Amarante carece de cuidados, não de destruição. O Estado brasileiro não tem o direito de praticar uma ação inominável dessas.
Creio, portanto, que a autonomia física e arquitetônica de Amarante, a incolumidade de seu povo, suas residências, seu espaço urbano, suas memórias, seu rico acervo cultural, seu lugar de direito e de fato na história do povo piauiense não hão de sofrer qualquer ação governamental que venha constituir motivo de repúdio da parte dos seus filhos no presente e no futuro, os quais preservarão com orgulho a memória dos seus antepassados. Espero que todos os piauienses e brasileiros de bem hão de unir forças em torno dessa questão. Não podemos baixar a guarda.
NO ANO de 1985, quando lancei meu primeiro livro, ele, que mantinha a coluna “Ponderações Literárias” na “Folha do Litoral” - jornal que circulou em Parnaíba por muitos anos, presenteou-me com um elogioso comentário sobre minha pessoa e o meu trabalho, terminando por transcrever um dos poemas ali publicados.
O autor, na sua humildade de poeta bissexto, e a obra, que se intitula “Viração”, não têm as ótimas qualidades que lhes foram dadas pelo competente comentarista. Atribua-se os méritos ali alinhados à força da amizade que nos unia. Amizade de muitos anos de foro, de muitos meses de atendimentos aos carentes de justiça, e de muitos dias de audiências na Vara da Família onde atuava-mos juntos: ele como Juiz e eu como Defensor Público.
No ano de 1986, mais precisamente no dia 16 de abril, publiquei no mesmo jornal, onde ele tanto escreveu, uma crônica denominada “Por quem choram as desvalidas”, que foi lida na missa realizada na Catedral de Nossa Senhora da Graça, em sufrágio de sua alma que a partir do dia 10 daquele mês passara a morar com as estrelas do céu.
Nesta matéria de hoje não se pretende tecer comentários sobre sua ilibada atuação como Juiz de Direito, função que sempre a exerceu com o elevado propósito de servir os mais necessitados.
Não se vai, também, comentar sua vasta atuação literária. Fica tal assunto para ser exposto e debatido no SALIPI – Salão do Livro do Piauí, 8ª edição, evento que acontecerá em Teresina a partir do próximo dia 31 de maio, onde será ele, com merecida justiça, o grande homenageado.
Tratar-se-á, aqui, de uma pequena ocorrência envolvendo esta personagem invulgar e que a guardo, indelével, no fundo de minha memória. Aconteceu o seguinte:
Estava eu em minha sala, no foro, atendendo a grande fila formada por pessoas carentes de justiça, aquelas que sempre procuram como única salvaguarda a Defensoria Pública, quando entra uma senhora, agoniada e suada, que logo foi dizendo o que lhe trazia até ali:
- Doutor, eu tenho um processo contra o meu marido, ele está pagando muito pouco e isto não pode continuar!...
Aquela necessitada, mãe de família aflita, trazendo na cabeça os enfeites dos cabelos brancos que lhe dera a idade somada ao desprezo de um marido que lhe trocara por uma mais moça, pretendia ajuizar uma Ação de Revisão de Alimentos.
Alegou que o marido, ao contrário do tempo do ajuizamento da inicial e da sentença, havia conseguido emprego mais rendoso e que podia pagar, para ela e filhos ainda menores, uma pensão maior.
- Minha senhora – falei – em primeiro lugar vamos localizar o processo e depois a senhora vai me trazer uma prova de que seu marido, atualmente, vem recebendo um salário maior e capaz de...
Ela, como a maioria daquelas que procuram a Defensoria Pública, não esperou a conclusão do meu parecer prévio e foi logo dizendo:
- Prova de que ele vem ganhando mais eu tenho é muita, agora onde está o processo, é com o senhor!
Não há dúvida – ponderei – mas me diga uma coisa: - a senhora se lembra em que ano foi a audiência, ou qual foi o cartório?...
Nada. Ela nada podia informar neste sentido. O ano ela não tinha certeza, já fazia tempo, e quanto ao cartório, foi assunto que eu nem devia ter falado. Este povo carente da Assistência Judiciária, raramente, sabe o que é e para que servem Cartório ou Secretaria.
Diante deste impasse, lhe fiz mais uma pergunta, tentando localizar os autos:
- A senhora se lembra quem foi o juiz do processo?
Ela então, mostrando-se um tanto desconfiada, me disse através de uma leve ponta de sorriso desdentado:
- Doutor o nome mesmo eu não sei. Só sei que o apelido dele era Nonon!
E assim termina esta história forense, com a localização do processo que teve, como muitos outros, um acordo quanto ao pagamento de alimentos. Feito que tramitou pela 2ª Vara da Comarca de Parnaíba, com o característico parecer ministerial da época, elaborado em duas palavras: “de acordo” ou “nada a opor”; ajuizado pela Defensoria Pública e com sentença homologatória proferida pelo saudoso Juiz e escritor João NONON de Moura Fontes Ibiapina.
Parnaíba, 23 de abril de 2010.
VIDAL FREITAS - A TOGA E A CÁTEDRA
Nesta quarta-feira, conheci a Dra. Myrtes Freitas, irmã de meu colega e amigo Vidal Freitas Filho, corregedora da Defensoria Pública do Estado do Piauí, que fora inspecionar o polo sediado na Comarca de Regeneração, cujo titular é o defensor público Ivanovick Pinheiro, que também exerce o magistério superior, com muita proficiência. É uma pessoa simpática, de agradável conversação e interessada em assuntos culturais. Instigada por mim, falou-me de seu pai, o honrado e saudoso magistrado Vidal Freitas. Colho no livro Sua Excelência o Egrégio, da autoria do professor A. Tito Filho, a informação de que ele nasceu em Oeiras em 1901, e de que fundou e orientou jornais, em que escrevia sobre diversos assuntos. Foi professor de português, latim, inglês e história. Fundador e diretor de colégios. Bacharelou-se na Faculdade de Direito do Recife. Exerceu a magistratura em diversas cidades do estado. Segundo a referida fonte, dominava o francês, o inglês, o alemão, o italiano e o espanhol, além de conhecer profundamente o latim. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Piauiense e à Academia Piauiense de Letras. Em 1971, aposentou-se como desembargador. Perguntei à Dra. Myrtes se era verdade certo caso interessante e um tanto anedótico de que ele fora protagonista. Contou-me o caso. O desembargador Vidal era um homem sério e honrado, e bom e justo. Quando era professor da velha Faculdade de Direito, havia um aluno que trabalhava na então toda poderosa Casa Inglesa, que era rígida com relação ao cumprimento de horário. Por isso, esse aluno, forçosamente, chegava quase sempre um pouco atrasado às aulas. O diretor da faculdade, por alguma razão que desconheço, passou a fiscalizar a frequência dos discípulos. E certo dia foi inspecionar a frequência dos alunos do desembargador. Disse haver notado que na lista de presença não constava a falta desse aluno, que ainda não chegara. Vidal Freitas respondeu que ele viria, que já estava chegando. De fato, naquele instante o aluno entrou na sala, e a sua presença ficou mantida. Esse aluno galgou importante cargo público e conservou pelo mestre Vidal uma amizade e gratidão, que perdurou até depois de sua morte. Sua gratidão era tanta, que um dia comentou para familiares de Vidal Freitas, quando ele já havia falecido, mesmo sabendo que ele fora batista praticante, assim como sua família, de que havia sonhado com o velho professor, e de que este lhe pedira a celebração de uma missa. A família, claro, sabia que as suas convicções religiosas jamais lhe permitiriam fazer esse tipo de solicitação, mas entendeu que a realização desse culto católico era uma maneira de esse homem demonstrar a sua mais profunda gratidão pelo desembargador Vidal Freitas, por quem nutria nobres e perenes sentimentos de reconhecimento e amizade pelos benefícios recebidos. E a missa foi celebrada, com a presença da Dra. Myrtes Freitas.
Membros do Jornal Inovação, sob o cajueiro de Humberto de Campos, vendo-se, da esquerda para a direita, no 1º plano: Bartolomeu Martins, Vicente de Paula (Potência), Elmar Carvalho e Canindé Correia; 2º plano: Danilo Melo, Francisco (Neco) Carvalho, Diderot Mavignier, Franzé Ribeiro, Sólima Genuína, Bernardo Silva, Reginaldo Costa e Paulo Martins; 3º plano: Jonas Carvalho, Israel Correia, Porfírio Carvalho, Wilton Porto, Alcenor Candeira Filho e Flamarion Mesquita. Percebe-se, nesta fotografia, a felicidade dos retratados com esse reencontro, posto que vários moravam em outros estados e municípios. Hoje, a maioria já não reside em Parnaíba
Antônio Júlio Lopes Caribé, Des. Tomaz Gomes Campelo e Aci Campelo
16 de abril
CARIBÉ, O BRANCO MAIS NEGRO DO BRASIL
Participei, ontem à noite, do lançamento do livro Guia Turístico Afro-Cultural da Região Meio Norte, da autoria do professor, pesquisador e escritor Antônio Júlio Lopes Caribé. Estavam presentes familiares, amigos, artistas e escritores, entre os quais Tomaz Gomes Campelo, Aci Campelo, Ruimar Batista da Costa, Rosinha Amorim e José Fortes Filho. A apresentação foi feita pelo escritor e jornalista Zózimo Tavares, que se desincumbiu da missão com a competência que lhe é peculiar, abordando os principais aspectos do conteúdo do livro, de forma breve, mas jamais superficial, com o poder de síntese, que lhe é caraterístico, fazendo lembrar, por esse aspecto e também por sua capacidade de observação e análise, o seu colega de APL e de jornalismo Carlos Castelo Branco. Depois, o autor fez a sua explanação, e com a generosidade, que lhe é inerente, expressou os seus agradecimentos às pessoas que, de uma forma ou de outra, lhe ajudaram a conceber e publicar o livro. Livro completo, naquilo a que se propôs, tem uma bela orelha, escrita pelo contista e professor da UFPI Airton Sampaio, da qual julgo de bom alvitre extrair o seguinte: “Estruturado como Guia, o livro não deixa, no entanto, de trazer textos descritivo-dissertativos, em forma de artigos, sobre os mais diversos temas, entre os quais avultam, a meu ver, o Carnaval, a Literatura e o Cinema”. O livro é um grande inventário afro-cultural do Piauí e do Maranhão, e, portanto, trata dos principais eventos, arrola as principais casas e instituições ligadas aos temas que aborda, e se reporta às lendas, folguedos, danças, literatura, religiosidade e ao folclore em geral desses dois estados, citando as principais personalidades dessas manifestações culturais. Facultada a palavra, resolvi prestar um breve depoimento. Inicialmente, fiz referência à sintética e eficiente apresentação do Zózimo, e em cretino trocadilho disse que ele não nos encheu o saco e nem encheu lingüiça, e que não encheu o saco exatamente por não ter enchido lingüiça, ou seja, por não ter entrado em minudências e digressões enfadonhas, com a finalidade apenas de delongar a fala, como sói acontecer em muitos e quilométricos discursos. Expliquei que conheço o Caribé há muitos anos, desde o final dos anos 80, quando presidi a União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE-PI. Com o seu apoio e de outros valorosos companheiros, lutei para que a Literatura Piauiense fosse inserida em dispositivo da Constituição Estadual, cuja campanha terminou vitoriosa, com o respaldo decisivo do deputado constituinte Humberto Reis da Silveira. Eu, o Caribé e outros membros da UBE-PI participamos de várias infucas lítero-culturais no interior do estado, em cidades como Oeiras, Amarante e Luzilândia. Na bela e bucólica Amarante, estávamos passeando na beira do cais, com a presença casual de bela ninfa, aliás mais ninfeta que ninfa, quando vimos cair do alto do passeio umas pétalas douradas. Era um velho fauno, companheiro nosso, destemido e aguerrido conquistador, que tentava angariar a simpatia da moça. Claro que o seu esforço romântico resultou infrutífero, mas valeu a pena a beleza daquela improvisada chuva de belas pétalas silvestres. De longo tempo, conheço-o como escritor, umbandista e amante da religiosidade, da cultura, da arte e da beleza negra, o que restou provado com o seu livro. Por isso mesmo disse, e tenho repetido isso muitas vezes, que o Caribé, branco dos olhos azuis e casado com uma mulher branca e loura, depois da morte de Vinícius de Moraes, tornou-se o branco mais negro do Brasil.
Anita, a prima-dona e dona do pedaço
14 de abril
BELINHA
Pedi que a Elmara Cristina, que é a primeira dona da prima-dona Anita, me mandasse, por e-mail, fotos da Belinha e da Anita, nossas duas mimosas cadelinhas, mas quem terminou por enviá-las foi o João Miguel. Isto porque decidi, hoje, escrever sobre Belinha, coisa que já venho adiando há algum tempo, por razões diversas. Essa cachorrinha chegou a nossa casa faz alguns anos. Não podia ouvir fala masculina que ficava nervosa, se agachando, se escondendo debaixo dos móveis. Dizíamos que era traumatizada. Depois, soubemos que um homem, que fora seu dono, a maltratava. Foi, em seguida, para uma outra casa, onde não era muito bem cuidada, embora não sofresse maus tratos, até que nos foi dada. No início, a Anita, que veio morar conosco desde recém nascida, e que desde então foi sempre bem-amada, travou uma verdadeira “guerra” contra a Belinha, apesar de que esta, conquanto também pequena, fosse bem maior que ela; suponho que por ciúme da sua família humana e porque achasse que a intrusa invadira seu território. Mas Belinha, com humildade e paciência, evitava confrontos, e se afastava de perto da mandona e madona Anita. Parecia provida de uma verdadeira inteligência emocional, que lhe impulsionava para a diplomacia e para a resistência pacífica, talvez temerosa de novo abandono ou rejeição. Sendo a Anita menor, mais graciosa e a “dona do pedaço”, já que era a pioneira, Belinha passou a nos cativar e a nos atrair a atenção caminhando e dançando sobre as duas patinhas traseiras. Com efeito, terminou por conquistar todos da casa. Mas, um tanto tímida e esquiva, muitas vezes procurava os lugares esconsos, e se retraía ante a Anita, que sempre foi mais ousada e voluntariosa, já que sempre foi o mimo da casa, talvez por ser a “primogênita” e por causa de sua graciosidade miúda. Não resta dúvida, Anita sempre foi a prima-dona, sempre foi a predileta. Mas Belinha foi galgando posições, angariando simpatias, e ao que tudo indica foi se libertando de seus traumas, embora se mantendo humilde e cordata com a outra cadela. A Pantica (Francisca Maria) passou a ser a sua “madrinha”, cuidando dela com desvelo e carinho, mas também a repreendendo, em certos momentos, como se estivesse lidando com um ser humano, coisa que a cachorrinha quase o é, mas sem os defeitos dos humanos. Houve correspondência nesse apego e afetividade. Contudo, tinha seu brio e seu amor próprio, e, certa vez em que a Anita foi muito abusada, reagiu, como para mostrar que sabia se defender e defender os seus direitos, apesar de não gostar de briga, futrica e intriga. Com o passar do tempo, Anita, conquanto não morresse de amor por ela, foi deixando de implicar; passou a tolerá-la, e ambas passaram a ter uma coexistência pacífica. Recentemente, Anita, que tinha uma hérnia há algum tempo, passou a ter o seu problema agravado, e um dia sentiu fortes dores, pois gania/gritava de dor. Belinha, bela e boa cadelinha, foi solidária, e correu desesperada, subindo os degraus em desabalada carreira, para latir à porta do quarto onde estava minha mulher; latiu fortemente, até a Fátima abrir a porta. Em seguida, desceu as escadas, como chamando minha mulher para socorrer a Anita. Somente sossegou quando a Fátima foi olhar o que estava ocorrendo. Felizmente, a cachorrinha foi operada pela médica Tita, e hoje está recuperada. Essas duas cachorrinhas, fofas e graciosas, de biografias e temperamentos tão díspares, como que se complementam e completam a plenitude de nossa família, pois nos amam e por nós são amadas.