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Escombros da Zona Planetária |
29 de março Diário Incontínuo
A ZONA PLANETÁRIA
Elmar Carvalho
Elmar Carvalho
Após a palestra do arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, quando o presidente da APL, Reginaldo Miranda, me passou a palavra, sugeri ao João Alves Filho, presidente da ACALE, que a conferência em defesa da preservação dos casarões fosse apresentada em Campo Maior; a aceitação foi efusiva e imediata. A seguir, expliquei que muitos anos atrás, mais precisamente no dia 23.05.1997, na sede do IATE Clube Laguna, situado à beira do formoso Açude Grande, em meu discurso de posse na Academia do Vale do Longá, eu denunciara a destruição da Fazenda Tombador. Na oportunidade, recitei estes versos do meu poema que lhe leva o nome: “Quando literalmente tombaram / a Fazenda Tombador, / nenhuma voz se levantou, / nem mesmo a voz de alguém, / que clamasse no deserto, clamou. / E a Fazenda Tombador / literalmente tombou.” Foi na sede dessa fazenda que se refugiou Fidié, após o término da Batalha do Jenipapo. Por conseguinte, seu valor histórico era inestimável.
Falei que os velhos prédios iam desaparecendo aos poucos, como se fora em macabro jogo de dama, em que as “pedras” iam sendo “comidas” por voraz jogador. Importantes edificações, de valor arquitetônico e/ou histórico, já foram derrubadas, ou pela insensatez, ou pela ganância, ou mesmo pela ignorância. Com isso, a paisagem urbana que marcou a nossa infância e juventude vai sendo apagada. Dessa forma a nossa memória vai sendo esgotada, as nossas referências vão sendo destruídas. A paisagem arquitetônica que servia de pano de fundo a várias quadras de nossa vida deixam de existir, fazendo-nos mergulhar na nostalgia pelas coisas que ainda nos poderiam encantar com a sua velha presença. Por causa dessas demolições, o velho bardo bradou: “Vão destruir esta casa / mas meu quarto vai ficar / de pé, suspenso no ar”. No ar tênue da memória ou apenas em desbotada fotografia, como assinalaram os versos de outro poeta.
No mesmo discurso em que clamei contra a destruição da Fazenda Tombador, adverti que, se providências não fossem adotadas, a Zona Planetária, de tão poético e sugestivo nome, também seria transformada em ruína. Na minha fala de sábado passado, disse que, infelizmente, fora um bom profeta, porquanto os casarões dessa antiga zona meretrícia, sem nenhum cuidado preservacionista, expostos ao rigoroso inverno de alguns anos atrás, terminaram por desmoronar, deles só restando escombros, e a memória de um tempo em que os prósperos coronéis da carnaúba e da pecuária ali imperavam, rodeados de belas meretrizes, algumas “importadas” de outros estados.
Esse belo nome foi posto pelo major Honorário Bona Neto, que além de comerciante era um músico talentoso, compositor de notáveis valsas. O município de Campo Maior, a exemplo do que foi feito em relação ao musicista e intelectual Possidônio Queiroz, de Oeiras, deveria patrocinar a publicação de álbum com a partitura de suas composições e o lançamento de um CD, abrigando suas principais melodias, em vez de ficar bancando apenas apresentações de bandas de outros municípios e estados, com suas músicas comerciais, apelativas e de evidente mau-gosto.
Com o passar dos anos, o nome Zona Planetária foi caindo no esquecimento. O local passou a ser chamado simplesmente de zona da rua Santo Antônio, com os prostíbulos já em franca decadência. Outrora, cada um dos cabarés ostentava na fachada o nome e a pintura de cada um dos planetas. Lá estavam os anéis de Saturno, a cor azul de Vênus, o vermelho sanguíneo de Marte... Ao cair da tarde, as mulheres assomavam às janelas, situadas acima das altas calçadas. De lá, como de um mirante, espreitavam os passantes, que eram ao mesmo tempo caça e caçadores. À noite, o amor de aluguel acontecia entre espumas de cerveja, perfumes de gardênia e o luscofusco difuso/confuso das luzes negras, ao som dos boleros das velhas radiolas, que soltavam as vozes de Roberto Muller e Waldick Soriano, que dominavam soberanos nos lupanares de então.
Ainda jovem, quando assumi meu cargo de fiscal da extinta SUNAB – Delegacia do Piauí, o chefe da Seção de Fiscalização, o senhor Walter e Silva Mendes, que em sua infância fora amigo de meu pai, instigou-me a escrever um poema sobre a Zona Planetária. Ora, eu já sequer me lembrava de que aquele meretrício tivera esse nome. Desde há muito, ele passara a ser chamado apenas de zona da Santo Antônio, como numa tentativa de unir-se o sagrado ao profano, o divino e o humano. Durante muitos meses conjecturei sobre como poderia elaborar esse poema. Cheguei a achar uma missão quase impossível. Um belo dia, ocorreu-me que os planetas foram denominados com o nome de deuses da mitologia grego-romana. Esses deuses, apesar de poderosos e imortais, tinham as mesmas paixões, vícios e desejos do ser humano. Esse foi o estalo que deu origem ao poema.
A partir daí comecei a pesquisar a mitologia e a astronomia planetária. Anotei as principais virtudes e defeitos dos deuses. Os principais fatos que lhe eram atribuídos. Procurei registrar as principais caraterísticas dos planetas, como órbitas, cor, densidade, satélites e os fenômenos de seu giro ao redor do Sol e de sua rotação sobre o próprio eixo. Resolvi, então, escrever um épico moderno, em que mesclei a astronomia planetária, a vida e as paixões dos deuses do Olimpo e a sociologia dos lupanares. Fiz um poema de abertura e mais nove outras unidades, em que pus as peculiaridades de cada um desses mitos e planetas. Certamente, o que me faltou em talento, sobrou em audácia.
O SISTEMA PLANETÁRIO
Elmar Carvalho
Anfion percorre os sulcos
dos discos das vitrolas e as
emoções são alinhadas pedra a pedra.
Apolo é qualquer moço feio
que nos vitrais Narciso se julga.
De repente, Átropos corta o fio da vida
que era tecido pelas Parcas lentamente
pelos golpes de facas, adagas ou estiletes
nas mãos de um velho Pã embriagado.
Baco e suas bacantes celebram suas
lúbricas bacanais e bebem vinho
e sangue em frágeis taças de cristais.
Nas calçadas altas da Zona Planetária
meretrizes expõem suas carnes
em varais de açougues imaginários
aos transeuntes ou faunos eventuais,
nas horas em que Hélio esboça a Aurora.
Ali, os desejos são Ícaros leves que sobem
nas asas de cera do pensamento, quando
Nyx, filha do Caos, com seu negromanto
lantejoulado de estrelas e sua
coroa de dormideiras, a noite,
o sonho e a orgia instaura.
Cupido passa com seu
séqüito de sátiros e de ninfas
pelas calçadas e salões da Zona Planetária
e Eros proclama seu reinado
de orgia, prazeres, orgasmos e pecados.
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