segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Estamos em pleno gozo da democracia no país?




Cunha e Silva Filho

A censura à obra de Arte literária está dando sinais de perigosa atitude de intolerância com obras ficcionais de autores brasileiros. Foi reaberto o debate, iniciado em 2010, sobre a censura a uma obra de Monteiro Lobato (1882-1948)de título Caçadas de Pedrinho, editada nos idos de 1933. A polêmica se originou em razão de que a obra faria parte de um grupo de livros a serem distribuídos pelo MEC às escolas públicas. Alguém ligado a uma instituição de defesa da igualdade de negros e de combate contra o preconceito racista interferiu, junto ao MEC, para que o livro de Lobato fosse impugnando, já que, na visão dessa pessoa, a narrativa de Lobato continhas referências negativas que a comprometiam como obra racista.

O imbróglio já passou por dois pareceres do Conselho Nacional de Educação e encaminhados ao MEC. Além disso, foi objeto de dois processos movidos junto ao Supremo Tribunal Federal. Só está aguardando agora uma audiência de conciliação com o ministro Luiz Fux para terça-feira, da próxima semana. A grande questão que abre agora, a partir do resultado dessa reunião, é a dúvida do que será estabelecido pela Justiça no tocante ao que possa vir a se caracterizar como uma forma de censura ou proibição, com a possibilidade de o livro de Lobato ser distribuído com ressalvas de teor de natureza censória., i.e., permitir a distribuição pelo MEC mas tendo como condição prévia, segundo diz a reportagem hoje, publicada no caderno Prosa, de O Globo. “promover a capacitação de professores a fim de sistematizar a abordagem ..” pelos docentes da questão do preconceito contra negros na educação básica. Ora, reduzir a complexidade interpretativa de uma obra a uma abordagem imposta e didaticamente unificadora quanto à sua ideologia, a meu ver, se constitui em grave retrocesso da liberdade de pensamento e de expressão criativa de um autor. Este é o busílis da questão que cumpre ser discutido sem os interditos do poder público.

Por conseguinte, obscurantista e cerceadora da criatividade de um escritor passa a ser a denúncia feita pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto, segundo a reportagem de Mariana Moreira, técnico em gestão educacional. A denúncia, formada de citação de passagens da obra lobatiana, foi encaminhada à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sppir). Na visão desprovida de conhecimentos no campo da narratividade e do que sejam os protocolos que norteiam a composição de uma obra de imaginação, o mencionado técnico alega que Monteiro Lobato promove o preconceito racial a partir do tratamento que o escritor dá a personagens como a tia Anastácia. Ora, o técnico, naturalmente como lhe é inerente à função, se atém à literalidade (não confundir com literariedade do formalismo russo) da leitura, e, portanto, faz uma leitura do texto de Lobato sem nenhuma base crítico-teórica. Destarte,, provavelmente até por desconhecimento, comete um ato falho, dando ensejo a que o associemos aos tempos sombrios da ditadura militar, ou, muito longe no tempo, à época dos livros listados pelo “Índex,” tenebroso tribunal romano do século XVI, que, em obediência a um cânon do Concílio de Trento, tinha o encargo de analisar obras que lhe eram  encaminhadas pelo poder eclesiástico para aprovação (“Nihil obstat”) ou para a sua proibição.

O Brasil, que já dá grandes passos para ser um país maduro, não pode retroceder em práticas terroristas e totalitárias dos tempos da Revolução cultural chinesa e dos Gulags comunistas. A obra de arte literária, e aqui estou, com todas as letras, incluindo Monteiro Lobato, é um produto construído pela linguagem, tendo seu mundo próprio, que não pode ser confundida com a factualidade da existência. Sua base é a mímesis, ou seja, uma possibilidade de construção de vidas e de realidades sociais respeitando procedimentos técnicos próprios parecidos (mera coincidência) ou não com a chamada realidade empírica, mas que, conforme preceitua Aristóteles, não copia a vida tal qual é dentro de nossas percepções. No momento em que vida se fecha como referencialidades e diferenças ideológicas, a ficção passa a existir por si própria, graças à linguagem adequada   a cada  gênero literário. O mesmo se pode afirmar das artes em geral. A censura é do universo da realidade pálida e cinza; a ficção, a poesia, o drama, são criações do espírito artísitco, da capacidade de inventar “realidades” que emocionam e o fazem tanto quanto  ou mais em maior potência do que na vida pura e simples do cotidiano estéril.

Segundo um estudioso da literatura infantil Ilan Brenman, autor de A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil (Aletria) citado na reportagem, o que está acontecendo com Lobato poderia abrir um precedente para que obras de outros autores brasileiros, como Aluísio de Azevedo e Castro Alves. Daqui a pouco, serão Graciliano Ramos, Jorge Amado e outros mais. Uma vez, quiseram também  censurar a fala de um personagem de uma obra de Darcy Ribeiro. Tal fato, embora de modo diferente, já está ocorrendo, conforme relata em breve artigo Suzana Velasco, na mesma página do caderno Prosa.Somos informados que o escritor Dalton Trevisan teve um livro seu, Violetas e pavões (Record, 2009) retirado da relação de obras que fariam parte do concurso de seleção do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

A alegação de tal retirada se deve a reclamações de pais e professores (sic!) de escolas e de cursinhos preparatórios para ingresso naquela instituição federal. Não sabia que a esta altura do campeonato, a família brasileira e educadores estejam dando demonstração de moralismo anacrônico e de hipocrisia social quando sabemos em que direção dever-se-iam dirigir as nossas reivindicações contra a atual imoralidade galopante, o devastador festival de filmes violentos e pornográficos  mostrados tanto em programas emburrecedores na tevê brasileira (tipo Big Brother et caterva) quanto nas chamada novelas, onde a ética e os chamados “bons costumes” burgueses da “Família, Pátria e Liberdade” há muito viraram letra morta, de tanto serem exibidos em todos os cantos do país.

Onde estão os processos encaminhados aos tribunais de Justiça do país para tanta bandalheira, corrupção, hedonismo e “malfeitos” de nossos políticos e homens públicos? Qual vai ser o desfecho dos condenados do Mensalão, ou seja, quem irá mesmo para a cadeia sem as brechas e subterfúgios de amplos e recorrentes recursos legais, por seus crimes contra o Erário Público?

Jamais achei correta uma lei brasileira que decreta, que impõe de cima pra baixo, o crime do preconceito racial e, neste ponto discordo de uma velha crônica de Rachel de Queiroz (1910-2003), ao ficar emocionada no exterior quando alguém, dirigindo-se a ela, elogiava o país que criara uma lei contra o preconceito racial. O estrangeiro referia-se à lei Afonso Arinos.

O combate ao preconceito racial – que é um sentimento abominável - deveria ter sido uma conquista natural na cultura brasileira, nascido de um combate constante na formação e educação de nosso povo, uma lição sincera, espontânea, sem hipocrisia, destinada a vencê-lo , como disse, através da mudança de mentalidade de um povo, do resgate do elemento negro pela via de condições de melhoria na saúde, na escola, nos aspectos éticos e no respeito às diferenças de cor, de nível social e de igualdade de oportunidades no emprego, na universidade e no direito de alguém poder assumir qualquer função sem os crônicos reflexos oriundos do nosso passado escravagista.

A verdadeira lei em defesa dos negros , sem laivos coercitivos, seria a que parte do interior do ser humano, da compreensão lúcida de que a pigmentação diferente nada comprova qualquer atitude irracional racista. Como cidadão, acato, sim, a lei contra o preconceito, mas no íntimo sei que ela não passou de uma imposição, de algo artificial, por vezes mais provocador de racismo do que de harmonia entre brancos, pretos e mestiços. A harmonia entre pretos e brancos, que deveria existir, esconde, pela hipocrisia, o racismo que deve ser extirpado na consciência e dignidade da sociedade brasileira. Enquanto houver hipocrisia, convencionalismo legal, o estigma persistirá na nossa vida social.

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