quarta-feira, 26 de março de 2014

Parnaíba, rio dos ancestrais


Fonseca Neto

E diga-se, para começo de conversa, que deveria também ser o rio do futuro. E por que a presente geração está matando esse estuário de vida?

A evocação dos ancestrais é para insistir na lembrança de que esse rio é, desde quando não se particularizava e apelidava certas coisas da natureza, o fator maior da vida nesta área do planeta.

Relembre-se logo que estão, em sua bacia, os vestígios provados do mais antigo povoamento nesta parte do mundo, chamada de América desde o Seiscentos da era fluente. Gente ancestral que aqui viveu, que deve ter pintado o sete, e com certeza pintou os paredões talhados da serra que hoje se chama da Capivara – e de muitas outras. No Piauí, ainda mais nas zonas áridas, ter intimidade com pés, locas e furnas de serra, significa aconchego com a história humana em sua aurora. Tomar à mão uma enxada, um cavador, uma lupa, e com eles tocar e perscrutar, por aqui, a face do planeta, implica tocar um corpo de experiências pretéritas e descobrir a história da sobredita ancestralidade.

À época da invasão deste país pelos europeus, e logo que elaborados os primeiros registros cartográficos de sua costa oceânica, já então se vislumbrou e rabiscou a desembocadura desse grande rio, entre ilhas. E por esse tempo habitada essa zona de foz por um povo que a defendeu bravamente contra a intrusão de quem quer que fosse, sinal do valor maior de vida que tal manancial de água doce significava para ele.

Dois séculos após o ano de 1500 e já as formas de contato com o rio e sua grande bacia – com todos confluentes, claro – haviam configurado um novo modo de relação com eles. Com efeito, já na altura de 1700, a presença invasora a serviço da economia europeia já forjara mais de uma centena de novos assentamentos humanos, agora intencionados de uma exploração do potencial de seu chão, de sua relva e suas matas, em modo de colonização para o capital.

Não há sinais de que os viventes do espaço banhado pelo rio, até o ano de 1500, tenham praticado qualquer ato que implicasse a degradação dele. A sabedoria desses viventes ensinava que o rio era um dom maior e fonte primordial de sobrevivência – e somente afugentavam tribos de longe que se aproximassem dele quando isso significasse uma ameaça à própria existência.

A colonização de base europeia, na bacia do grande rio, tem implicado em sua morte, rápida, pois no decurso de apenas quatro séculos ele foi assoreado e secaram seus afluentes em todos os graus. Os de primeiro grau, a exemplo dos que hoje são chamados de Poti, Canindé e Gurgueia, já se tornaram temporários. Nos pés das serra, e nos brejais dos vales úmidos, desaparecem, rapidamente, os olhos d´água. E uma sina diabólica faz com que cessem de pingar, de vez, as serras lajedadas, e encham-se os olhos – e pinguem lágrimas abundantes – dos viventes que já morrem de sede.

Mas como se há de entender, racional que se julga ser o vivente humano de hoje, matar um rio, sabendo que ameaça a própria vida?

Volte-se em busca da resposta à colonização ainda em curso, em sua “racionalidade” e força modeladora da vida social tal como a conhecemos, e fazemos: desde quando um invasor colonial matou o primeiro aborígene, desbastou com instrumentos cortantes o primeiro arvoredo ciliar desses rios e riachos, desde quando abriu o primeiro clarão na mata para fazer curral, e revolveu pedras e leitos em busca de minerais, desde então, sem nunca mais parar, procede-se à matança dos rios e de suas ribeiras. Aliás, faça-se uma análise séria e se constatará que, nesse pouco tempo, destruiu-se, secando e envenenando, a camada de húmus responsável pela criação das formas de vida na superfície terreal dessa bacia e dos leitos.

Racionalidade que revela sua perversão, de maneira ainda mais eloquente, no significado de que, cada cidade-vila que se criou sobre tais rios, um fator de sua degradação foi cruelmente posto em curso.

Em Teresina, por exemplo, o Parnaíba e o Poti são as cloacas latrinosas da cidade. E o Parnaíba é, a um só tempo, a latrina e fonte da água “doce” donde se bebe.  “Vá dormir com um barulho desses...”. Ou melhor pensar: porque ainda se dorme com um desastre desses?   

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