Fonseca
Neto
E
diga-se, para começo de conversa, que deveria também ser o rio do
futuro. E por que a presente geração está matando esse estuário
de vida?
A
evocação dos ancestrais é para insistir na lembrança de que esse
rio é, desde quando não se particularizava e apelidava certas
coisas da natureza, o fator maior da vida nesta área do planeta.
Relembre-se
logo que estão, em sua bacia, os vestígios provados do mais antigo
povoamento nesta parte do mundo, chamada de América desde o
Seiscentos da era fluente. Gente ancestral que aqui viveu, que deve
ter pintado o sete, e com certeza pintou os paredões talhados da
serra que hoje se chama da Capivara – e de muitas outras. No Piauí,
ainda mais nas zonas áridas, ter intimidade com pés, locas e furnas
de serra, significa aconchego com a história humana em sua aurora.
Tomar à mão uma enxada, um cavador, uma lupa, e com eles tocar e
perscrutar, por aqui, a face do planeta, implica tocar um corpo de
experiências pretéritas e descobrir a história da sobredita
ancestralidade.
À
época da invasão deste país pelos europeus, e logo que elaborados
os primeiros registros cartográficos de sua costa oceânica, já
então se vislumbrou e rabiscou a desembocadura desse grande rio,
entre ilhas. E por esse tempo habitada essa zona de foz por um povo
que a defendeu bravamente contra a intrusão de quem quer que fosse,
sinal do valor maior de vida que tal manancial de água doce
significava para ele.
Dois
séculos após o ano de 1500 e já as formas de contato com o rio e
sua grande bacia – com todos confluentes, claro – haviam
configurado um novo modo de relação com eles. Com efeito, já na
altura de 1700, a presença invasora a serviço da economia europeia
já forjara mais de uma centena de novos assentamentos humanos, agora
intencionados de uma exploração do potencial de seu chão, de sua
relva e suas matas, em modo de colonização para o capital.
Não
há sinais de que os viventes do espaço banhado pelo rio, até o ano
de 1500, tenham praticado qualquer ato que implicasse a degradação
dele. A sabedoria desses viventes ensinava que o rio era um dom maior
e fonte primordial de sobrevivência – e somente afugentavam tribos
de longe que se aproximassem dele quando isso significasse uma ameaça
à própria existência.
A
colonização de base europeia, na bacia do grande rio, tem implicado
em sua morte, rápida, pois no decurso de apenas quatro séculos ele
foi assoreado e secaram seus afluentes em todos os graus. Os de
primeiro grau, a exemplo dos que hoje são chamados de Poti, Canindé
e Gurgueia, já se tornaram temporários. Nos pés das serra, e nos
brejais dos vales úmidos, desaparecem, rapidamente, os olhos d´água.
E uma sina diabólica faz com que cessem de pingar, de vez, as serras
lajedadas, e encham-se os olhos – e pinguem lágrimas abundantes –
dos viventes que já morrem de sede.
Mas
como se há de entender, racional que se julga ser o vivente humano
de hoje, matar um rio, sabendo que ameaça a própria vida?
Volte-se
em busca da resposta à colonização ainda em curso, em sua
“racionalidade” e força modeladora da vida social tal como a
conhecemos, e fazemos: desde quando um invasor colonial matou o
primeiro aborígene, desbastou com instrumentos cortantes o primeiro
arvoredo ciliar desses rios e riachos, desde quando abriu o primeiro
clarão na mata para fazer curral, e revolveu pedras e leitos em
busca de minerais, desde então, sem nunca mais parar, procede-se à
matança dos rios e de suas ribeiras. Aliás, faça-se uma análise
séria e se constatará que, nesse pouco tempo, destruiu-se, secando
e envenenando, a camada de húmus responsável pela criação das
formas de vida na superfície terreal dessa bacia e dos leitos.
Racionalidade
que revela sua perversão, de maneira ainda mais eloquente, no
significado de que, cada cidade-vila que se criou sobre tais rios, um
fator de sua degradação foi cruelmente posto em curso.
Em
Teresina, por exemplo, o Parnaíba e o Poti são as cloacas
latrinosas da cidade. E o Parnaíba é, a um só tempo, a latrina e
fonte da água “doce” donde se bebe. “Vá dormir com um
barulho desses...”. Ou melhor pensar: porque ainda se dorme com um
desastre desses?
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