A Agonia do Parque Nacional Serra
da Capivara
José Pedro Araújo
Escritor, cronista e romancista
Desde muitos anos temos
acompanhado o caminhar agonizante do Parque Nacional da Serra da Capivara,
localizado no semiárido piauiense. Originalmente criado em 1979 com uma área de
100.000 ha, o parque foi beneficiado com um acréscimo de mais 35.000 hectares,
através da desapropriação de áreas contíguas a ele em cuja região foram
identificados novos sítios arqueológicos. Entretanto, a gleba sob os cuidados
do ICMBio é muito mais extensa, abrangendo um território de 414.000 hectares,
após a criação de um Mosaico Ecológico pelo Ministério do Meio Ambiente,
juntando em uma só formação os Parque Nacionais da Serra da Capivara, Serra das
Confusões, e o Corredor Ecológico existente entre estes.
O Parque Nacional Serra da
Capivara está encravado nos municípios de João Costa, Coronel José Dias, S.
Raimundo Nonato e Brejo do Piauí. Transformado pela UNESCO em Patrimônio
Cultural da Humanidade em 1991, é uma das mais importantes unidades de
conservação existentes no Brasil, tanto pela importância dos seus sítios arqueológicos
como pelas descobertas ali realizadas.
Desde a sua criação o parque
trava uma queda de braço com uma parte da população dos municípios em cujo
território ele se acha localizado em razão, principalmente, da expropriação de
muitas fazendas antigas, mas também pela extinção de alguns povoados que se
encontravam na sua área de abrangência. E para piorar a situação, parte dessas
famílias demoraram anos para receber o que lhe era devido, sendo que algumas
até pouco tempo atrás ainda estavam a esperar pelo dinheiro da indenização.
Cerca de cinco anos atrás tive a oportunidade de visitar a parte mais nova do
parque, e vi muitas sedes de fazendas ainda de pé e em bom estado de
conservação, cercadas por muitas fruteiras, como se aquelas famílias nunca
tivessem saído dali, ou como se tivessem saído apenas momentaneamente. Eram
estas as que estavam ainda no aguardo das indenizações que deveriam advir dos
órgãos ambientais.
A propósito disso, ai por volta
de 1997 o INCRA foi procurado pelo Superintendente do IBAMA para propor a
aquisição de um imóvel nas imediações da cidade de São Raimundo Nonato com o
objetivo de abrigar um número significativo de famílias expulsas do parque.
Esses excluídos, após saírem de suas povoações originárias, haviam ido residir
na periferia da cidade de São Raimundo, e passavam por dificuldades por não
saberem desempenhar outra atividade que não a agrícola ou a criação de animais.
Deparavam-se, além disto, com um problema comum nas cidades: o envolvimento dos
filhos com tudo que há de ruim em um aglomerado urbano. O INCRA providenciou a
desapropriação do imóvel denominado Lagoa do Padre, área de excelente qualidade
para os padrões do semiárido, e assentou mais de 200 famílias lá. O Projeto de
Assentamento está hoje bem estruturado, e é um dos aglomerados rurais mais
populosos do município.
Entretanto, pelo tamanho da área
de abrangência do parque, centenas de outras famílias foram também atingidas
após a criação do parque, e obrigadas a retomar suas vidas longe do local em
que já possuíam pequenas unidades agrícolas instaladas.
Em 2013 o INCRA voltou a atuar
novamente na região, criando dois projetos de assentamento diferentes do modelo
costumeiro, utilizando um formato mais adequado para a região: o de Projeto de
Desenvolvimento Sustentável. Localizados nos municípios de Coronel do José Dias
e São Raimundo Nonato, limítrofes ao parque da Serra da Capivara, esse novo
tipo de assentamento estabelece limites para a sua exploração, obrigando os
beneficiários a adotarem práticas agropecuárias de baixo impacto ambiental, e
limitando até mesmo o número de animais que podem ser criados, entre tantos
outros compromissos firmados. Participei dos dois trabalhos.
Em uma das vistorias realizadas
no imóvel Pé da Serra, em coronel José Dias, tive que percorrer longo caminho
até chegar a um de seus limites, entrando pelo município de Brejo do Piauí.
Depois de longo tempo subindo uma serra, percorrendo trilha aberta por
caçadores, nos deparamos com um local onde eram deixadas as motocicletas, única
forma de se chegar até lá. O local recebia um sugestível nome: rodoviária. Era
por este lado que os caçadores de animais silvestres costumavam adentrar ao
Parque da Serra da Capivara para caçar. Esse é, portanto, um dos principais
problemas enfrentados pela unidade de conservação: a caça predatória dos
animais abrigados ali. Mas não o único.
Os outros problemas são as
queimadas, provocadas ou não, e a falta de compromisso dos governos no repasse
de recursos para a manutenção das atividades de fiscalização e pesquisa. As
entidades que administram o parque, a Fundhan – Fundação do Homem Americano e o
Instituo Chico Mendes – ICM Bio, vivem à mingua, padecendo horrores com a falta
de dinheiro para as despesas mais urgentes. E este ano, veio a triste notícia:
o parque fechou para visitações. Não poderíamos ouvir uma notícia pior do que
esta. A que ponto chegou o descaso das nossas autoridades. O que parecia
provável de acontecer, mas que teimávamos em não acreditar, finalmente acorreu.
Chegamos ao fundo do poço. E olha que a Dra. Niéde Guidon já vinha clamando aos
quatros cantos do planeta a respeito dessa possibilidade, alertando para os
orçamentos apertados e insuficientes, e para a falta de sensibilidade dos
nossos políticos.
Clamou no deserto, para ouvidos
moucos. Logo ela, um nome de peso, cientista respeitada no mundo inteiro, com
larga folha de serviços prestados desde a década de 60 quando deixou a
universidade de São Paulo, a USP, para vir consumir a sua juventude nas quentes
caatingas piauienses. Logo a cientista de força que parecia inesgotável, que
enfrentou poderosos da região para ver funcionar uma das unidades de
conservação mais respeitadas do país; que colocou a vida em risco inúmeras
vezes, correndo risco de ser abatida pelos disparos de algum caçador raivoso,
como de resto tem acontecido com os animais silvestres que defende.
Guidon não tem serviços prestados
apenas com trabalhos de pesquisa científica. Em vez disso, foi buscar recursos
no exterior, como já fazia por aqui mesmo, para montar um dos projetos sociais
mais bonitos que se tem notícia por estas bandas. Construiu Centros de Educação
Ambiental em diversos povoados nas circunvizinhanças do parque, excelentes
construções também utilizadas para a educação formal da criançada da região. E
como, na época, não existam boas acomodações para receber os turistas que
vinham conhecer o parque, construiu um confortável hotel na cidade; erigiu e
equipou o Museu do Homem Americano, e passou a trabalhar junto às autoridades
na construção de um aeroporto de qualidade que pudesse receber voos procedentes
do exterior. O que acaba de ocorrer.
Mas o trabalho de maior alcance
social implantado por ela é o que realiza junto às comunidades pobres da
região. A fábrica de cerâmica, por exemplo, acolhe e capacita jovens no mister,
produzindo peças de altíssima qualidade, comercializada nas principais lojas de
decoração instaladas até mesmo no sul do país. É todo esse legado que se acha
hoje ameaçado de extinção. É o trabalho de uma vida que sofre terrivelmente com
a insensibilidade das autoridades. E tudo isso em uma região carente de tudo.
Que os homens de mando abram os
olhos e impeçam o cometimento dessa violência contra o que há de mais
importante em toda a região sul do estado. Se até agora nada fizeram para
viabilizar a implantação do Parque Nacional das Nascentes, que não permitam que
este, o Serra da Capivara, que já está bem instalado, venha a fechar
definitivamente.
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